Por Antonio Corrêa Sobrinho
Faz dois anos
agora em janeiro, que postei neste grupo de apreciadores, estudiosos e cultores
do cangaço o interessante ensaio sobre o banditismo nos sertões nordestinos,
publicado no jornal "O Globo", em 1927, tempo de um Brasil de
República Velha, de um Cícero Romão mandando, de um Antônio Silvino preso e de
um "Lampião" fazendo das suas.
O texto
completo foi dividido em seis capítulos. O primeiro eu trago agora. Os demais,
oportunamente
“O GLOBO” –
10/09/1927
A PSICOLOGIA
DO CANGACEIRO
O BANDITISMO
NOS SERTÕES DO NORDESTE BRASILEIRO
UM ENSAIO
POLÍTICO-SOCIAL
(Especial para o GLOBO)
A psicologia
do cangaceirismo, que nos infesta grandes zonas do sertão, e, por via de regra,
se trava com a politicagem, não tem sido até hoje estudado senão superficialmente,
da mesma sorte porque o banditismo não tem sido reprimido senão de modo falho,
sem consideração ou estudo das origens e do modo de ser daquela gente, a um
tempo cruel e altivo, e sempre com todas as surpresas de uma quase
inconsciência. É por isto mesmo que não podemos furtar à análise da opinião
pública uma série de artigos em que versou tão intrincado assunto um conhecido
político e ex-parlamentar do Norte, que se oculta de longa data sob o
pseudônimo de Justiniano de Alencar, e vem de escrever especialmente para “O
Globo” o referido trabalho ou ensaio, de que hoje oferecemos a primeira parte,
dos seis em que ele se divide.
CAPÍTULO I
Há bem pouco
tempo os jornais cariocas publicaram telegramas do Ceará, nos quais se
noticiava a breve captura do célebre “Lampião” e do seu bando, cercados que
estavam os bandidos em uma fazenda do interior daquele Estado. Dizia-se mesmo
que essa captura seria uma questão de honra, sendo impossível aos bandidos
escapar. As horas passaram; passaram dias, e novos telegramas traziam a triste
nova de que o audaz bandoleiro furara o cerco, internando-se no matagal. E os
jornais do Rio começaram a bordar comentários zombadores em torno do convênio
estabelecido entre os chefes de Polícia dos Estados do Nordeste para a perseguição
do bando sinistro, chegando algumas folhas a tecer irônicos ditirambos ao herói
do crime.
Entretanto, se aqui, no Rio, se conhecesse a geografia física e política do
Nordeste brasileiro, far-se-ia, certamente, mais justiça aos abnegados
policiais que vivem arriscando a vida, centena de vezes, contra um inimigo
quase invisível, protegido pelos acidentes do terreno, que conhece a palmo,
protegido pelas caatingas cerradas, onde rasteja como animal bravio, protegido,
em suma, pelo apoio que lhe prestam os parentes e políticos sertanejos, de
longa data habituados a um regime quase feudal e a se aproveitarem desses
infelizes escorraçados da sociedade para suas vinganças particulares.
Raras, raríssimas vezes, os bandidos enfrentam a força pública que os persegue
quando surpreendidos nessas horas noturnais formadas pelas arestas das serras
onde se acoitam. Em regra, quando surpreendidos nessas lutas temíveis,
tiroteiam durante minutos para abater alguns soldados, e, logo que presentem o
assalto da tropa para desalojá-los em luta corpo a corpo, fogem, internam-se
nas grotas profundas e quase inacessíveis, onde a perseguição é impossível para
uma força organizada e desconhecedora do terreno.
A tropa, então, ou volta para os povoados próximos, onde está aquartelada, ou
permanece algum tempo pelas redondezas do local da luta, em pesquisas sempre
infrutíferas, porque a tática do cangaceiro consiste em sumir-se como que por
encanto, não dar o menor sinal de si, manter-se escondido nos matos durante um
espaço de tempo calculado para que a calma de restabeleça, e surgir, de
repente, dezenas de léguas distantes dos lugares onde permanece a força
policial, para atacar uma fazenda isolada, que ele sabe, de antemão,
desprotegida de qualquer auxílio.
Jornadeando durante a noite por (...) atalhos, evitando as estradas públicas,
oculto durante o dia nas caatingas – o bando sinistro semelha (...) infernais
que aparecem e desaparecem com a rapidez do raio, deixando após sua passagem a
desolação e o terror. Como, se prevenirem esses (...)? Como se espalharem
forças policiais por uma região onde são percorridas, às vezes, 10, 15 e 20
léguas, sem se encontrar uma casa?
É preciso
conhecer-se a gênese do “Cangaceirismo” para se poder avaliar as dificuldades
quase insuperáveis que terão de vencer os governos dos Estados nortistas para
extingui-lo, quer se considere o desabitado da zona sertaneja, quer a geografia
física daquela região, como que projetada para a mantença dessa calamidade,
pela abundância de esconderijos constituídos por um mato baixo, cerrado e
coberto de espinhos, e por grotas profundas e quase impenetráveis, ou quer se
atente para os hábitos astuciosos do cangaceiro, misto de bravura e covardia,
de crueldade e clemência, de rapinagem e caridade, de desonestidade e honradez,
de fidelidade e perfídia, por mais que isto pareça paradoxal.
O Dr. Raul Azedo, médico insigne em Recife, é uma das inteligências mais cultas
do Brasil, conhecedor de grande parte dos sertões de Pernambuco e Alagoas, tem
publicado no “Diário da Manhã”, de Recife, uma série de artigos
interessantíssimos sobre o cangaceirismo, dos quais se evidencia o enorme
esforço que precisarão desenvolver os governos nortistas para vencer esse
flagelo dos sertões.
“O problema do cangaceirismo nordestino – diz ele – é um dos mais complexos
sobre que se pode exercer a análise do sociólogo. Emaranham-se na sua gênese
fatores remotos e atuais, de ordem étnica e física uns, de ordem social e
política outros.
A conquista do interior brasileiro se faz à custa de luta sangrenta e
prolongada, em que ao trabuco e à espada do invasor respondiam galhardamente a
flecha e o tacape do aborígene.
Não admira, pois, que para tais gentes, a bravura, a força física, a agilidade,
a destreza no manejo das armas, constituíssem as virtudes e os predicados mais
nobilitantes e invejáveis do ser humano.”.
Três raças, bem diversas, concorreram para formar o tipo de sertanejo do
nordeste brasileiro: - a dos índios, em luta constante contra os invasores do
seu território, que o caçavam como bestas-feras matando-os ou repelindo-os para
o centros portugueses, aventureiros, habituados no morticínio nos combates, que
invadiram o interior do Norte, uns sequiosos de ouro, que julgavam encontrar
com facilidade, outros para se apossarem de terras doadas pelo governo da
metrópole e que ali queriam estabelecer à força seus domínios, mantendo os
primitivos donos, sem misericórdia, desde que (como diz Raul Azevedo) “estavam
convencidos de se acharem em presença de seres fora da humanidade,
relativamente aos quais seriam descabidas a compaixão ou a observância de
quaisquer sentimentos afetivos”; e, por fim, a dos negros africanos,
escravizados e arrastados para aquelas terras, a serviço desses senhores
desumanos.
Assim, ora em luta permanente com os selvagens, ora suspendendo temporariamente
as hostilidades e, durante as tréguas, misturando-se, unindo-se sexualmente e
procriando, as três raças acabaram, com o decorrer dos tempos, por se fundir em
uma, com algumas virtudes inatas ao homem, mas onde predominavam os vícios, e,
sobretudo, os instintos guerreiros e sanguinários, alimentados pela ampla
liberdade em que viviam, longe dos centros de civilização e sem a mínima
sujeição legal.
Em tais condições é bem de ver que, sendo o sertanejo nortista um produto daqueles
antigos elementos em luta, desconhecendo os verdadeiros princípios sociais,
completamente ignorante de tudo o que não fosse a luta pela vida, livre de
códigos e de sanções penais, a sua lei era a lei selvagem – a da “força”; o seu
direito era a sua “vontade”; a sua justiça, o “bacamarte” e o “punhal”.
Mais tarde, quando as estradas de ferro foram penetrando pelo interior dos
Estados e os governos entenderam levar um pouco de civilização e de ordem
àquelas zonas selvagens, a política interveio para transformar os sertões em
feudos dos políticos que estavam no poder, e os sertanejos bravios passaram a
vassalos das autoridades que os subjugavam com os soldados de que dispunham a
seu talante. E, se algumas dessas autoridades procediam com prudência e justiça,
outras ligavam-se a uma família sertaneja de maior prestígio na localidade,
quer para efeitos políticos, quer para enriquecerem rapidamente, apropriando-se
de terras e gados pertencentes a outras famílias.
Mas, como a política varia e os que se achavam no poder caíam de chofre no
ostracismo, para dar lugar ao partido adverso, novas autoridades eram enviadas
pelos novos governos para os sertões, em substituição dos primeiros, que já se
encontravam donas de latifúndios e ligadas a uma ou mais famílias sertanejas;
e, como as novas autoridades, devidamente garantidas pela força pública,
queriam, por sua vez, criar e organizar seu partido político no sertão,
manobravam como as primeiras, ligando-se a outras famílias sertanejas, até
então desamparadas de prestígio, e procedendo em tudo e por tudo como aquelas
que substituíam.
É claro que, “mutatis mutantis”, a justiça dos novos dominadores, com raras
exceções, passava a proteger os sertanejos sectários do seu credo político, em
detrimento do “direito” dos adversários, tal qual como estes haviam procedido
quando dispunham das autoridades policiais e do prestígio político.
E assim foi a política se imiscuindo na vida sertaneja, dividindo em castas
inimigas aquela população bravia, e sucessivamente dando força e prestígio quer
a um, quer a outro grupo de famílias, conforme se achava no poder quer um, quer
outro dos partidos que governavam a Nação.
Ora, como os instintos selvagens do índio (que não perdoa ao inimigo),
associado aos sentimentos autoritários e violentos do europeu invasor, e à
barbaria supersticiosa e cruel do africano, continuavam a preponderar o
sertanejo nordestino, produto desse amalgama de sentimentos os mais opostos –
originaram-se, daquela intervenção vinda do litoral, lutas sangrentas entre as
famílias sertanejas que se não sujeitavam à convenção legal, preferindo a
justiça como a entendiam: primitiva, rápida, e exercida por suas próprias mãos
contra quaisquer ofensas recebidas, com o assassínio do ofensor; de modo que,
perseguidos como criminosos, uniam-se a parentes, internavam-se na vastidão do
nosso território, em luta perpétua, até à morte, com as autoridades
perseguidoras.
Eis como se gerou o tipo do “cangaceiro” – espécie de nômade, como o índio, seu
antepassado, sem habitação fixa, vagueando pelas caatingas e pelas serras
inacessíveis, vivendo como os animais, e denominado cangaceiro, do vocábulo –
“cangaço” (conjunto de armas) pelo fato de andarem esses criminosos carregados
de armas diversas.
Justiniano de
Alencar.
Fonte: facebook
Página: Antonio Corrêa Sobrinho
Grupo: Lampião, Cangaço e Nordeste
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