*Rangel Alves
da Costa
Somos o começo
ou o fim? Nem o profeta nem o sábio chegaram a consenso. Para o profeta, não há
começo nem fim enquanto a existência não possuir significação, pois haverá um
tanto faz no nascer no viver ou morrer. Para o sábio, começo e fim são
permanentes no homem, eis que precisa renascer a cada instante.
Alguém olhou a
chuva caindo e chorou. Outro viu a mesma chuva caindo e não chorou. Mas este
chorou quando a chuva cessou e aquele parou de chorar quando a chuva acabou.
Não se explica sentimento nem a sua forma de expressão. Aquilo que mais se
aproxima do estado sentimental de ser é o que tem o dom de provocar o sentir.
Nunca vi
ninguém reclamar – mas também é difícil encontrar pessoas que demonstrem contentamento
- porque a vida lhe traz inusitadas surpresas. Mas a vida é feita de
casualidades que nem sempre espelham os desejos da alma e as necessidades da
vida.
As borboletas
são mais amigas de umas pessoas do que de outras. Até jardineiro sabe disso. E
muitas vezes não saem das janelas daqueles que gostam, entram pelos quartos,
pousam e repousam nas camas, se tornam enfeites para suas cabeças diante dos
espelhos.
Os passarinhos
também fazem o mesmo. Não é difícil que deixem sua árvore frondosa e venham fazer
seus ninhos num cantinho qualquer do quarto amigo. E procurando causar
contentamento, cantarolam cantigas passarinheiras, fazem do umbral da janela um
galho seguro e ali gorjeiam felizes.
Ora o vento,
ora a brisa, e até a ventania em sua leveza, tratam determinadas pessoas de
modo totalmente diferente. Não assanham, não levantam as saias, não causam
arrepios, não levam pra longe as roupas estendidas no varal, não provocam
transtornos. Pelo contrário, pois chegam mansinhos, afagam, acariciam, contam
segredos bons de além, muito além das montanhas distantes.
Para alguns, o
tempo, os dias, as horas, e tudo que seja percurso de vida, passam de forma
muito diferente, sem causar as dolorosas consequências tão conhecidas. Pessoas
que a idade não deixa estampado o envelhecimento, mas um aspecto meigo de
sabedoria; que os dias não trazem as enfermidades crescentes, mas apenas sinais
e avisos para se cuidar melhor; que as horas não são inimigas, estressantes,
apavorantes, mas apenas momentos que sutil e levemente vão passando.
É até difícil
saber o porquê, mas muitas coisas da vida acontecem de modo diferenciado
perante determinadas pessoas. Passam os dias e os anos com saúde e louvável
forma física; as angústias, depressões e patologias comportamentais parecem nem
existir; os sonhos são sempre bons; os maus augúrios passam distante; o galo
canta para o seu despertar, o sino toca na sua Ave-Maria; abrem a janela ao
amanhecer e parece que a vida é que vem para o abraço.
E na primavera
o mais belo ramalhete; da estação, a fruta mais colorida e gostosa, disposta
num cesto de vime trazendo arremate de flor do campo; na viagem, a recordação
em forma de artesanato; no aniversário, a casa cheia de amigos, os presentes e
os festejos; na falta de qualquer coisa, sempre alguém para ajudar, para erguer
a mão, para não deixar nada faltar. Sempre tem de tudo e conta com tudo, e no
momento que precisar.
Agora acredite
no que vou dizer. Nos lares, recantos e caminhos desta vida são incontáveis as
pessoas que vivem recolhidas na suas dores, sofrimentos, angústias, carentes de
tudo, principalmente de apoio, de auxílio, de mãos amigas, de carinho, de
afeto, de aceitação, de compartilhamento, dos gestos humanos mais simples. E
nunca vi nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
A menina
descalça, a menina buchuda, a menina faminta, a menina linda e tão feia; o
menino desnudo, o menino lanhado, o menino marcado, o menino que já nem é mais
porque a vida antecipa o seu tempo; a mulher, o homem, o velho, o doente, o
abandonado, o carente, o pobre, o miserável, tudo relegado ao mundo do
esquecimento, e esquecidos continuam sem maldizer a vida. E nunca vi
nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
Não sei a
sorte é dádiva ou construção, não sei do acaso ou da predestinação, não sei
dizer se o merecimento é justo a quem não tem o devido agradecimento. Só sei
dizer que muitos não se alegram com nada do que de melhor lhes acontece;
enquanto que outros, os tantos outros que não conhecem de presentes nem de
cortesias da vida, continuam divinamente gratos por persistirem apenas com a
vida.
Agora vou
adormecer e acordar menino. Já vivi demais, já envelheci demais e agora preciso
descansar para renovar o que sou, ante tudo o que fui. Menino eu serei ainda
que jamais acorde do sono profundo. Eis que estas palavras são novas, ainda
brotarão como lição de viver. E como menino eu viverei até que as lições
envelheçam.
Escritor
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