Por Rangel Alves
da Costa*
Falar em
ofício das espingardas é remeter aos tempos de um sertão de face mais
verdadeira que agora, pois mais valente, mais corajoso, mais destemido. Dizem
também de um sertão violento, cruel, respingando sangue dos enfrentamentos das
injustiças e trovejando fogo pelos canos jamais acovardados pelas perseguições
e tiranias. Aquele mesmo sertão de cangaceiros, coronéis, jagunços, coiteiros,
volantes e tantos outros cabras de sangue no olho.
Falar em
ofício das espingardas é reencontrar um cenário hostil, de paisagem carcomida
pela seca grande e pelo abandono do homem, onde o destino do desafeto estava na
mira escondida nos tufos do mato, detrás nos arbustos espinhentos e nos
emaranhados das catingueiras e cipós. Ali a tocaia sedenta, a emboscada
faminta, o ofício de derrubar a vida e chamar aos restos os bicos carnicentos
dos urubus.
Falar em
ofício das espingardas é falar em todo tipo de arma e munição que tornaram
aqueles sertões num verdadeiro arsenal. Baionetas, garruchas, bacamartes,
carabinas, clavinotes, mosquetões, parabéluns, pistolas, rifles, revólveres,
fuzis e muito mais. Mas também adagas, facas, punhais, facões, lâminas afiadas
que tanto serviam para abrir a mata e afastar as galhagens espinhentas como
para sangrar o bicho e o inimigo. Um tempo de “papo amarelo”, de “costureira”,
“de beijo quente”, de “bichinha”. Sem uso ficou a pistola de Lampião naquele
alvorecer sangrento de 28 de julho de 38 nos carrascais do Angico.
Falar em
ofício das espingardas é abrir o grosso livro dos tempos idos e nas suas
páginas carcomidas – porém tão realistas como as cabeças decepadas dos
cangaceiros - encontrar as motivações para um sertão levantado contra as
injustiças e opressões, as perseguições dos poderosos e um contexto onde o
pobre era escravizado tanto pelo Estado como pelo curral. Como fizera o senhor
do engenho com o negro de além-mar, também o senhor dono do mundo quis cuidar
daquele desvalido de além-túmulo.
Falar em
ofício das espingardas é ler nos testemunhos da história a grandeza sertaneja
diminuída pelo subjugo do homem da terra. Homem-bicho, homem-foice,
homem-enxada, homem-escravo, homem-nada. E do outro lado o poder do homem-tudo,
do dono do latifúndio, do coronel de patente política e conveniência, do dono
de currais com vozes silenciosas e amedrontadas, do dono de boiadas e de
cabeças de gente, do senhor absoluto da vida e da morte, sempre lastreado pela
outorga mandonista do próprio Estado.
Falar em
ofício das espingardas é recordar o pobre sertanejo tendo de sair de sua
casinha de cipó e barro e abandonar seu pedacinho de chão pela ordem raivosa do
coronel. Ou vende tudo por dois vinténs ou não terá nem cruz sobre a cova. É
relembrar o homem moço já envelhecido por força do trabalho desumano nas terras
do poderoso. Ou ganha o pão da miséria ou mais miserável ainda haveria de ser.
É recordar a voz que se insurgiu contra os grilhões do poder e por isso mesmo
tombou numa curva qualquer de caminho.
Não há que
falar em ofício das armas sem avistar o poderoso coronel ordenando sobre o
destino e sina do pobre e extenuado sertanejo. O mesmo coronel que acolhe ao
seu redor o rebotalho de assassinos e imprestáveis e os transforma em fiéis
escudeiros e paus-mandados para espalhar a sangria. Paga qualquer moeda,
promete proteção perante os crimes cometidos, fornece armas e munição, e depois
lê a cartilha das inimizades e desafetos e diz que a qualquer momento estejam
prontos para agir. E assim os inimigos são afrontados, os inocentes perseguidos
e qualquer um podendo cair nas graças da mira de uma carabina.
A verdade é
que era um sertão de muitos ofícios. O ofício da terra, o ofício da
sobrevivência, o ofício do ganha-pão, o ofício do enfrentamento das secas e
estiagens, o ofício do medo, o ofício da submissão, o ofício da incerteza. Mas
também o ofício da coragem, da valentia, do destemor. E foi pelo ofício do
fervor do sangue correndo nas veias que incontinenti brotou o ofício das armas,
das espingardas, de qualquer uma que cuspisse fogo e fizesse prova contrária do
troco merecido. Eis que homem valente é o sertanejo e se nega a suportar uma
desfeita quando pode resolver de outro modo. Então a guerra está feita.
Tem-se, pois,
que o ofício das espingardas simboliza, a um só tempo, tanto a vida como a
morte vida. Ora, carregar uma arma permite a continuidade e também o fim. E
naqueles idos de violência, tanto servia como proteção como para afrontar o
inimigo. Representa ainda um ciclo nordestino onde o estampido das armas contou
a própria história de um povo construindo sua identidade através de guerras
abertas, conflitos sociais e enfrentamento das situações as mais adversas.
O cangaço
nasceu assim, do ofício das espingardas. Um dia alguém deu voz ao seu sofrimento
pelas injustiças e perseguições e decidiu enfrentar o mundo e o poder ao redor.
E depois mais um, e ainda mais outro, e de repente estava formado um grupo de
rebelados. Mas a coragem e o destemor nada significavam ante a belicosidade
daqueles tidos como inimigos. Então lançaram mão das armas e se entrincheiraram
nos escondidos e veredas daqueles sertões de outra. E nunca se viu tanto cuspir
fogo como a partir daí. Nunca se viu tantas espingardas no seu ofício.
Poeta e
cronista
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