Por: Jotabê
Medeiros - Belo Horizonte
Casal de
pistoleiros dos anos 30 fugiu a pé para Minas Gerais e foi reencontrado na
semana passada.
Matou 21
- 1 deles com uma só facada. Pôs para correr três policiais na saída de um
baile. Viajou de carona em trem de boias-frias, pendurado do lado de fora, e
afogou dezenas de bicho-de-pé com querosene. Andou três meses do sertão de
Pernambuco até Montes Claros, em Minas, comendo miolo de xique-xique e casca de
árvore. Na mão de um benfeitor de beira de estrada deixou a estimada pistola
alemã Mauser. As balas, uma lata cheia, escondeu num tronco.
Isso tudo foi há 70 anos. Hoje, o antes temido cangaceiro usa camisa muito branca de mangas compridas com abotoaduras de plástico brilhante nos punhos, chapéu de feltro e sapato mocassim. Está afundado no sofá do andar superior do modesto sobrado no Jardim Tupi, bairro simples de Belo Horizonte. Não tem mais de 1,60 m de altura. Tenta levantar para cumprimentar o visitante, mas logo volta a seu posto compulsório no sofá, mal resignado. Aos 96 anos, sua saúde parece muito boa, danada de boa, mas ele guarda apenas como lembrança incômoda a memória espantosamente nítida daquele rapaz de 20 e poucos anos que ele foi, e que corria das volantes, se esquivando das balas e, eventualmente, extorquindo, matando e roubando.
José Antonio
Souto, ou Zé Pernambuco, como é conhecido no bairro mineiro, foi o cangaceiro
Moreno, do bando de Virgílio (cunhado de Lampião, um dos mais cruentos
cangaceiros dos anos 30).
Virgínio está
sentado ao lado de Lampião
Sua mulher,
Durvalina Gomes de Sá, a Duvinha, foi do bando de Lampião, companheira primeiro
de Virgílio e, após sua morte numa tocaia, de Moreno. Se o leitor viu o filme
Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (com imagens do raríssimo
documentário do libanês
Benjamim Abrahão sobre
Lampião e seu bando, feitas nos anos 30), Duvinha é aquela cangaceira bonita de
cabelos compridos que brinca com uma pistola entre os homens de Lampião,
apontando-a para a câmera e dançando.
Moreno
lembra-se com precisão da data em que os dois deixaram o cangaço: 2 de
fevereiro de 1940. Desde então, Moreno e Duvinha nunca mais falaram sobre seu
passado, sobre os anos em que as balas ricocheteavam à sua volta e estavam
entre os fora-da-lei mais procurados do País. Adotaram um código de silêncio.
Nem os filhos sabiam de algo. Mas o segredo durou até a semana passada.
Moreno e
Duvinha foram localizados há alguns dias pelo cineasta cearense
Wolney
Oliveira (de Milagre em Juazeiro), em campo para colher depoimentos para seu
novo documentário, Lampião, o Governador do Sertão.
Neli e o
cineasta Aderbal Nogueira
Uma das filhas
do casal, Neli, ajudou o cineasta - a chave foi um filho que Duvinha e Moreno
deixaram com um padre, em Tacaratu, no sertão pernambucano, enquanto fugiam.
Moreno só contou sobre o passado por medo de jamais reencontrar o filho,
Inácio, antes
de morrer (eles o reencontraram, ele vive hoje no Rio de Janeiro e opõe-se à ideia
de que os pais deem entrevistas sobre seu passado). "Na idade que estou,
achei que morria logo. Não queria deixar eles enganados."
Existem
pouquíssimos ex-cangaceiros vivos. Mais raro ainda é encontrar um casal do
cangaço, testemunhas privilegiadas da organização social, afetiva, militar e
estratégica daquele tipo de movimento que atravessou o século 19 e chegou à
metade do século 20. Um movimento mitificado pelas esquerdas como uma
experiência autônoma de guerrilha (e exemplo da insurreição do povo contra as
injustiças dos poderosos) e definido pela direita apenas como grupos de
saqueadores, estupradores e oportunistas explorando duplamente a população. O
sobrado do Jardim Tupi já está ficando pequeno para tanta gente que está vindo
fazer o refino da história.
É o único
casal de cangaceiros sobrevivente que existe. “O mais importante é que eles têm
fatos novos, que podem esclarecer muito sobre a história do cangaço e, por consequência,
do Nordeste”, diz o escritor.
Moreno e João
de Sousa Lima
João de Sousa
Lima, recém-chegado de Paulo Afonso (Bahia), anotando e fotografando tudo.
"É uma beleza!", diz apenas.
Expedita
Ferreira, filha de Lampião, que foi a Minas com a filha Vera para ver e ouvir
Moreno e Durvalina.
Ouvindo a
palavra de Moreno, sempre minucioso nos detalhes, sempre passando ao largo da
emoção, esquematizando sua vida apenas como uma sequência de fatos definidos
por forças alheias à sua vontade, tanto as teses da esquerda e da direita sobre
o cangaço não parecem sólidas. "Matei para não morrer", diz Moreno,
antes de começar a contar sua história. "Nasci em Tacaratu, Pernambuco,
fui batizado em Mata Grande e criado em Brejo Santo (Ceará). Nunca tive
documento, mas, pelas minhas contas, tenho 96 anos." Tinha muita vontade
de ser polícia, e foi a Juazeiro para tentar um posto, mas só tinha 17 anos e
não lhe deram atenção. Empregou-se então em uma propriedade rural em Cajazeiro
do Rio do Peixe, na Paraíba.
Era o fim dos
anos 20. Ali, em Cajazeiro, em sua versão, uma mulher chamada Antônia lhe
atribuiu uma calúnia, sevícias numa sobrinha, o marido da mulher veio para cima
dele e ele o matou com uma facada só. Foi quando seu caminho começou a
entortar. Teve de ir para longe, viajou muito. Em Camela, Pernambuco, pegou uma
febre tremedeira que o deixou seis meses doente. Quando sarou, envolveu-se em
briga com três policiais em Santo Amaro e, em vez de conseguir inimigo, um
sargento no qual bateu lhe arrumou um emprego num quartel. Mas não foi
efetivado na polícia. Foi barbeiro, cavoqueiro e marreteiro e, um dia,
trabalhava de segurança para um pequeno fazendeiro quando o lugar se encheu de
cangaceiro.
Queriam 200
mil reis do fazendeiro, Moreno teve de intermediar a negociação. O chefe dos
cangaceiros era Virgílio, que gostou da coragem do negociador. Convidou Moreno
para tomar café no acampamento e a seguir com eles. Ele ficou de pensar.
"Deu oito dias e eles voltaram para me buscar. Deu-me rifle, bala,
cartucheira. Ficou aquele bobo lá no meio daquela homarada", conta.
Durante alguns
dias, tudo parecia tranquilo e bom na vida iniciante do cangaço. Mas um dia
Virgílio chegou para Zé dizendo que trazia um presente para ele. "O
presente era um homem. Eu entendi logo que era para eu matar", conta. Era
o teste definitivo. Zé não tinha uma Mauser, eles lhe deram uma. Disse que não
sabia atirar. Ensinaram a manobrar. Ele pensou e disse a Virgílio, sem
angústia. "Seu expediente será feito." Caminhou até o sujeito.
"Apertei o gatilho e o homem tombou para o lado. Nunca fiquei sabendo quem
era e quem não era."
Deram-lhe
então o chapéu e a roupa azul de couro, ensinaram a apagar o rastro no bico da
alpercata, e a não passar por ramo de árvore sem deixar o ramo para trás. O
apelido Moreno foi o cangaceiro Luís Pedro, do bando de Lampião, quem lhe
aplicou. "Não tive caderneta, mas não foi pouco não", ele responde,
quando indagado sobre o número de homens que matou. "Entre polícia e
paisano são 21, que tenho certeza. Mas tinha muito coiteiro que avisava a
polícia quando a gente ia para a cidade fazer compras. Aí a gente matava",
lembra.
Só não fez judiação com ninguém, garante. "Urubu comeu muito cangaceiro. Mas eu nunca cortei a cabeça de ninguém. Já tá morto, para que fazer mais? Isso aí é uma brutalidade", diz. E quanto à castração de lavradores, crueldade também atribuída ao cangaço? "Essa conversa de capar eu assuntei, mas não assisti não."
"Por que a senhora entrou para o cangaço?" Dona Duvinha, que foi a mais bonita daquele bando de Lampião - bem mais formosa que Maria Bonita, Moça Velha ou Inacinha. Ela responde de bate pronto: "Porque eu gostava de um cangaceiro (Virgílio). Eu era medrosa. Tinha a Mauser, tinha rifle, tinha punhal. Mas era só de boniteza", lembra Duvinha. Do cangaço, a bela mulher de Virgílio traz, além do atual marido, um terrível ferimento de rajada de metralhadora na perna esquerda e um pé semi-paralisado, consequência de picada de jararaca. Essa doeu. "No mesmo instante, eu fiquei cega. Urinava sem parar, puro sangue."
Só não fez judiação com ninguém, garante. "Urubu comeu muito cangaceiro. Mas eu nunca cortei a cabeça de ninguém. Já tá morto, para que fazer mais? Isso aí é uma brutalidade", diz. E quanto à castração de lavradores, crueldade também atribuída ao cangaço? "Essa conversa de capar eu assuntei, mas não assisti não."
"Por que a senhora entrou para o cangaço?" Dona Duvinha, que foi a mais bonita daquele bando de Lampião - bem mais formosa que Maria Bonita, Moça Velha ou Inacinha. Ela responde de bate pronto: "Porque eu gostava de um cangaceiro (Virgílio). Eu era medrosa. Tinha a Mauser, tinha rifle, tinha punhal. Mas era só de boniteza", lembra Duvinha. Do cangaço, a bela mulher de Virgílio traz, além do atual marido, um terrível ferimento de rajada de metralhadora na perna esquerda e um pé semi-paralisado, consequência de picada de jararaca. Essa doeu. "No mesmo instante, eu fiquei cega. Urinava sem parar, puro sangue."
E Lampião, era
mesmo aquele sujeito de ruindade pura que diziam? "Era bom. Ele andava na
razão dele. Grosseria foi o que fizeram com ele, com a família dele, a mãe, os
irmãos."
Sentados na sala do seu sobrado em Belo Horizonte, cercados pelos filhos João Batista, Murilo e Neli, Duvinha e Moreno assistem às imagens que mostram o bando de Lampião em seu acampamento. Vão reconhecendo velhos companheiros de cangaço. Moreno lembra-se de como teve de se opor a que Corisco matasse uma das mulheres do grupo, Maria de Pancada, e quase teve de enfrentar em duelo o terrível cangaceiro. Mas Corisco lhe deu razão e ele salvou Maria, que foi mandada embora.
Mas o momento-chave é quando Durvalina reconhece a si mesma, dançando e brincando com as armas. A filha Neli chora. "Como era bonita, minha mãe! E como era feliz!" O irmão João Batista a consola: "Não chora, minha irmã. O que passou, passou. Temos de viver no presente." João Batista diz que errado seria esconder esse passado, que é parte da história do País, que pode ajudar a esclarecer fatos importantes da vida da Nação. "Temos orgulho dos nossos pais."
Sentados na sala do seu sobrado em Belo Horizonte, cercados pelos filhos João Batista, Murilo e Neli, Duvinha e Moreno assistem às imagens que mostram o bando de Lampião em seu acampamento. Vão reconhecendo velhos companheiros de cangaço. Moreno lembra-se de como teve de se opor a que Corisco matasse uma das mulheres do grupo, Maria de Pancada, e quase teve de enfrentar em duelo o terrível cangaceiro. Mas Corisco lhe deu razão e ele salvou Maria, que foi mandada embora.
Mas o momento-chave é quando Durvalina reconhece a si mesma, dançando e brincando com as armas. A filha Neli chora. "Como era bonita, minha mãe! E como era feliz!" O irmão João Batista a consola: "Não chora, minha irmã. O que passou, passou. Temos de viver no presente." João Batista diz que errado seria esconder esse passado, que é parte da história do País, que pode ajudar a esclarecer fatos importantes da vida da Nação. "Temos orgulho dos nossos pais."
Moreno, que
detestava fotos recusa a tese de que sua figura aparece também nas imagens
mostradas na TV. Segundo ele, trata-se de um outro cangaceiro também chamado
Moreno, diz, só que este era paraibano. "Meu cabelo era grande, meu chapéu
muito bem-feito. E eu não carregava a arma desse jeito. Nunca estive do outro
lado da Bahia. Declarei hoje coisas que deveria ter guardado silêncio. Agora,
um cangaceiro que não sou eu vou dizer que sou eu?", reage indignado.
Observação:
Este trabalho foi publicado no dia 24-06-2006
http://www.orkut.com/CommMsgs?tid=2472124285136916734&cmm=176758&hl=pt-BR
Gentilmente cedido pelo poeta, escritor e pesquisador do cangaço Kydelmir Dantas
http://blogdomendesemendes.blogspot.com