*Rangel Alves
da Costa
Seja burguês
ou assalariado, da metrópole ou da roça, não há quem dispense uma cachacinha,
seja de entrada - para esquentar, como tanto se diz - ou mesmo entremeando
outras bebidas. Tem gente que diz não ao uísque de marca e idade, porém não
consegue negar o copo da aguardente que lhe é oferecido. É um gosto popular
inequívoco, democrático, sem qualquer frescura na beberagem.
A cachaça
possui tamanha unanimidade e importância perante os costumes que até já teve
sua denominação legalizada. Com efeito, o artigo 92 da lei federal 4.851/2003
preceitua: Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana
produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito
por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida pela destilação do mosto
fermentado de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo
ser adicionada de açúcares até seis gramas por litro, expressos em sacarose.
O apelido de
aguardente vem precisamente pelo seu efeito imediato ao ser ingerido.
Afeiçoa-se a água, às vezes com o mesmo aspecto e brancura, mas quando tomada
logo começa a arder, tendo-se, pois, como uma água ardente. E é por isso, pelo
seu ligeiro queimor, que logo os olhos também afogueiam e as mãos reagem numa
batida de dedos. Diz-se ainda da pinga tanto como a cachaça como a aguardente.
Mas a primeira resulta da fermentação do mel da cana-de-açúcar, enquanto a
aguardente deriva da fermentação da borra do mel fermentado.
Mas tanto faz
que seja pinga, cachaça, aguardente ou caninha, vez que o bebedor quando faz
exigência é só pela marca ou pela aparência. Tem gente que gosta de Pitu, Serra
Grande, Pau de Arara, Caranguejo ou Tatuzinho, mas também tem gente que bebe o
que primeiro avistar no bar ou bodega: Ypióca, Caninha da Roça, Muricy,
Serrinha e muitas outras. Distingue-se também a cachaça industrializada,
artesanal (de marcas famosas e preços elevadíssimos) e a pura de engenho.
Para muitos, a
cachaça autêntica é aquela oriunda do engenho, branquinha, pura, com
fermentação própria e aroma peculiar. Esta, quando colocada em barris ou outros
vasilhames, vai se espalhando pelas distâncias, chegando aos sertões e aos
botequins. Contudo, dificilmente o sujeito irá encontrar uma cachaça pura de
engenho num botequim, pois a serventia desta quase sempre é para ser misturada
com as coisas da terra e colocada à venda com gosto próprio e sabor diferente.
Pelos sertões,
onde a cachaça é amiga, festeira e sempre apreciada, não há botequim que não a
tenha como atração maior. Há vendeirim que não vende outra coisa que não a
cachaça matuta, cabocla, preparada na mistura por ele mesmo. Não vende cinzano,
rum ou qualquer destilado industrializado, mas tão somente a danada misturada
com as ofertas da mata e transformadas em apreciados sabores. Dose a dose,
lapada a lapada, tudo por cima do velho balcão carcomido de tempo. E se tiver
uma frutinha de acompanhamento, então a desculpa para mais uma relepada.
É um cenário
já não tão comum, pois as autênticas bodegas estão rareando cada vez mais. Mas
ainda é possível uma precisa descrição, até mesmo por que as andanças
interioranas sempre levam a lugares assim. No velho botequim, de poucas
prateleiras com suas garrafas antigas e empoeiradas, nada mais se avista senão
as garrafas de cachaça logo na proximidade do balcão. E mais ao lado uma tábua
com paus enfiados e copos encardidos por cima.
Não uma
cachaça qualquer, de qualquer litro ou marca, mas a legítima casca de pau, como
pelos sertões é mais conhecida a aguardente pura misturada à casca, folha,
fruto, raiz ou raspa de pau. Quando misturada, a brancura da aguardente vai
tomando a cor de sua mistura. Há vendeirim que não coloca a cachaça à venda
antes de três dias de sua infusão. Dizem que é o tempo suficiente para que a
bebida absorva a essência da planta e passe a apresentar a cor específica da
madeira.
Não é ofício
para qualquer um, pois o vendeirim preparador deve ter cuidado para não colocar
demasiada raiz de pau e a bebida logo passar a amargar além da conta. Também
deve saber o momento ideal para ir completando o litro com mais cachaça, sob
pena de fazê-la perder o sabor. E também sabe que não vale a pena batizar a
pinga. O bom bebedor conhece quando a cachaça está aguada até mesmo com o litro
ainda na prateleira. Já o que não conhece corre o risco de beber e logo sentir
os inchaços aparecerem.
Mas há de tudo
num bom botequim. Um sortimento de fazer o bebedor pensar duas vezes antes da
escolha. Angico, umburana, quixabeira, ameixa, barbatimão, cidreira, cravinho,
e muito mais. E também ao que a casca de pau se destina como prevenção, pois é
sabido que antes de comer carne de porco gorda, sarapatel ou feijoada, a barriga
deve ser forrada com uma boa lapada de angico. Mas se mais tarde a barriga
doer, recorre-se a uma talagada de barbatimão e tudo estará resolvido.
Escritor
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