por Sebastião
Vicente*
Há uma praça
no caminho de Edmar Leitão. Ele degola com um tiro certeiro a estátua do vulto
municipal. Edmar Leitão nunca perde uma oportunidade de treinar sua pontaria. É
por isso que ele é o melhor pistoleiro do sertão. O bêbado de estimação da
cidade vem satisfeito mostrando a garrafa de brama que ganhou do bodegueiro.
Edmar Leitão afina a pontaria e acerta bem no meio da alegria do bêbado. Cacos
para todos os lados. Um dos cacos corta o dedo de um menino que brincava com
bolas de gude com outro garoto. O menino prende o choro quando percebe a
cicatriz que identifica Edmar Leitão. Uma negra passa pela praça equilibrando
na cabeça uma pilha de roupas que acabou de engomar. Edmar Leitão de repente
quer saber qual seria o estrago feito por uma bala num monte de panos. Mas ele
mira mal e o tiro acaba levando a orelha esquerda da negra. Roupas para todos
os lados.
Interessante o efeito, pensa Edmar Leitão, ciente de que errou o
tiro. Um ancião passa por Edmar Leitão e, surpresa, o cumprimenta com um
sorridente “bom dia”. Edmar Leitão devolve o cumprimento e até faz aquele gesto
de retirar o chapéu sem de fato o retirar.
Edmar Leitão
já caminhou o bastante para encontrar o paredão da casa onde mora seu alvo. As
outras mortes não importam ¿ importa esta, que é morte por dinheiro. Edmar
Leitão zela por seu ofício e gosta de serviços bem feitos. Um tiro fatal e
basta. Edmar Leitão não é do tipo que gosta de fazer seu alvo sofrer. Também
não admite conversa mole e nunca diz quem foi que o contratou. Nem quando quem o
contratou pede que o faça. Edmar Leitão mata e pronto. Há sempre um novo
contrato a cumprir. Edmar Leitão tem uma carteira vasta de clientes. Há muitos
homens marcados para morrer, pensa Edmar Leitão. E às vezes, mas muito
raramente mesmo, ele se pergunta por quê. Nunca tem tempo para encontrar uma
resposta. Antes que a encontre, sempre aparece outro cliente com outro contrato
de morte para ele cumprir.
Edmar Leitão
está diante do paredão da casa do homem que ele vai matar com um tiro só. Ele
vê um rapazinho magro, feio e triste entrando desesperado na casa do seu alvo.
Ele imagina que o rapazinho vai tentar avisar o seu alvo sobre a sua chegada de
maneira que o homem marcado para morrer tenha algum tempo para tentar fugir.
Mas Edmar Leitão não se incomoda com isso. Deixa que o rapazinho faça sua
tentativa. Edmar Leitão sabe que ninguém consegue fugir dele. É só uma questão
de tempo, de horas, de minutos.
O rapazinho
surge no alto da casa do alvo de Edmar Leitão. Mas o alvo de Edmar Leitão não
está em casa. Está chegando em casa, bem na hora em que Edmar Leitão saca a
pistola e escreve suas iniciais a bala no paredão. Dezenas de pares de olhos
espiam admirados por trás das frestas das portas a perícia de Edmar Leitão
desenhando E.L. a bala no paredão de sua vítima. O alvo de Edmar Leitão está
bem ao lado dele e tem uma visão bem melhor do anúncio de sua própria morte.
Mas o alvo não reage. Fica apenas parado, esperando Edmar Leitão matá-lo com um
tiro só.
No alto da
casa do alvo, o rapazinho não sabe bem como avisar sobre o perigo. O rapazinho
é ingênuo e ainda acha que há tempo de o alvo fugir. Ele pega a corda do sino e
pensa, procurando rapidamente a melhor forma de alertar o alvo. Pensa em tocar
as chamadas para a missa dominical mas logo conclui que não é o toque mais
apropriado. Então faz o sino badalar o toque que avisa a toda a cidade que
alguém morreu. Ele queria alertar o alvo para o risco de ser morto mas sem
querer acaba por sacramentar a morte já anunciada pelas iniciais de Edmar
Leitão no oitão da igreja. E por um momento o badalo do sino se confunde com o
estampido do tiro que Edmar Leitão dispara no pároco. Edmar Leitão não tem
pudor de matar religiosos. Edmar Leitão matou mais um. O padre já era.
De uma casa
distante, vem o som de uma radiola onde alguém ouve, impunemente, Roberto
Carlos cantando “eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu
latindo”. Edmar Leitão gosta daquilo e cantarola um pouquinho mas logo pára
porque não conhece bem a letra da canção.
Uns dois anos
depois de passada esta história que lhe conto, fui chamado às pressas para
fotografar um morto ilustre. Foi a polícia quem ligou para a redação onde eu
trabalhava como repórter fotográfico. O corpo estava numa cidade do interior,
distante uns duzentos quilômetros da capital. Tivemos que pisar fundo no
acelerador do Opala novinho em folha. Chegamos a tempo de fotografar o morto
antes que os vermes tomassem conta do corpo. E como sempre, onde havia morte
matada, lá estava ele, Edmar Leitão.
Mas desta vez
não houvera assassinato. O crime era de outra natureza. O corpo tinha a cabeça
estourada pela violência do disparo. Mesmo assim dava para identificar. E mesmo
que não desse, ao lado havia um bilhete escrito com caneta bic de tinta azul
sobre um pedaço de papel de embrulhar pão.
Fotografei o
corpo e o bilhete. A foto do corpo tenho comigo até hoje – aqui está. Mas a
foto do bilhete a polícia me tomou, na tentativa de convencer o povo de que
houvera uma perseguição e que a lei vencera mais uma vez.
Não se sabe até hoje o que levou Edmar Leitão a usar todo o seu talento com a
pistola para disparar contra a própria cabeça. Mas há especulações. E uma delas
perdura, graças à foto do bilhete que tirei naquele dia e que a polícia me
tomou.
A foto do
bilhete se perdeu, a polícia decerto queimou. Mas o sumiço dessa foto só
contribuiu para espalhar pelos quatro cantos do mundo a história que a polícia
queria evitar.
Dizem, até
hoje, que Edmar Leitão cansou daquela vida de pistoleiro famoso e resolveu se
aposentar. Mas pistoleiros não contribuem para o INPS e portanto não podem ir
ao banco receber aposentadoria como fazem os velhos do sertão.
Dizem também
que Edmar Leitão sabia que, se parasse de matar, perderia a prática e não
poderia se defender. Ele acabaria sendo morto. Era uma questão de tempo, de
horas, minutos. Pistoleiros não podem relaxar. Pois Edmar Leitão, apesar de
temido – ou justamente por isso – era caçado dia e noite tanto pela polícia
quanto pelos inimigos que fizera – ossos do ofício, ele dizia.
Por isso Edmar Leitão teria tomado sua decisão final. Edmar Leitão teria
encontrado um sósia, a quem teria matado para enganar a polícia e poder
descansar em paz.
E o bilhete
escrito com caneta bic no papel de embrulhar pão seria uma pista dessa
enganação.
O bilhete dizia: Adeus mundo cruel. Eu fui Edmar Leitão.
* Sebastião
Vicente, ou apenas Tião, é natural do Rio Grande do Norte, iniciou a carreira
de jornalista em Natal e deu continuidade a ela em Brasília. Depois de
trabalhar em diversos veículos impressos e de TV, virou servidor público e
agora edita programas na TV Câmara. Ele pode ser lido também no blog Sopão do Tião.
http://facadax.com/2007/02/26/eu-fui-edmar-leitao-segunda-parte/
Informação do http://blogdomendesmendes.blogspot.com
Edmar Nunes Leitão era um bandido do Rio Grande do Norte, e fazia seu nome atirando nos muros. - Infelizmente o nosso blog não dispõe da foto do Edmar Nunes Leitão ou Antonio Letreiro.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com