Por Francisco Frassales Cartaxo
Primeiro, chegou o padre. Depois,
pouco tempo depois, apareceu o livro “Vingança, não”. Muito antes, o povo do
sertão já sabia quase tudo sobre o cangaceiro Chico Pereira. O trabalho, as
brigas, o amor, as andanças, a aliança com Lampião, os malfeitos protagonizados
por ele, a morte envolta em mistério e insinuada traição política. Cresci
ouvindo minha mãe contar, em gotas homeopáticas, episódios cheios de violência,
ternura e dúvidas que corriam na boca do povo.
Dona Isabel, minha mãe, cearense de Várzea Alegre, carregava no coração o
sentimento despedaçado por lembranças de perseguição política, de injustiças,
sua família escorraçada do Cariri pelas improvisadas milícias dos partidários
do padre Cícero e Floro Bartolomeu. Terminou por esbarrar em Cajazeiras. Com
apenas dez anos de idade, ela colara à poeira da fuga marcas fortes de vingança.
Mais fortes do que a perda dos bens que seu pai, Zuza da Inácia, vendera a
preço de ocasião, ao sair de São José de Lavras, contrariado, carregando no
bolso um salvo-conduto assinado pelo patriarca do Juazeiro.
O cangaceiro Chico Pereira
Dona Isabel leu o livro
“Vingança, não”, de Francisco Pereira Nóbrega, como quem repassa a vida, a
lembrar do próprio pai, escondido nas matas, dormindo fora de casa com receio
de ser preso, agredido ou morto em pleno desenrolar da “guerra entre Crato e Juazeiro”,
em 1914. Parece até que agora revejo minha mãe deitada na rede, a claridade da
manhã surpreendendo seus olhos pregados nas últimas páginas do livro-depoimento
de padre Pereira.
Relembro a cena, ocorrida há mais
de 50 anos, ao reler o mesmo exemplar que as mãos de minha mãe viraram página
por página (Livraria Freitas Bastos, 2ª edição, 1961), o coração acelerado, a
memória avivada, a forte sensação de que os mortos estão vivos. Os mortos do
padre Pereira. E os meus.
Primeiro, chegou o padre. Jovem,
preparado, inteligente, fala mansa, ar de alheamento, a querer, quem sabe,
decifrar no interlocutor a intenção de descobrir nele um gesto, uma ponta de
fio que conduzisse à herança do pai cangaceiro. Padre Pereira chegou a
Cajazeiras carregado de novidades. Formou a Juventude Estudantil Católica (JEC)
e a Juventude Independente Católica (JIC). Não guardo lembrança da JOC. A JUC,
certamente não, pois no meado do século vinte só havia ginásio e escola normal
na minha cidade. Trouxe métodos de evangelização até então estranhos à Igreja
local. Reuniões em sítios, debaixo de árvores, quebrando a distância entre
orientador e orientado, abrindo debates francos, retirando de todos nós, jovens
católicos, o ranço de que tudo é pecado. E labareda, fogo do inferno a queimar
os pecadores. Padre Pereira mal falava no inferno...
O estigma de filho de cangaceiro
ia se esvaindo, sob o manto e a suave presença de sua mãe, dona Jarda. A gente
olhava para Jarda e enxergava Maria, a mãe de Jesus. Nem todos, porém, viam
assim. Outros alimentavam receios de serem contestados. Algumas novidades
introduzidas na prática religiosa pelo jovem sacerdote desagradaram aos
poderosos. O prefeito de Cajazeiras, o médico Otacílio Jurema, por exemplo, ao
ouvi-lo explicar, do púlpito, o porquê de um gesto considerado afrontoso aos
donos do poder, teria dito: não ouvi o padre, ali falou o filho do
cangaceiro.
Primeiro, chegou o padre.
Mobilizou a juventude e a sociedade em torno de um assunto tabu — o cabaré de
Cajazeiras. Conto como foi. Jornal de João Pessoa publicou uma carta assinado
por um desconhecido caixeiro-viajante, Duarte Resende, lamentando a presença do
meretrício em local inadequado. Cajazeiras crescera e o cabaré permanecia, bem
ali, atrás do cemitério Coração de Jesus, pertinho do Colégio Dom Moisés
Coelho. Uma afronta às famílias da terra do padre Rolim. Antes de ser publicada
a carta, já estávamos nós, os rapazes da JEC, de posse de sua reprodução em
forma de panfleto para distribuir de casa em casa, numa operação,
absolutamente, sigilosa. Exigência do padre Pereira para, entre outros
objetivos, seduzir os meninos da JEC... Divididos em grupos de duas pessoas,
cada dupla foi destacada para agir em um bairro, alta hora da noite, colocando
o papel por baixo da porta ou da janela. Neném Moésia (Deus o guarde) e eu
enfrentamos um imprevisto. Mal começada nossa tarefa - na atual Rua Engenheiro
Carlos Pires de Sá -, alguém pensando que se tratava de ladrões, abriu a janela
e meteu bala... Corremos sem olhar para trás... E sem cumprir a missão, claro,
pois quem espera por tempo ruim é lajeiro...
Chico Pereira
Corri até minha casa, o coração
saindo pela boca, as pernas feito vara verde, garganta seca, voz entrecortada
de angústia e medo. Meus pais, que estavam à minha espera na calçada, riram à
beça. Vivi minha primeira experiência de ação clandestina. Uma luta inglória,
talvez de pouco sentido social. Porém, isso não conta. Importa realçar a
liderança do padre Pereira. Ele era assim, corajoso, inovador, carismático,
ousado, cheio de novidades. E mistérios.
E o livro? Não deu tempo.
Primeiro o padre, depois o livro.
Esta crônica, publicada no jornal
Gazeta do Alto Piranhas, Cajazeiras, nº 324, de 25/02 a 03/03/2005, foi
revisada e ampliada para divulgação no www.cariricangaco.blospot.com.br
Francisco Frassales Cartaxo
Recife, Pernambuco
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