Por Rangel Alves
da Costa*
Sem poder de
profetizar o que mais tarde seria conhecida como questão fundiária, direito de
propriedade, posse e desapossamento, reforma agrária e uma série de conceitos
que envolvem a terra, mesmo assim alguns sertanejos de priscas eras trouxeram
para si o poder da imensidão e do latifúndio sem jamais suar para ter um pedaço
de chão. E um destes foi Tertulino Bonome, ainda hoje lembrado pelo seu
sugestivo apelido: Terto Tudo Meu.
E os mais
velhos diziam que tal apelido surgiu porque o homem chegava na malhada,
colocava a mão acima dos olhos para refrear o sol, mirava adiante, nas lonjuras
sem fim, e dizia “Tudo meu”. E também porque acaso perguntassem a quem
pertenciam aquelas terras beirando o rio ou aquelas outras fronteiriças, ele
simplesmente respondia “Tudo meu”. Daí que às escondidas o chamavam também de
Terto Tudo Dele. Logicamente que todas as terras da região não pertenciam a
ele, mas grande parte sim. A outra parte estava dividida entre poucos.
Mas há um
longo percurso a ser conhecido. A maioria das capitanias hereditárias não
frutificou, os antigos donatários não existiam mais, as terras se perdiam de
vista sem que o governo pudesse dar uma destinação produtiva. Surgiram então as
sesmarias, ou propriedades entregues a colonos, cujas cartas registradas nas
paróquias garantiam título de propriedade aos trabalhadores. Mas como havia
exigência de trabalhar e produzir na terra, poucos conseguiam dar cumprimento e
acabavam repassando seus lotes para outras pessoas, que se tornavam como donas,
porém sem qualquer título.
Em 1822, o
governo resolveu dar uma basta nessa festa de repasse de terras e acabou com as
concessões de sesmarias. A partir de então, quem tinha documento paroquial
continuava como proprietário, mas quem não comprovasse teria de ficar de mãos
abanando. Então começou um problema. O posseiro, mesmo produzindo na antiga
terra do sesmeiro, não tinha título que comprovasse sua propriedade. Quer
dizer, tinha a posse, mas não o título. Então não tinha nada. E foi quando a
política logo cuidou de resolver a situação, mas logicamente em desfavor do pobre
trabalhador.
É a partir daí
que começa o poderio latifundiarista de Terto Tudo Meu e outros bem-aventurados
pelas governanças. Eis que antes de 1822, quando nos bastidores do poder
colonial já se falava na proibição da concessão de sesmarias e na garantia da
propriedade somente àqueles que já estivessem com o documento paroquial,
políticos influentes logo cuidaram de presentear seus amigos. E enviaram
missivas dizendo mais ou menos assim: “Vá até a paróquia e registre como de sua
propriedade a quantidade de terras que puder delimitar, e mesmo que não conheça
os limites exatos. Do resto cuido eu”.
Recado
enviado, providência tomada. Também já tendo conhecimento da ordem superior, o
responsável pela escrituração não fazia qualquer exigência, bastando que o
protegido do político dissesse onde suas terras se estendiam que logo as
informações se tornavam legalizadas. E daí surgirem escrituras cujos limites
citavam locais que nem mesmo os novos latifundiários sabiam existentes ou com
aquelas reais dimensões. E assim que a lei saiu da gaveta estes se tornaram
donos de quase todo o sertão, e dentre eles Terto Tudo Meu.
E os posseiros
que trabalhavam naquelas terras agora com novos donos? Ora, perderam de vez
todo e qualquer direito sobre elas. Tantos e mais tantos foram expulsos,
deixando para trás os seus sonhos e levando somente a família e os frangalhos, e
tantos outros tiveram de se submeter aos novos proprietários, tornando-se
assemelhados a escravos. Mas geralmente preferiam ir tentar a sorte noutro
lugar a se submeter aos mandos e desmandos do coronel de patente de barro. E
por isso mesmo a imensidão de latifúndios sem nada plantar ou colher, tomados
de mataria, sem serventia produtiva alguma, a não ser para o criatório de
rebanhos soltos.
Desse modo, as
terras do sertão foram divididas entre alguns escolhidos e se formaram os
imensos e tantas vezes improdutivos latifúndios. Os antigos posseiros que
continuavam achando ter algum direito sobre seus pedaços de chão, logo eram
surpreendidos com a ordem de urgente desocupação, pois ali tinha dono. O
próprio Terto mandou expulsar mais de vinte famílias de propriedades que nem
sabia existentes. Como as escrituras não delimitavam corretamente, então a
velha raposa estendia o ardiloso documento diante do pobre e analfabeto e dava
um prazo de um dia para pegar a estrada. Ou ali continuar como seu servo.
Os latifúndios
eram tão extensos que nem sempre os seus donos se preocupavam em fazer
cercamento. Não raro, o latifundiário só sabia onde terminavam suas terras pelo
início das terras do outro, ainda assim de forma imprecisa, tantas vezes
gerando graves conflitos, verdadeiras batalhas sangrentas. E foi assim também
que muitos aumentaram seus domínios. Havia luta pela questão do limite, mas nem
sempre o objetivo era a delimitação, mas a tomada da própria terra do outro, e
sempre após terríveis confrontos entre os jagunços.
Portanto, os
grandes latifúndios sertanejos surgiram das denominadas terras de eréu, ou
terras herdadas das forjadas cartas de sesmarias. Imensas propriedades
adquiridas do conluio entre o poder e as autoridades paroquiais onde se
registravam as terras indivisas, tendo como grandes beneficiários apenas alguns
escolhidos. E assim perdurou por muito tempo e ainda há vestígios de existência
dessa imensidão de terras em mãos de herdeiros de pessoas como Terto Tudo Meu.
Até que os sem-terra invadam tudo.
Mas Terto Tudo
Meu se deu mal. E por isso também é lembrado. Lançou o olho gordo em duas
tarefas de Miguelim e lá chegou se apresentando como verdadeiro dono, roçando o
documento encardido nas fuças do homem. No dia seguinte Miguelim deixou a terra,
mas também deixou o dono de tudo debaixo de sete palmos de chão.
Poeta e
cronista
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