Material do acervo do escritor e pesquisador do Cangaço Archimedes Marques
O JULGAMENTO
DE LAMPIÃO
Divagações
entre o real e a utopia
Gerivaldo
Alves Neiva, Juiz de Direito
Bezouro,
Moderno, Ezequiel,
Candeeiro,
Seca Preta, Labareda, Azulão!
Arvoredo,
Quina-Quina, Bananeira, Sabonete,
Catingueira,
Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco!
Volta Seca,
Jararaca, Cajarana, Viriato,
Gitirana,
Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê!
Quando
degolaram minha cabeça
passei mais de
dois minutos
vendo o meu
corpo tremendo
E não sabia o
que fazer
Morrer, viver,
morrer, viver!
(Sangue de
Bairro, de Chico Science)
Virgulino
Ferreira da Silva, pelo povo também conhecido como “Lampião”, foi preso em
flagrante pela “volante” do Tenente Bezerra e apresentado a este
Juízo na forma da ilustração de autoria do cartunista @CarlosLatuff.
Esta é uma
decisão, portanto, que navega entre o virtual e o real, o passado e o presente,
entre o possível e o impossível, permeada de utopia, sonho e esperança... O que
se verá, por fim, é a evidência da contradição, não insolúvel, entre o Direito
e a Justiça. Quem viver, verá.
Inicialmente,
registro que não costumo me dirigir aos acusados por“alcunhas”, “vulgos” ou
apelidos. Aqui, todos têm nome, pois ter um nome significa, no mínimo, o começo
para ser cidadão e detentor de garantias fundamentais previstas na Constituição
brasileira. Neste caso, no entanto, abro uma exceção para me dirigir ao acusado
Virgulino Ferreira da Silva apenas como“Lampião”, pois creio que assim o
fazendo não lhe falto com o devido respeito. Ao contrário, faço valer, ao
tratá-lo como “Lampião”, a mesma reverência que lhe dedica o povo pobre e
excluído do sertão brasileiro.
Em seguida,
devo observar que a responsabilidade de julgar “Lampião” é tamanha e
me assombra. De outro lado, não aceito como “divino” o papel de
julgar. Deixemos Deus com seus problemas. Julgar homens é tarefa de homens. Da
mesma forma, tenho comigo que realizar a Justiça é tarefa do homem na história.
Assim sendo, passo a julgar “Lampião” como tarefa essencialmente
humana e com o sentido de que, ao julgar, o Juiz também pode contribuir com a
realização da Justiça ou, na pior das hipóteses, ao menos não impedir que o
povo realize sua história com Justiça.
Pois bem,
consta dos autos que “Lampião” teria sido preso em flagrante sob
acusação de formação de quadrilha para a prática de inúmeros crimes contra a
vida, contra o patrimônio e contra os costumes. Consta ainda dos autos os
depoimentos dos condutores – membros da “volante” do Tenente Bezerra
- e a representação da autoridade policial pela decretação da prisão preventiva
do acusado, sob argumento da “garantia da ordem pública.”
Ao estrito
exame das provas apresentadas, por conseguinte, e do que dispõe a lei, parece
pacífica a necessidade da segregação preventiva do acusado para garantia da
ordem pública, visto que restou provado, em face dos depoimentos colhidos, que
o acusado, de fato, representa grave perigo à harmonia e paz social. Isto é o
que se depreende do que se apurou até então e do que consta dos autos.
Imperativo, por fim, que se decrete a prisão preventiva do acusado,
segregando-o do meio social.
Antes de
concluir a decisão com a terminologia própria, o tal “expeça-se o mandado
de prisão, publique-se, intime-se, cumpra-se...”, recosto a cabeça na cadeira,
ajeito o corpo, fecho os olhos e ponho-me a pensar quantas vezes já decidi
dessa maneira, quantas vezes já decretei prisões preventivas por motivo de
garantia da ordem pública...
De súbito,
enquanto pensava, eis que “Lampião”, o próprio, saltitando feito uma
guariba, pula da gravura do @CarlosLatuff e invade minha mente. É virtual, mas
é como se fosse também real e humano na minha frente. “Parabellum” em uma
mão e o punhal de prata, cabo cravejado de brilhantes, em outra. Não tenho medo
e nem me assusto. Ele também não diz nada e agora apenas me olha e circula em
torno de mim. Somos pessoas e ao mesmo tempo ideias e pensamentos. O texto
final da minha decisão judicial, por exemplo, fazendo referência à garantia da
“ordem pública”, é como se fosse também algo concreto nesta cena, como um
pássaro rondando minha cabeça. De repente, com um tiro certeiro de“Parabellum”, “Lampião” esfacela
esta forma de pensar, que me ronda feito um pássaro, como se matando este meu “senso
comum teórico dos juristas”, conforme denuncia Warat. Em seguida, ainda atônito
e sem mais pensamentos para me agarrar, sinto uma profunda punhalada no
coração, mas não sinto dor alguma. Não sangro sangue, mas vejo jorrando do meu
peito todos os meus medos de pensar criticamente o mundo em que vivo, as
relações sociais e, sobretudo, o Direito.
O que faço?
Não tenho mais o “senso comum teórico dos juristas” e também não
tenho mais freios no meu modo de pensar criticamente o mundo e o Direito. “Lampião” acabou
com eles com um tiro de “parabellum” e uma punhalada com punhal de
prata. Agora, sem minhas “defesas”, que imaginava poderosas, sou como um
morto... Estou morto.
Na verdade,
estou morto e renascido livre ao mesmo tempo. Vejo, de um lado, meu corpo morto
e meu pensar antigo e, de outro lado, sinto-me renascido em outro corpo e outro
pensar. Morri para nascer de novo. Agora, nascido de novo, posso pensar
diferente; posso pensar um novo Direito e, por fim, posso pensar que a Justiça
é possível e que pode ser construída pelo homem novo. Está certo Gilberto Gil.
É preciso “morrer para germinar.” “Lampião” me matou para que eu
pudesse viver e ver. Viva “Lampião”!
E vivendo
depois da morte, vejo, agora, com “Lampião” ao meu lado, que aquele
antigo modo de pensar, na verdade, foi o fruto do ensino jurídico que incute
verdades e dogmas na mente de acadêmicos de Direito, que se tornam advogados,
que se tornam juízes, que se tornam desembargadores, que se tornam ministros de
tribunais e se imaginam sábios porque aprenderam a reduzir o Direito à lei e a
Justiça à vontade da classe que representam. Este é o Direito limitado aos “autos”do
processo e à tarefa de manter excluídos da dignidade os pobres e miseráveis; o
Direito da manutenção da falsa “ordem” burguesa; o Direito alheio à
vida, à pobreza, à miséria e à fome.
Posso ver
agora, com “Lampião” ao meu lado, que aquele modo antigo de pensar
aprisiona e mutila os fatos nos “autos” do processo. Assim, “autos” não
tem vida, não estão no mundo, não tem contradições sociais e transformam homens
em “delinquentes”, “meliantes” e “bandidos”. Reduz, pois,
todas as contradições do mundo e da vida em uma tolice: “o que não está no
processo não está no mundo.”
Agora posso
ver, com “Lampião” ao meu lado, depois de ter morrido para viver, ver
e violar dogmas, que “o mundo está no processo”. É, pois, no processo que
está a desigualdade social, a concentração de renda, séculos de latifúndio, a
acumulação da riqueza nacional nas mãos de uns poucos, preconceitos,
discriminações e exclusão social. Tudo isso é e está no processo. Isto é o
processo.
Vejo, por fim,
compartilhando esta última visão com “Lampião”, que os autos que me
apresentaram não tem mundo e nem vida. Não tem sua vida,“Lampião”. Não tem sua
história. Não tem seu passado. Não tem sua família. Não tem seus pais e irmãos
sendo expulsos da terra que cultivavam. Não tem sua dor e sua revolta. Não tem
sua sede e fome de justiça. Não tem sua desesperança na justiça. Não tem sua
vida, repito. Não tem nada e de nada servem esses autos. Não servem para um
julgamento. Servem para justificar uma farsa, acalentar os hipócritas e fazer
da mentira a verdade.
Esses “autos” que
me apresentaram, “Lampião”, não tem índios escravizados e mortos pelo
colonizador; negros desterrados e escravizados nesta terra; posseiros expulsos
de suas terras e mortos pelo latifúndio; operários explorados, desempregados e
desesperados; crianças dormindo ao relento; os sem-teto, os sem-terra, os
excluídos da dignidade. Esses autos não estão no mundo, é um faz-de-conta, uma
ilusão...
O que faço
agora? Estou morto de um lado, mas vivo de outro. Não sei mais o que é virtual
e o que é real. Sei que deliro, mas não posso deixar morrer este novo eu.
Preciso fazer com que permaneça vivo em mim o que renasceu e deixar morto o que
morreu. Não quero ser mais o que era antes de morrer. Quero ser apenas o que
renasci.
Luto comigo
mesmo e permaneço vivo. Estou vivo, escuto e vejo, agora, mais uma vez, tiros
de “parabellum” e golpes de punhal, como se saídos do nada e bailando
no ar, furando e cortando em pedaços os “autos” do processo. Agora,
não existem mais os “autos” do processo. Papéis picados tremulam no
ar. Voam descompassados como borboletas... Preciso manter a lucidez, mas agora
é tarde. A loucura tomou conta de mim e me levou com as borboletas para as “lagoas
encantadas” do sertão brasileiro. Agora sou pura utopia, sonho e
liberdade. Converso com “mães-d’água” à beira da “lagoa” e
todas as coisas agora fazem parte de tudo. Nada mais é sem as outras coisas.
Somos todos partes de um todo...
Neste devaneio
em que me encontro, não sei mais o que é o real, o que é verdade, o que é
passado ou presente ou se estou morto ou vivo; não sei mais - ou sei? - o que é
e para que serve o Direito. Delirando assim, não posso mais julgar. Estou
impedido de julgar. Não posso mais julgar Lampião. Eu não sou mais real, sou
sonho apenas. “Lampião”, também, não é mais real. É uma lenda, um mito.“Lampião” agora
povoa o imaginário dos pobres do sertão. “Lampião” não pode ser mais
julgado por um juiz apenas. Só a história e o povo podem julgá-lo agora.
Esperem! “Lampião” me
foi apresentado preso e eu preciso decidir sobre o flagrante. Preciso voltar...
As borboletas me trazem de volta da “lagoa encantada”em que me encantei.
Sou novamente real neste mundo virtual. Aqui estou e preciso falar. Assim,
enquanto a história não vem, mas inevitavelmente virá um dia, não posso deixar “Lampião” encarcerado.
A cadeia não serve aos valentes e aos destemidos; a cadeia não serve aos que,
como Marighella, nunca tiveram tempo para ter medo; a cadeia não serve aos que
não tem Senhor e aos que amam a liberdade. Homens verdadeiros não morrem
presos.
Portanto, “Lampião”,
a liberdade é tua sina. Vá. Talvez Maria te espere ainda. Talvez teu bando te
espere ainda. Talvez Corisco não precise te vingar. Talvez teu corpo não trema
por mais de dois minutos depois que degolarem tua cabeça. Vá. É melhor, na
verdade, que morra em combate com a “volante” do Tenente Bezerra do
que apodrecer e morrer vivo na prisão. Os valentes morrem lutando e escrevem a
história. Vá. É a história, somente ela, que tem a autoridade para lhe julgar.
Por fim, agora
concluo minha decisão inacabada: “expeça-se o Alvará de Soltura e
entregue-se o acusado, Virgulino Ferreira da Silva, “Lampião”, ao seu próprio
destino.” Dato e assino: Gerivaldo Alves Neiva, Juiz de Direito.
Depois disso,
as borboletas me levaram de volta ao mundo da paz, da harmonia e da
solidariedade, onde somos todos iguais e irmãos; de volta às“lagoas encantadas” do
sertão brasileiro e aos braços das “mães d’água”.
Como viram,
ouviram e imaginaram, este julgamento é um devaneio. Mistura de imaginação,
passado e presente, sonho, utopia e, sobretudo, esperança inquebrantável na Justiça.
Uma noite fria
e chuvosa, agosto, 2010.
Gerivaldo
Alves Neiva
Juiz de
Direito
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