Por Hérlon Fernandes Gomes
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"Recebi cópia de libelo pelo qual sou acusado e do rol de testemunhas. Cadeia pública, 3 de Novembro de 1913. Francisco Pereira de Lucena."
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1. INTRODUÇÃO
Há alguns anos venho desbravando as fontes históricas, sejam na bibliografia conhecida ou nos documentos dos arquivos, acerca do personagem central de um romance, já em adiantada fase. Trata-se da pessoa do coronel Chico Chicote, brejo-santense radicado em Porteiras, na famosa localidade Guaribas, atacada em 1927, por quatro forças policiais e pelo consórcio de seus inimigos. Ele foi símbolo de poder naquela época, típico líder da era do bacamarte.
Um neto do próprio Chico Chicote, o advogado Djalma Inácio de Lucena, ao narrar o que sabia sobre as histórias do avô, contou-me sobre um júri à que fora submetido o coronel, na comarca de Belmonte, sem data certa. Não sabia maiores detalhes a respeito.
Com tais informações, em pesquisas na hemeroteca da Biblioteca Nacional, acabei por descobrir a notícia de um jornal, revelando a prisão de Chico Chicote, no ano de 1913, em Belmonte, Pernambuco.
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Jornal do Recife - Terça-feira, 11 de Novembro de 1913. |
Com esse fio, conversando com Valdir Nogueira, amigo que a família Cariri Cangaço me agregou, residente naquele local, conversamos sobre a minha sonhada vontade de poder encontrar os autos daquele processo-crime, certamente uma fonte de informações preciosas, considerando a oficiosidade dos atos judiciais.
Conversamos sobre muitos fatos curiosos da antiga Villa Bella; Valdir me disse que, por coincidência, seguiria até Recife, no dia seguinte, e daria um pulo no departamento histórico do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, onde o processo talvez estivesse arquivado.
Qual não é minha surpresa quando recebi os preciosos documentos: o processo de primeiro grau e a respectiva apelação.
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Folha de rosto do Processo Crime - 1913 - Juízo Municipal de Belmonte. |
Ao folhear as velhas páginas destes autos, senti-me como talvez se sentiram os arqueólogos que abriram a tumba de Tutancámon; ao transcrever os rebuscados manuscritos, senti-me como um Sherlock Holmes. Foi o mais próximo que consegui chegar do famigerado coronel.
Conforme CALEIRO, et al, os processos “são testemunhos dos costumes e da constituição do universo físico e mental do período analisado, bem como da ação da justiça institucionalizada. As imagens que se depreendem da leitura destes documentos descortinam relações de poder, amor, ódio, violência e solidariedade.”
O processo, presidido por uma autoridade de Estado, um juiz togado, respeitado o Contraditório e Ampla Defesa, é documento valiosíssimo para a pesquisa, porque seu conteúdo reflete “aspectos da vida cotidiana, uma vez que, interessada a justiça em reconstruir o evento criminoso, penetra no dia-a-dia dos implicados, desvenda a sua vida íntima, investiga seus laços familiares e afetivos registrando o corriqueiro de suas existências” (MACHADO, 1987, p. 23).
Compartilho, pois, com todos vocês da análise de transcrições relevantes de peças do dito processo. Certamente, minha intimidade com o processo penal facilitou-me a tarefa. É um precioso mergulho no tempo.
2. A DENÚNCIA
Por libelo crime em cartório diz a justiça pública, como autora, por seu promotor, contra os réus Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote; Antônio de Lira; José Luiz e Laurentino de Tal, por esta ou na melhor forma de direito.
E.L.C.
1. Provará que no dia 12 de Agosto de mil novecentos e seis, de 3 para 4 horas da tarde, no lugar Mameluco, deste município, os réus desfecharam diversos tiros de rifles em Félix de Tal, dos quais um o atingiu produzindo-lhe o ferimento descrito no presente sumário.
2. Provará que este ferimento por sua natureza e sede foi causa eficiente da morte do ofendido.
3. Provará que os réus cometeram o crime impelidos por motivo frívolo.
4. Provará que os réus cometeram o crime com superioridade em armas de modo que o ofendido não pudesse defender-se com probabilidade de repelir a ofensa.
5. Provará que os réus cometeram o crime com premeditação mediando entre a deliberação criminosa e a execução o espaço pelo menos de 24 horas.
6. Provará que os réus cometeram o crime com surpresa.
Nestes termos, pede-se a condenação dos réus nos graus máximos do art. 294, §1º, do Código Penal, por se dar nas circunstâncias agravantes do 39, §§2,º, 4º, 5ª e 13º do mesmo Código Penal.
E para que o crime se julgue, se oferece o presente libelo que se espera seja recebido e afinal julgado provado.
E. Custas
Requeiro a bem da acusação que tenham lugar as diligências legais e especialmente que sejam notificadas as testemunhas abaixo arroladas para comparecerem às sessões do julgamento a fim de afirmarem o que souberem e perguntado lhes for acerca do presente crime.
Rol de Testemunhas:
1. José Feijó de Medeiros
2. [?] Ribeiro de Melo
3. Antônio Feijó de Medeiros
4. José Pinho Celestino
5. Amaro Pereira de Araújo
6. Alexandre B [?] de Araújo
Umas residentes no Ceará, outras neste município
Villa Bella, 13 de Junho de 1913.
O Promotor Público
Januário Batista do Amaral
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Libelo acusatório. |
3. A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA: MOTIVAÇÃO DO CRIME E INTERROGATÓRIO DO RÉU
O juiz presidente do Tribunal do Júri foi do Dr. Felisberto dos Santos Pereira, natural de Rio Formoso, zona da Mata de Pernambuco. Nascido em 1882 e formado em 1907, pela Faculdade de Direito do Recife, sendo colega do poeta paraibano Augusto dos Anjos.
Destaco trechos relevantes a oitiva das testemunhas.
a) 1ª TESTEMUNHA
José Feijó de Medeiros
Que achava-se no campo, na qualidade de vaqueiro que era, no dia doze de agosto de mil novecentos e seis, data em que se deu o fato delituoso de que se trata, (…) quando ela testemunha vinha saindo de uma vereda que desemboca na estrada de Canabravinha deste termo, aí encontrou-se inesperadamente com o denunciado Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, e mais três indivíduos aos quais ela testemunha não conheceu; que aí todos lhe disseram - boa tarde - e um deles dirigindo-se a ela testemunha disse-lhe que desse lembrança a Félix de Tal que agora iria levar carta no inferno; que logo após os citados indivíduos, todos armados de rifle, continuaram o seu caminho pela referida estrada e ela testemunha surpresa com o que acabava de ouvir, dirigiu-se imediatamente a sua casa, onde deixou a roupa de couro, digo de campo, logo se encaminhando para um açude próximo em que o citado Félix trabalhava; que em ali chegando encontrou ele à margem do açude referido, de pé e recostado a um pau, o aludido Félix, que apresentava um ferimento mortal na região lombar, produzido por bala, ferimento este que atravessando todos os tecidos da região, veio terminar do outro lado na região abdominal correspondente; que ela testemunha indagando de Félix o motivo de semelhante desgraça, este lhe respondeu que há poucas horas apenas fôra surpreendido no seu trabalho pelos denunciados Chico Chicote, José Luiz, Antônio de Lyra e Laurentino de Tal, os quais se aproximando dele ofendido, descarregaram-lhe cerrada carga de tiros, ouvindo antes Chicote dizer para seus companheiros: - O homem é este - que o próprio Félix disse a ela testemunha ter contado onze tiros na ocasião dos disparos e que não obstante estar armado de garrucha, tão atarantado ficou que dela não fez uso; que ela testemunha verificou na vítima além do ferimento descrito uma espécie de queimadura no braço direito, sendo de presumir que tivesse sido feita por alguma bala mal alvejada; que Chico Chicote e seus companheiros se aproximaram da vítima sem que esta pressentisse, tanto que ao passarem pelo rancho que Félix ali fizera para descanso nas horas mais quentes do dia, apanharam o rifle do mesmo Félix que ali estava, carregando-o depois do fato; que a opinião corrente e mais segura é a de que o motivo do crime foi determinado pelo fato de Félix ter dito ao seu patrão e compadre Manuel Chicote, irmão do primeiro denunciado, que este havia pegado dolosamente uns bois de propriedade do referido Manuel Chicote; que dias depois José Chicote, também irmão do referido denunciado, fez público que o fato fora levado ao conhecimento de Manoel Chicote, por Félix; que inconformado [?] com a denúncia de Félix, Chico Chicote prometeu que tomaria uma vingança, seria logo que se encontrasse com o mesmo Félix; que este sendo avisado do sinistro que contra si se tramava, resolveu mudar-se para Mameluco deste termo (...)
b) 2ª TESTEMUNHA
De...do Ribeiro de Melo:
(…) Que estava em sua casa no lugar Mameluco deste termo, por volta de quatro horas da tarde do dia doze de agosto de mil novecentos e seis, quando aí chegou José Feijó de Medeiros, e lhe disse que a curta distância dali e num açude em que estavam trabalhando Félix de Tal e outros trabalhadores, com uma garruncha, dela não se serviu, que além desta arma Félix tinha no rancho em que costumava descansar, e ali também situado, um rifle que os criminosos após o delito carregaram; que o motivo do fato delituoso referido é público e notório, foi ter Félix, quando morava no Cariri, denunciado de Chico Chicote ao patrão dele Félix, Manuel Chicote, irmão do denunciado, por ter este pegado uns bois do irmão com dolo; que sabedor desta denúncia Chico Chicote ficou seriamente [ilegível] com Félix, prometendo que desforraria do seu atrevimento na primeira ocasião em que o encontrasse. Que devido a este incidente, Félix deixou a companhia de seu patrão e veio para Mameluco, onde há apenas um mês se achava trabalhando no aludido açude; que Chicote e os seus companheiros sabendo o paradeiro de Félix vieram a seu encontro (...); que incontinente ela testemunha saiu de casa em demanda do açude ali encontrando Félix banhado de sangue e apresentando um ferimento produzido por bala de rifle, a qual penetrando na região lombar esquerda e atravessando os intestinos veio sair na região abdominal correspondente próximo ao umbigo; que dirigindo-se a Félix perguntou-lhe como se dera aquele fato, ao que este respondeu que estando no seu trabalho foi de surpresa acometido por Chico Chicote e mais três indivíduos (...) que sobre a conduta do primeiro denunciado, ela testemunha tem ouvido dizer ser muito irregular por se ele homem perverso e dado ao cangaço; que dos outros denunciados nada sabe por não ouvir dizer, nem conhece-os; que o morto era homem trabalhador e de bons costumes. E por mais não dizer nem lhe ser perguntado, deu-se por findo este depoimento, que lido e conforme assina a rogo da testemunha.
c) 3ª Testemunha
Antônio Feijó de Medeiros
(...) que conhece desde menino Chico Chicote, e faz do mesmo péssimo juízo, pois sempre o conheceu como turbulento e dado ao cangaço, sabendo igualmente que ele é autor de outros crimes além deste, no Estado do Ceará, embora lhe conste não estar sujeito a processo naquele Estado; que o seus corréus, segundo consta, são cangaceiros de profissão, mas ela testemunha nada sabe de positivo a respeito da conduta dos mesmos; que relativamente a Félix o conhecia de pouco tempo, mas sempre o viu proceder com correção, mostrando-se trabalhador e honesto.
d) 4ª Testemunha
José Pedro Celestino, conhecido por José Dutra, com cinquenta e oito ano de idade, casado, agricultor, natural do Estado da Paraíba, residente em Porteiras, Estado do Ceará, não sabe ler nem escrever, aos costumes disse nada, testemunha jurada na forma legal, prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado.
E sendo inquirida a denúncia de folhas, que lhe foi lida, respondeu: que no dia em que se passou o fato criminoso, ela testemunha achava-se no lugar, digo, no local em que o mesmo fato se passou, num açude em que com Félix estava trabalhando; que ela testemunha achava-se em cima da barreira do açude e Félix embaixo marcando a parede do mesmo açude, quando de repente ouviram o estampido de sucessivos tiros e a voz do denunciado Chico Chicote chamar - "Morreste, negro', que Félix, implorando em gritos a proteção divina procurou fugir à sanha dos seus agressores, correndo de riacho acima, ao passo que o tiroteio continuava; que ao saltar uma cerca recebeu uma bala, que penetrando na região lombar direita, perfurou os intestinos vindo sair na região umbilical produzindo grande derramamento de sangue acompanhado da expulsão de uma parte do tecido adiposo da aludida região; que do grupo criminoso ela testemunha conheceu bem aos denunciados Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, e José Luiz, vindo a saber depois de fonte insuspeita que os outros eram Antônio de Lyra e Laurentino e de Tal; que Félix estava na ocasião armado de uma pistola pequena, mas dela não se serviu, tendo a fora dessa arma e num rancho ali também situado um rifle que os criminosos carregaram; que depois de praticado o crime o denunciado José Luiz quis obrigar a ela testemunha a entregar o aludido rifle que depois eles encontraram no aludido rancho; que o denunciado Chico Chicote disse a ela testemunha tempos depois que não tinha dado esse conhecimento no dia em que atiraram em Félix, porque então não estava ainda bem informado dos precedentes dela testemunha a respeito dele denunciado, aludindo assim a informações caluniosas que pessoas suas desafetas haviam dado a seu respeito ao mesmo Chicote; que o fato criminoso originou-se de uma denúncia que dizem Félix ter dado contra Chico Chicote aos irmãos deste, denúncia que se baseava no fato de ter Chico Chicote ilicitamente pegado uns bois de seus irmão; que divulgado esse fato, Chicote entrou a perseguir Félix, de modo tão tenaz que obrigou este a retirar-se da companhia de seu patrão no Cariri para vir trabalhar no Mameluco, deste município; que aí chegando não suspeitava sequer dos planos criminosos do seu desafeto por estar longe de suas vistas quando de chofre foi atacado pelo mesmo do modo já referido, o qual teve como companheiros os demais denunciados
4. INTERROGATÓRIO
Interrogatório do réu Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote.
Perguntado qual o seu nome, naturalidade, estado, idade e residência?
Respondeu chamar-se Francisco Pereira de Lucena, conhecido por Chico Chicote, natural do Estado do Ceará, com trinta e quatro anos de idade, casado, residente no município de Porteiras, do Estado do Ceará.
Perguntado qual o tempo de sua residência no lugar declinado?
Respondeu que há cerca de cinco anos.
Perguntado quais seus meios de vida e profissão?
Respondeu que agricultor e criador.
Perguntado se sabia ler e escrever?
Respondeu que sim.
Perguntado se sabia o motivo pelo qual era acusado e se precisava de algum esclarecimento a esse respeito?
Respondeu que sabe por ter recebido cópia do libelo.
Perguntado se conhece as testemunhas que juraram neste processo e se tinha alguma causa a opôr contra elas?
Respondeu que conhece a(ilegível) a de nome José Dutra, que é parente do morto, sendo as demais suas desafetas.
Perguntado se tinha algum motivo particular a que atribua a acusação?
Respondeu que não.
Perguntado se tinha fatos ou provas que justificassem ou mostrassem sua inocência?
Respondeu que tem e o seu advogado oportunamente dirá.
Perguntado se tinha mais alguma causa a declarar ou esclarecer?
Respondeu que não.
6. VEREDICTO
O júri depois de haver nomeado dentre si por escrutínio secreto e por maioria absoluta de votos, o seu presidente e secretário da leitura recomendada pela lei e mais formalidades desta, respondeu aos quesitos pela maneira seguinte:
Ao 1º quesito:
Não, por nove votos
O réu Francisco Pereira de Lucena, vulgo Chico Chicote, de 3 para as 4 horas da tarde, do dia 12 de Agosto de 1906, no lugar Mameluco deste Município de Belmonte não desfechou tiros de rifle em Félix de Tal produzindo-lhe o ferimento descrito no corpo de delito [ilegível] deste sumário.
O júri deixa de responder aos demais quesitos por se achar prejudicado com a resposta do primeiro.
Sala secreta do Júri de Belmonte, 26 de Novembro de 1913.
Hérlon Fernandes Gomes, Porto Velho, Rondônia, 11 de Outubro de 2021.
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