Por Antônio Corrêa Sobrinho
SALVO MELHOR
INFORMAÇÃO, ESTA FOI A PRIMEIRA MENÇÃO FEITA NA IMPRENSA NACIONAL, AO FILHO DO
CANGACEIRO CRISTINO GOMES DA SILVA CLETO (CORISCO), SILVIO HERMANO E AO PAI
ADOTIVO DE SILVIO, O PADRE BULHÕES. REFIRO-ME À MATÉRIA DO JORNALISTA TEÓFILO
DE BARROS FILHO, DOS DIÁRIOS ASSOCIADOS E REDATOR DO DIÁRIO DA
NOITE, DO RIO DE JANEIRO, QUE COLHO NO DIÁRIO DE PERNAMBUCO, DE
24/07/1940, DOIS MESES PASSADOS DA MORTE DO CÉLEBRE "DIABO LOURO".
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O FILHO DE
“CORISCO” QUER SER AVIADOR
SILVIO
HERMANO, COM QUATRO ANOS DE IDADE, FOI ENCONTRADO NO INTERIOR DE ALAGOAS –
MARIA CELESTE, A OUTRA FILHA DO BANDOLEIRO – “DADÁ” QUER VER AS CRIANÇAS ANTES
DE MORRER
MACEIÓ – Via
aérea – o vento zumbia nas frestas das janelas. A noite chuvosa era uma fria
ameaça de gripe contra o repórter. Estava eu em Santana do Ipanema, no interior
do Estado. Tinha de me transportar a Pão de Açúcar, nas margens do São
Francisco. Naquela zona só há um transporte regular: o caminhão. Aderi ao
caminhão, mas cheguei tarde.
- Não há lugar
vago na boleia, seu douto – me disse o proprietário do carro... – Só
se o senhor quiser viajar em cima...
- Com a carga?
– perguntei espantando, e – e com essa chuva fria?
A situação era
má. Além do mais, o caminhão viajaria superlotado. O homem explicou: só se
algum dos passageiros desistisse em meu favor, o que seria muito difícil uma
vez que reservavam lugares com 15 dias de antecedência. Todavia, eu necessitava
seguir. Fosse lá como fosse. Enfrentaria a garoa navalhante da madrugada, pois
não havia outro jeito. Olhei para a iluminação da cidade. Os postes pareciam
flocos brancos dentro da névoa gelada do sertão.
- Quais são os
passageiros da boleia? – perguntei.
- Um major da
Força Pública e o padre Bulhões.
A dona do
hotel que ouvia o diálogo, falou sentenciosa:
- O melhor é o
senhor deixar pra viajar na outra semana. Indo em cima é capaz do senhor se
resfriar ou apanhar uma pneumonia...
Foi a
perspectiva de ficar uma semana paralisado em Santana do Ipanema que determinou
minha resolução. Iria de qualquer jeito. Com a carga no meio da caboclada que
ia fazer feira em Pão de Açúcar, afrontando a friagem da madrugada, mas iria.
Vinha eu de uma visita à famosa cachoeira de Paulo Afonso. Deliberei conhecer o
sertão de Alagoas para depois retornar a Penedo donde me transportaria a
Maceió.
Até o local
viajara de ônibus. Daí em diante pelo rumo que desejava não havia outra
condução além do caminhão cujos lugares eram disputadíssimos. Não imaginava me
deparar com um problema assim, mas afinal a resolução já estava tomada. Repórter
é soldado. Não tem luxo. Mas o vento que zumbia navalhante pela fresta das
janelas, me enchia de receio.
MÃE AFLITA
Comuniquei ao
homem que estava disposto a ir assim mesmo e voltei ao meu quarto, no hotel.
Enquanto esperava o jantar, peguei uns jornais velhos e pus-me a ler. “A morte
de Corisco”. O noticiário localizava detalhes. O tiroteio. Os feridos. A luta.
Os bandidos presos. Entre os bandidos presos caíra nas mãos da polícia a famosa
Dadá, mulher de Corisco. Contava o jornal que Dadá gravemente ferida, falava
constantemente nos filhinhos que deixara longe. Um dos jornalistas chegou a
ouvi-la. Dadá só queria morrer depois de vê-los.
Manifestava-se
naquela hora aguda de sua vida, uma eclosão de instinto materno.
Naquele transe
de sua vida manchada pelo crime, surgiam lampejos dignificantes “Raio de luar
por sobre um pântano”. Fenômeno complexos da emoção humana.
- O jantar
está na mesa – avisou-me Ercilia, a empregada do hotel, por sinal bem jeitosa
de corpo.
Jantei. Depois
do jantar, faminto por notícias da guerra indaguei de Ercilia quem tinha rádio
na terra.
- O padre
Bulhões tem um rádio que é uma beleza...
- E onde mora?
Ipanema.
Apontou a casa
que na escuridão eu mal distinguia. Toquei para lá, de guarda-chuva aberto. Nas
proximidades do Ipanema subi uma rampa de pedras. Adiante, a casa. Pela porta
aberta, um quadro de Cristo no Horto de Getsemani. Devia ser ali a residência
do reverendo. Bati. Era mesmo.
Apresentei-me
ao padre Bulhões. Disse a que vinha, e o sacerdote, um sertanejo bom, de coração
aberto, não escondeu nas suas feições morenas um cavalheirismo generoso. “Pois
não”. O rádio estava às minhas ordens. Carregou-me para o interior da casa.
Apresentou-me à irmã e ao cunhado. Mandou preparar café. Ligou o receptor para
esquentar as válvulas. O rádio, porém, não estava de boa paz naquela noite.
Encrencou e não houve meio de fazê-lo apanhar a N. B. C. ou mesmo as estações
da Alemanha e Inglaterra. Só entrava a Tabajara da Paraíba e nada mais. Parecia
que a tribo radiofônica da terra de meu amigo Aderbal Jurema estava senhora dos
pagos celestes. Fechamos o rádio desiludidos quando entrou na sala um garoto
dos seus quatro anos pedindo dinheiro ao padre para comprar fogos. O sacerdote
bondosamente retirou do bolso o “porte-monale” e deu-lhe uma moeda. Quando o
garoto se retirou e mergulhou na algazarra que a criançada fazia lá fora, no
alpendre, ele me disse calmamente, como se não dissesse nada:
- Sabe quem é
esse?
- Não... –
respondi.
- É o filho de
“Corisco”.
O repórter
chegou a se engasgar com a notícia. Ali estava fresquinho, novinho em fino um
furo magnífico. Alvoroço nas associações de ideias. Jornais que lera há pouco,
Dadá. Filhos distantes. Hora da morte... etc.
A meu pedido,
o padre Bulhões contou que certa vez lhe chegara a “encomenda”. “Corisco”
enviou juntamente com a criança, um bilhete recomendando que eu criasse e desse
a educação que pudesse. Insistiu: “Cuidado com a educação do meu filho. Sou
mesmo o capitão Corisco, chefe dos cangaceiros. A mãe dele é Sergia Maria da
Conceição (Dadá). O padrinho é o senhor e a madrinha é Nossa Senhora”.
O bilhete
recomendava três vezes que educasse o garoto. Assinava: Cristiano Gomes da
Silva Cleto, “Corsico”.
A criança veio
com nove dias de nascido.
O padre
escolheu um nome para batizá-lo: Silvio Hermano. Entregou-o aos cuidados de
seus parentes.
Passaram-se
quatro anos. Veio mais intenso o combate ao banditismo. “Lampião” foi morto em
Angico. “Corisco”, sem o chefe, sentiu-se desamparado. Andou querendo se
entregar à polícia. Acabou sendo morto na Bahia. “Dadá” ficou gravemente
ferida. Amputara uma perna.
O padre
Bulhões chamou Silvio Hermano. Observei-o melhor. É um garoto forte, sadio,
olhos grandes, temperamento dócil, ares melancólicos. Não é um menino alegre,
bem vivo como a maioria das crianças. Aparenta sentimentos morigerados e ignora
seus antecedentes.
Perguntei-lhe
a título de curiosidade:
- Você de quem
é filho?
- De Eugenio
Bulhões e Liquinha Bulhões.
- E seu
padrinho? Quem é?
- É o padre
Bulhões.
- Quando
crescer o que é que você quer ser?
- Quero ser
aviadô...
Mostrou-me um
avião de folha de flandres todo colorido e saiu zumbindo, imitando o motor, com
o brinquedo nas mãos.
TEM UMA IRMÃ
Fizemos
fotografias. Silvio prestou-se pacificamente às poses.
Nessa ocasião
o padre Bulhões me contou o resto da história. Chama-se Maria Celeste e está
sendo educada pela família Sebastião Medeiros, residente em Poço das
Trincheiras, lugarejo próximo de Santana do Ipanema. “Corisco” enviou a menina
a essa família nas mesmas circunstâncias de Silvio Hermano e com as mesmas recomendações.
O padre
Bulhões deu-me a fotografia de ambos. Pedi-lhe mais uma cópia. Essa cópia a
mais estou remetendo-a aos nossos companheiros do Estado da Bahia a
fim de que façam chgá-la às mãos da infeliz Dadá. Se não pode ver as crianças,
ao menos veja a fotografia.
Quando me
despedi do padre, ainda chovia.
- Até amanhã.
Ele consertou:
- Viajo muito
cedo amanhã. Creio que não nos veremos mais...
- Viajo também
amanhã, padre. Vou no mesmo caminhão.
- Conseguiu
lugar na boleia? – indagou ele.
- Não. Vou em
cima, com a carga.
O padre
Bulhões teve então um gesto que deixou o repórter rendido ante a gentileza:
cedeu o seu lugar para que viajasse até Pão de Açúcar.
Quando mais
tarde adormeci, o vento ainda zumbia pelas frestas das janelas, mas a noite
chuvosa não era mais uma fria ameaça para o repórter.
Diário de
Pernambuco, 24 de julho de 1940
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Fotografia de
Celso Arcoverde de Freitas.
Santana do
Ipanema (AL) - 1942 -
Acervo da
Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz
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