Por: Rangel Alves da Costa(*)
CANGAÇO
- II (Artigo)
Na verdade, existem muitas obras que realmente procuram adentrar no cerne do
fenômeno para compreendê-lo e explicá-lo. Mas há um porém nisso tudo. Por que,
até o presente, não há um entendimento mais generalizado e mais coerente sobre
o cangaço? Ora, não se trata de uma história que possa ser contada segundo o
desejo ou a tendência do pesquisador. No cangaço, ou foi ou não foi, e está
acabado. O problema todo reside no fato da desconstrução do conhecido para
forjar o surgimento do duvidoso.
Mas devemos
reconhecer que não é tarefa fácil empreender um estudo mais aprofundado sobre o
cangaço. O próprio conceito, até hoje, ainda não foi delimitado, ainda não se
chegou a um consenso sobre o que realmente foi, o que objetivou e qual o seu
significado. Para se ter uma ideia, basta folhear alguns livros ou
enciclopédias para encontrar conceitos ora afirmando ter sido o cangaço um
movimento social, ora um tipo de reles banditismo, ou ainda um virulento grupo
de homens armados, dentre outras acepções.
Um destes
conceitos diz que o cangaço foi um fenômeno social ocorrido no Nordeste
brasileiro, de fins do século XIX até 1940, motivado pelas condições
político-sociais peculiares da região, tais como a estrutura feudal da
propriedade agrária e o atraso econômico. Caracterizou-se pelo aparecimento de
grupos de bandoleiros errantes, que percorriam o sertão saqueando fazendas e
cidades e lutando contra bandos rivais e polícia. Assim está no verbete da
Enciclopédia Universal Gamma.
Outra
conceituação recorrente diz que o cangaço é fruto do cenário de seca, fome,
concentração de terras e mandonismo instalados no Nordeste brasileiro. E cita
que as lutas entre famílias poderosas motivo o uso de armas, fato que ficou
conhecido como cangaço temporário. No passo seguinte, a violência deixa de ser
gerada por guerras particulares para se transformar no que se tem por cangaço
permanente. Contudo, não vejo com correção que se pretenda dividir o cangaço em
temporário e permanente, ou mesmo noutras divisões. E também errôneo, vez que
as rixas entre famílias poderosas não devem ser vistas como gestação
cangaceira. A não ser pelo uso do jagunço sertanejo para resolver os problemas
de sangue.
Já outra
conceituação, esta voltada para a origem do termo cangaço, afirmando que este é
o conjunto de armas que costumam conduzir os bandoleiros nordestinos. Sinônimo
de banditismo, de celeramento, de atrocidade, o nome cangaço vem de canga,
porque o bandoleiro antigo se enchia de armas, trazendo o bacamarte passado
sobre os ombros como uma canga; e, assim, se dizia que andava debaixo do
cangaço.
Há ainda
definições colocando o cangaço como sendo um movimento social ocorrido no
sertão nordestino durante o fim do século XIX e início do século XX; como um
fenômeno nordestino integrado por nômades que usavam violência para cometer
crimes na região; como um bando de homens armados conhecidos como cangaceiros;
como um fenômeno social, caracterizado por atitudes violentas por parte dos cangaceiros,
que andavam armados e espalhando o medo pelos sertões.
E, ainda, a
concepção do cangaço como um tipo de luta armada ocorrida no sertão nordestino
até os anos 40 do século passado, contando com grupos de homens armados que
vagueavam pela região em busca de meios de sobrevivência e enfrentando
poderosos com o uso de armas e desmedida ferocidade. Por fim, como um
tipo específico de banditismo que se desenvolveu no sertão nordestino, levado a
efeito por cangaceiros - bandos de malfeitores, ladrões, assassinos, bem
armados, conhecedores da região -, que assolavam e destruíam, impunemente, tudo
por onde passavam.
Concepções
desse tipo, aproximadas ou muito distantes da realidade, somente surgem pela
falta de uma conceituação geral e consensualizada proporcionada pelos próprios
pesquisadores e estudiosos. Mas não, o que se verifica são abordagens tão
diferenciadas que acabam permitindo interpretações as mais contraditórias
possíveis. E muitas, infelizmente, tratando o cangaço sob a ótica do puro
banditismo ou da sangrenta marginalidade. Ora, há muito mais nessa teia que a
aranha sedenta de sangue. Não se pode esquecer o casulo das injustiças
alimentando a prática.
Creio que a
conceituação do cangaço, pois, deve alcançar, em primeiro lugar, a sua
visualização como um caso peculiar de força maior. Um inevitável acontecimento.
Ou eclodia ou eclodia. Não foi movimento porque não nasceu organizado; não
surgiu como fenômeno porque já estava enraizado. E também não foi uma reles
expressão do banditismo, a não ser que se tenha como bandido comum o sertanejo
que se embrenha nas caatingas para lutar, ainda que não saiba realmente contra
quem ou o que. É, pois, na sua raiz que o cangaço deve ter o seu conceito
iniciado. Ora, não se encontra outra motivação para o seu surgimento senão como
um inevitável acontecimento, e fruto de uma força maior.
A força maior
que serviu como estopim já estava semeada no sertão nordestino. E com grãos
diferenciados. Foi a junção desses grãos, então denominados perseguições,
injustiças sociais, rixas particulares e indignações contra o sistema
estabelecido, que acendeu a chama do pavio. E na mão de um condutor, um homem
vitimado por tais mazelas, a chama logo se transformou em fogueira. E isto
desde o seu início nos tempos de antanho, pois quando Lampião entrou na luta,
lá pelos inícios da década de 20 do século passado, a estrada já havia sido
percorrida por outros bandos. No caso do Capitão, à persistência daquelas
mazelas se somaram rixas familiares e acusações crimonosas. Outro estopim, e o
mais violento de todos.
Desse modo,
tem-se até aqui o estopim ou a força maior diante da insuportabilidade frente
às mazelas de então como fato gerador e suas motivações. E se daí em diante a
vida dos rebeldes passou a ser no meio do mato, de vez em quando fazendo
investidas nas povoações e propriedades, sendo perseguidos pela polícia,
revidando e fugindo de novos ataques, tem-se então o terceiro ponto da
conceituação: a vida errante em meio a perseguições e ataques.
Nesse
entremeio, contudo, muitos outros fatores poderiam ser observados, tais como as
características da liderança cangaceira, os pactos firmados entre os ditos
bandoleiros das caatingas e poderosos, a arregimentação de novos elementos ao
bando, as estratégias e planos, as influências na vida sertaneja, as ações cangaceiras
em si. Mas não serviriam num conceito sintético, e sim num estudo mais
aprofundado.
Tais
entremeios devem dar lugar, pois, ao modo como se manifestou durante sua
existência. E as consequências enfrentadas pelos rebeldes das caatingas todo
mundo conhece. O que aconteceu em 38 na Gruta do Angico é o exemplo mais
célebre do fim do ciclo cangaceiro. Os primeiros grupos cangaceiros, ou
rebeldes primitivos, no dizer de Hobsbawn, também não suportaram a continuidade
da luta e tiveram o seu inexorável fim.
O terceiro e
último aspecto que não pode faltar numa conceituação diz respeito ao seu
significado. O que a armada rebeldia sertaneja representou historicamente? Qual
a contextualização do cangaço dentro da vida social e política brasileira? O
cangaço refletiu, ao menos em parte, as veladas contestações sociais de então?
A existência do cangaço foi importante ou não, e a que serviu? Por que a
realidade cangaceira é tantas vezes transformada em substrato mítico?
Logicamente
que tais respostas não caberiam numa síntese conceitual. Mas podem ser
sintetizadas para possibilitar uma visão geral do seu significado. Então,
sinteticamente, qual o significado do cangaço? Eis a questão. Com uma resposta,
porém. E tal resposta no sentido de afirmar que o significado maior do cangaço
foi ter se contraposto ao sistema vigente com o auxílio do próprio sistema, e
este representado pelas autoridades e poderosos.
Continua...
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
http://mendespereira.blogspot.com
http://jmpminhasimpleshistorias.blogspot.com