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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

CONVOCAÇÃO DESNECESSÁRIA


Por Dulce Cavalcante

Escritora, autora das obras Bicicletas de papel e ...um chão para memórias soltas
dulcinea.acs@gmail.com

Sentei-me no canto e convoquei minhas saudades.
(Mia Couto)

Eu não preciso me sentar em um lugar sossegado qualquer para convocar minhas saudades, minhas memórias, ou a minha história, e trazer a minha identidade para o centro do que quero analisar. Elas me acompanham por toda parte. É um séquito de reminiscências a comporem o que gravita ao meu redor. Passos dados, caminhos percorridos sejam aonde for, ou venham de onde vierem, e fatalmente aonde irão, preenchem quaisquer vazios que por acaso me surjam. 

Os anjos e querubins sopram trombetas, clarins e atraem, para o cortejo pelas ruas da saudade, os meus amores idos e, em especial, os que ficaram e se eternizaram. Aqueles que me machucaram e foram devidamente perdoados já pertencem à obscuridade, não mais a mim. 

Adélia Prado diz que “o que a memória ama fica eterno”. Verdade tão simples e completa. No entanto, digna de mais sapiência, é termos tal comprovação nos nossos dias cheios de afazeres, de percalços a interferirem nas meditações e no “escoamento” do passado. 

Nós somos feitos de memórias. Memórias de sonhos, de dores, de amores trançados na doce esperança que não nos escapam. Também acumulamos, nas lacunas intersticiais, o pensamento positivo que nos move, assim como alimentamos o pensamento negativo, o qual nos enfraquece e mata nossos desejos. Facilmente esquecemos as mágoas, mas as alegrias são sempre lembradas com distinção nas rodas de conversa. É muito bom “vivenciar” os sonhos (apenas sonhados, realizados ou mesmos os postergados), guardados numa poupança do que será, neste eterno há de vir. Como assevera Mia Couto, não precisamos ipsis litteris nos recolher em um canto repleto de silêncio e convocar a saudade. Elas chegam. No meio da multidão, nas areias do deserto, no centro de um jardim de primavera ou em meio ao caos urbano assustador. As lembranças estão aqui comigo, e não me abandonam. 

Felizmente dispomos dessa capacidade de nos abstrair de tudo em volta em milímetros de segundos, de nos abstermos do mau pensamento num piscar de olhos, bem como de nos livrarmos de um desentendimento mental mal elaborado num bater de asas de um beija-flor. Que bom! Somos dotados de um aparelho cognitivo complexo e único: o cérebro, a nos fornecer subsídios naturais à sobrevivência e ainda a nos presentear com a perplexidade dos segredos invioláveis, guardados a sete chaves. A vida, também, usa o corpo, fazendo-o de veículo; uma locomotiva com incrível capacidade de armazenar, de cuidar e de transportar pensamentos para quaisquer lugares. Em ocasiões diversas, aonde formos fisicamente, ou quando vamos à toa, somente tangidos pelos pensamentos: folhas que voam sem direção... 

Hoje, vivo um dia a cada dia. “É coisa de velho”, muitos dirão. Muitos dos que me veem, dos que me leem ou simplesmente passam por mim como um indivíduo. Sem dúvida um indivíduo, porém, ao mesmo tempo, incólume, como se numa bolha estivesse, invisível. Lamentavelmente invisível, diria.

Na realidade, o tempo do velho corre em outro relógio, com engrenagens inaptas para a rapidez cotidiana. Aquele que manca, desanda, tateia, desequilibra, claudica e cai... atrasa o andar das horas nas madrugadas insones. Os reflexos, também, têm um tempo, o tempo da imprecisão e da desordem. Não pensem em imprecisão como o não poder. Na situação limítrofe da velhice, apenas os pensamentos não acompanham, na mesma velocidade, a ação. As limitações são uma barreira, um ônus que nos é cobrado a todo instante indevidamente. Será? Por que não culparmos nossos ossos frágeis, músculos flácidos, articulações travadas, precisando de alongamentos... enfim tudo que disse, sobretudo enfrentar um mundo mais competitivo? Culpemos o nosso corpo, o qual não acompanha as peripécias, “a vida das minhas retinas tão fatigadas”, como versejou Drummond. O poeta de Itabira entendia de rotina, de carregar pedras ou encontrar pedras pelos caminhos, intransponíveis barrancos, de driblá-los e, ainda, assoviar uma canção de amor, de otimismo; espantando males e tristezas, como eu tento fazer. 

Carpe diem disse Horácio, aconselhando uma amiga há mais de 2000 anos. Continuo pensando: “Vai que eu consigo só mais um dia. Qual?! O dia de hoje, ora bolas!”

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