O Brasil
coleciona personalidades que inspiram liderança.
Mas os heróis
de hoje podem não ser os de amanhã
Vivi Fernandes
de Lima
O paulistano
Benedito Eliseu dos Santos foi um dos mais de 25 mil brasileiros que lutaram na Segunda
Guerra Mundial. Ele não ostentava as divisas dos oficiais militares em sua
farda – era soldado – e não pôde ver a calorosa recepção que a população e o
governo brasileiro prepararam para a chegada dos pracinhas, vindos da Itália em
1945. Benedito morreu na guerra, como outros 456 expedicionários, e é
reconhecido como um herói pela Força Expedicionária Brasileira (FEB). Afinal,
“é melhor morrer em combate do que ver ultrajada a nossa nação”, já dizia o
primeiro-ministro britânico Winston Churchill.
Três pracinhas
da FEB. A guerra é um ótimo palco para se criar heróis, que muitas vezes só
desejavam voltar vivos e inteiros para suas casas – ACERVO FAMÍLIA NALVO
Hoje, Benedito
dá nome à rua de um colégio que homenageia todos os combatentes da Segunda
Guerra: a Escola Estadual Heróis da FEB, no Parque Novo Mundo, em São Paulo. A
escola e seu endereço não estão sozinhos na homenagem a esses homens: o bairro
inteiro tem ruas com nomes de expedicionários. Cristiane Matos, professora de
História do colégio, levou o tema para a sala de aula: “Fizemos um projeto em
que os alunos saíram à caça de documentos de ex-combatentes. Foi ótimo; eles
buscaram a história de cada um que dá nome às ruas”.
A atividade
fez com que os estudantes se interessassem pela guerra, o que nem sempre é
fácil. “Normalmente, os alunos não têm facilidade em relacionar os heróis com
os fatos históricos. Sobre Tiradentes, por exemplo, a maioria sabe que ele
morreu enforcado e que se parecia com Jesus. Só isso”, diz a professora. A
distância entre a figura do líder e a sua causa está presente até no caso de
Che Guevara, apontado por professores como o personagem histórico mais popular
para a juventude. Aqui, “muitos vestem a camisa com a foto do Che e não têm
noção da história dele. O que atrai o interesse dos jovens é mais o poder de
comando e de liderança do personagem do que a sua causa”, afirma Cristiane.
Em um primeiro
olhar, todos sabem quem é o famoso personagem da foto ligado a história cubana.
Mas nem todos sabem que ele é seguramente o argentino mais famoso no Brasil
(mais até do que Maradona), seus pais eram oriundos de famílias pertencentes a
classe alta do seu país de origem e nasceu em 1928 na cidade de Rosário -
Fonte – http://www.havana-cultura.com/
O professor de
História da Escola Estadual Tiradentes, em Umuarama (PR), Ângelo Alves,
concorda com a colega de profissão paulista. Mesmo estudando no colégio que tem
o nome do mais famoso inconfidente, muitos de seus alunos não reconhecem
Tiradentes como um herói. “Atualmente, a historiografia vem desmitificando muitos
nomes. O próprio Tiradentes se diluiu bastante. Já Che Guevara chama muito a
atenção dos jovens. Eles se encantam com seu espírito aventureiro e por ter
entrado numa luta que parecia impossível. E, claro, com o grande marketing que
é feito com sua imagem”, explica o professor.
Mas, afinal, o
que faz um personagem histórico ser reconhecido como herói? O poeta espanhol
Reinaldo Ferreira (1922-1959), em sua “Receita para fazer um herói”, menciona
alguns passos para a construção desse personagem mítico: “Tome-se um homem,/
feito de nada, como nós/ (…) Depois, perto do fim,/agite-se um pendão,/e
toque-se um clarim”. Para arrematar a receita, uma dica fundamental: “Serve-se
morto”.
Nesse ponto,
as definições de herói e mártir se assemelham. Mas a permanência do heroísmo de
quem sofreu por uma causa depende de muitas circunstâncias. “A construção de um
herói é, ao mesmo tempo, um processo político e histórico. Ou seja, um
protagonista da História delineia, simultaneamente à sua atuação, uma memória
de si mesmo e de seus atos”, explica a historiadora Cecília Helena Lorenzini de
Salles Oliveira, diretora do Museu Paulista da USP. A memória a que ela se
refere pode ser enaltecida ou difamada, durante ou após sua vida. Isso depende
dos objetos e documentos deixados, mas também da vontade de outras pessoas e de
segmentos sociais que interpretem este protagonista como um representante do
que desejam. “Assim, um protagonista que, para seus contemporâneos, não mereceu
consideração pode vir a se tornar posteriormente uma referência na compreensão
de certos eventos”, esclarece Cecília.
Já Tiradentes
só foi reconhecido herói, com direito a um feriado, 100 anos após a sua morte
Esse
reconhecimento pode demorar muitos anos, décadas e até séculos. No caso de
Tiradentes, a primeira celebração do 21 de abril ocorreu em 1881, 89 anos após
sua morte. A data só virou feriado nacional em 1890, no mesmo ano em que o 15
de novembro também passou a ser comemorado. Coincidência? Nem um pouco. Os
republicanos estavam ávidos por lançar um herói para o novo regime. E esta era
uma tarefa difícil, já que a Proclamação teve quase nenhuma participação
popular e, como o historiador José Murilo de Carvalho escreveu, “a pequena
densidade histórica do 15 de novembro (uma passeata militar) não fornecia
terreno adequado para a germinação de mitos”.
Enquanto
tentavam exaltar a imagem do marechal Deodoro, de Benjamim Constant e Floriano
Peixoto – que sequer foram heróis militares –, Tiradentes vinha aparecendo na
literatura e nas artes. O poeta Castro Alves chegou a se referir ao
inconfidente como “o Cristo da multidão”. Sua simpatia pela república – nos
moldes norte-americanos, e não nos da que foi implantada aqui – e a memória de
seu martírio couberam como uma luva na vaga de herói daquele momento político.
A proliferação de estudos sobre o personagem chegou a levantar a hipótese de
que Tiradentes teria escapado da forca, teoria desmentida posteriormente.
Em 1965,
quando o país estava novamente sob o regime militar, Tiradentes foi proclamado
patrono cívico da nação brasileira. O mesmo governo também decretou que todas
as repartições públicas do país afixassem o retrato do inconfidente, o que era
impensável no Império, quando se aclamava D. Pedro I como herói da
Independência, ou melhor, o neto da rainha que mandou executar Tiradentes. A
divulgação da imagem do imperador estava fortemente ligada à atuação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838 para criar uma
história nacional.
A figura de
Luís Alves de Lima e Silva, dependendo do grupo que ocupa a liderança máxima do
Brasil, pode ser cultuada como um grande herói nacional, a um cruel
exterminador de paraguaios e de brasileiros membros de movimentos libertários
Outro exemplo
de herói a serviço do governo é o duque de Caxias, que já era reconhecido pelos
políticos do Partido Conservador, do qual fazia parte, durante a Guerra do
Paraguai (1864-1870). “Ele havia tomado decisões em campo de batalha que
dirigiram os combates a favor do Império. Foi essa situação que fez com que sua
biografia se engrandecesse e que sua atuação anterior – no combate às
revoluções que ocorreram no Brasil nas décadas de 1830 e 1840 – fosse
interpretada de modo positivo”, explica Cecília Oliveira. Mas durante a
ditadura, a historiografia marxista atacou o herói militar, considerando-o um
assassino, por ter liderado o Brasil na guerra mais sangrenta da América
Latina.
Essa discussão
sobre quem são os heróis, expondo versões sobre “o outro lado” do senso comum,
pode parecer uma tentativa de derrubar os grandes personagens. Mas a questão
não é assim tão simplória. “Os estudos históricos, desde os anos 1920, têm
procurado desmistificar os heróis para evidenciar como foram projetados. Para o
historiador, o fundamental não é descobrir ou destruir heróis, mas
reconstituir uma época, um evento, uma situação, para entendê-los por inteiro,
nas suas várias facetas e contradições”, elucida Cecília.
Seguramente
este homem foi um grande líder para aqueles que o seguiam, um inteligente
estrategista e muito valente. Conhecer a sua história ajuda muito a compreender
o nosso atual flagelo da violência no Brasil. Infelizmente se perde muito tempo
na quase eterna discussão se ele foi herói ou bandido!
E contradição
é o que não falta quando ao assunto é um grande personagem. Além de suas
biografias terem diferentes versões com o passar do tempo, há também casos em
que o indivíduo é endeusado e demonizado num mesmo período. Assim é Lampião:
alguns batem palmas para sua origem humilde e para o discurso de que ele entrou
no cangaço para fazer justiça; outros têm repugnância por quem talvez tenha
sido o mais cruel dos bandidos do Nordeste. Já o padre Cícero é ainda uma
personalidade muito popular na região, onde nem sempre o senso comum está de
acordo com a historiografia acadêmica. Sua biografia não deixa escapar uma
possível aliança com o cangaço para combater a Coluna Prestes, liderada por
outro herói nacional, Luiz Carlos Prestes.
Como se vê, há
heróis para todos os lados. E se eles refletem, de certa forma, as
transformações das sociedades, é natural que novos heróis surjam a cada época.
Decretar um feriado em homenagem a Zumbi e à Consciência Negra, como ocorre
hoje em mais de 200 cidades brasileiras, só foi possível quatro séculos depois
do fim do Quilombo dos Palmares. Nesse caso, novamente a memória e a política
se unem. Desta vez, como resultado do crescente movimento em defesa dos
direitos dos negros.
Além de Zumbi,
o quilombola Malunguinho foi bastante perseguido em Pernambuco no século XIX e
é reverenciado como herói. “Hoje, este líder é muito comemorado no catimbó, no
meio da mata, com festas”, conta o historiador pernambucano Marcus de Carvalho.
Em 1827, tropas do governo enfrentaram o quilombo de Malunguinho, mas muitos
negros conseguiram fugir, inclusive o líder. Uma recompensa de 100 mil-réis foi
oferecida por sua captura ou morte. “Para se ter uma ideia do temor que ele
provocava, foi a maior quantia proposta pela captura de alguém vivo ou morto em
Pernambuco até a Cabanada (1832-1835)”, diz o historiador. Atualmente, o
quilombola é, inclusive, nome de uma lei estadual que criou a Semana Estadual
da Vivência e Prática da Cultura Afro Pernambucana, em 2007.
O marinheiro
João Cândido
O líder da
Revolta da Chibata, João Cândido, é outro personagem que foi ainda mais
valorizado com o movimento negro. Sua vida não para de despertar a curiosidade
de pesquisadores, que volta e meia encontram uma novidade sobre o Almirante
Negro. Aliás, enquanto ainda se investiga esse mito, a historiografia recente
traz a existência de outro líder da Revolta. Os historiadores Marco Morel e
Sílvia Capanema de Almeida publicaram recentemente descobertas sobre Adalberto
Ferreira Ribas (1891-1963), que provavelmente foi quem escreveu o manifesto com
as reivindicações do movimento contra os castigos corporais aplicados aos
marinheiros.
A descoberta
de novos heróis e a revisão dos antigos pode estar também associada ao aumento
de estudos biográficos. Durante muito tempo – aproximadamente até a década de
1970 –, a biografia não era considerada História por se tratar de uma
investigação sobre um indivíduo, e não sobre acontecimentos coletivos. Mas o
próprio Karl Marx, que é referência para a história social, já dizia que não
via os indivíduos como elementos isolados… Se a historiografia muda, os heróis
também podem mudar. Enquanto isso, a juventude brasileira veste camisetas com
estampas do argentino Che Guevara.
Saiba Mais –
Bibliografia
CARVALHO, José
Murilo. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
RÉMOND, René
(org.). Por uma História política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
MALERBA,
Jurandir (org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006.
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de um herói, Construir,Duque de Caxias, Ex-combatentes, FEB, Força
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Alves de Lima e Silva, Malunguinho,Marketing, pracinhas, Revolta da
Chibata, Tiradentes, Virgulino
Ferreira da Silva, Zumbi
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
http://blogdomendesemendes.blogspot.com