Por Dulce
Cavalcante
Escritora, autora das obras Bicicletas de papel e ...um chão para memórias
soltas
dulcinea.acs@gmail.com
Sentei-me no
canto e convoquei minhas saudades.
(Mia Couto)
Eu não preciso
me sentar em um lugar sossegado qualquer para convocar minhas saudades, minhas
memórias, ou a minha história, e trazer a minha identidade para o centro do que
quero analisar. Elas me acompanham por toda parte. É um séquito de
reminiscências a comporem o que gravita ao meu redor. Passos dados, caminhos
percorridos sejam aonde for, ou venham de onde vierem, e fatalmente aonde irão,
preenchem quaisquer vazios que por acaso me surjam.
Os anjos e querubins sopram trombetas, clarins e atraem, para o cortejo pelas
ruas da saudade, os meus amores idos e, em especial, os que ficaram e se
eternizaram. Aqueles que me machucaram e foram devidamente perdoados já
pertencem à obscuridade, não mais a mim.
Adélia Prado diz que “o que a memória ama fica eterno”. Verdade tão simples e
completa. No entanto, digna de mais sapiência, é termos tal comprovação nos
nossos dias cheios de afazeres, de percalços a interferirem nas meditações e no
“escoamento” do passado.
Nós somos feitos de memórias. Memórias de sonhos, de dores, de amores trançados
na doce esperança que não nos escapam. Também acumulamos, nas lacunas
intersticiais, o pensamento positivo que nos move, assim como alimentamos o
pensamento negativo, o qual nos enfraquece e mata nossos desejos. Facilmente esquecemos
as mágoas, mas as alegrias são sempre lembradas com distinção nas rodas de
conversa. É muito bom “vivenciar” os sonhos (apenas sonhados, realizados ou
mesmos os postergados), guardados numa poupança do que será, neste eterno há de
vir. Como assevera Mia Couto, não precisamos ipsis litteris nos recolher em um
canto repleto de silêncio e convocar a saudade. Elas chegam. No meio da
multidão, nas areias do deserto, no centro de um jardim de primavera ou em meio
ao caos urbano assustador. As lembranças estão aqui comigo, e não me
abandonam.
Felizmente dispomos dessa capacidade de nos abstrair de tudo em volta em
milímetros de segundos, de nos abstermos do mau pensamento num piscar de olhos,
bem como de nos livrarmos de um desentendimento mental mal elaborado num bater
de asas de um beija-flor. Que bom! Somos dotados de um aparelho cognitivo
complexo e único: o cérebro, a nos fornecer subsídios naturais à sobrevivência
e ainda a nos presentear com a perplexidade dos segredos invioláveis, guardados
a sete chaves. A vida, também, usa o corpo, fazendo-o de veículo; uma
locomotiva com incrível capacidade de armazenar, de cuidar e de transportar
pensamentos para quaisquer lugares. Em ocasiões diversas, aonde formos
fisicamente, ou quando vamos à toa, somente tangidos pelos pensamentos: folhas
que voam sem direção...
Hoje, vivo um dia a cada dia. “É coisa de velho”, muitos dirão. Muitos dos que
me veem, dos que me leem ou simplesmente passam por mim como um indivíduo. Sem
dúvida um indivíduo, porém, ao mesmo tempo, incólume, como se numa bolha
estivesse, invisível. Lamentavelmente invisível, diria.
Na realidade, o tempo do velho corre em outro relógio, com engrenagens inaptas
para a rapidez cotidiana. Aquele que manca, desanda, tateia, desequilibra,
claudica e cai... atrasa o andar das horas nas madrugadas insones. Os reflexos,
também, têm um tempo, o tempo da imprecisão e da desordem. Não pensem em
imprecisão como o não poder. Na situação limítrofe da velhice, apenas os
pensamentos não acompanham, na mesma velocidade, a ação. As limitações são uma
barreira, um ônus que nos é cobrado a todo instante indevidamente. Será? Por
que não culparmos nossos ossos frágeis, músculos flácidos, articulações
travadas, precisando de alongamentos... enfim tudo que disse, sobretudo
enfrentar um mundo mais competitivo? Culpemos o nosso corpo, o qual não
acompanha as peripécias, “a vida das minhas retinas tão fatigadas”, como
versejou Drummond. O poeta de Itabira entendia de rotina, de carregar pedras ou
encontrar pedras pelos caminhos, intransponíveis barrancos, de driblá-los e,
ainda, assoviar uma canção de amor, de otimismo; espantando males e tristezas,
como eu tento fazer.
Carpe diem disse Horácio, aconselhando uma amiga há mais de 2000 anos. Continuo
pensando: “Vai que eu consigo só mais um dia. Qual?! O dia de hoje, ora bolas!”
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