Por Antonio Carlos Olivieri
Grota do Angico - Local do cerco a Lampião e seu bando.
Sexta-feira, sete e meia da tarde, fazia muito calor. Eu andava pela
Barra-Funda. A esmo, apreciando o que sobrou de antigo no bairro, despreocupado
com o resto do mundo. Empapado de suor, pelo resplandecente sol do horário de
verão, entrei num boteco de esquina, o primeiro que encontrei e pedi uma
cerveja no balcão, urgente. – Uma Brahma, pelo amor de Deus! É pra já, meu
querido – respondeu, do outro lado do balcão, o rapaz de avental, com esse modo
íntimo, embora nunca tivesse me visto antes. – No capricho!
Depois do primeiro copo, um homem novinho em folha, respirei fundo e passei a
apreciar o interior do botequim, que não via uma reforma desde os anos 60.
Balcão e bancos de fórmica, azulejos, lâmpadas fluorescentes. A gente só se
dava conta de estar em 2005 devido à opulenta nudez de Juliana Paes, nos
cartazes da Antártica. Para não me apaixonar por uma mulher impossível,
voltei à atenção para a conversa de dois tipos ao meu lado. Os dois também
bebiam e se divertiam depois de um dia de batente, contando casos um para o outro,
com delicioso sotaque pernambucano. Um deles, o mais velho, parecia mesmo um
repentista, pelo vozeirão grave e a eloquência narrativa, que se traduzia em
uma vasta gama de expressões e gestos.
O tema dos casos era sua terra natal, a que não iam há muito tempo. Inacessível
às suas posses, porém, o sertão se franqueava às suas lembranças. Era quase ali
(no bar em que os três bebíamos) o mais remoto cocuruto de serra, do sertão de
Pernambuco. Mas não se tratava do sertão atual, “muderno”, cortado por caminhões
de carga, bolsas-famílias e antenas de TV, mas de um sertão de outro tempo,
mitológico, onde os versos épicos dos cegos jamais se calam e o cangaço é
eterno. Nos alto-falantes pendurados nos quatro cantos do recinto, a voz de
Luiz Gonzaga inspirava os narradores. As doses de cachaça com que intercalavam
os grandes goles de cerveja tornavam-nos cada vez mais eloquentes. Os enredos
se sucediam, agrestes. Um deles me chamou a atenção.
Major de patente comprada, o fazendeiro Luiz Antonio Feitosa, de Cajarana,
sertão da Bahia, devia muitos favores a Lampião. Entre eles, o de ter aumentado
em muitas léguas os limites de sua propriedade. O rei do cangaço o auxiliou em
rixas, intimidou e eliminou vizinhos. Pressionou juízes a favorecê-lo em
pendências agrárias. Em troca, o Major lhe fornecia mantimentos e munições, bem
como o acoitava sempre que o cangaceiro atravessava o São Francisco, fugindo
das volantes de Pernambuco e Paraíba.
Certa ocasião, o Major tomava a fresca da manhã no copiá da casa-grande, quando
avistou um cabra batendo alpercatas na estrada, caminhando em sua direção.
Feitosa apurou a vista e reconheceu o homem, ainda distante. Era o negro
Vicente do Outeiro, um cabra do eito, gente sua, mas que só o procurava nas
ocasiões em que Lampião aparecia naquelas paragens, trazendo recados do
cangaceiro.
- Bom dia, Major Feitosa – saudou Vicente, sem subir os degraus da varanda,
olhando de baixo para cima. – Tenho um pedido para vosmecê.
– Pois se
achegue aqui, homem de Deus, não faça tanta cerimônia – respondeu o fazendeiro,
bonachão, embora remendasse, resmungando para si mesmo, entre dentes: – Os
recados que você me traz, é melhor que sejam dados ao pé do ouvido.
O
negro aproximou-se, tirando o chapéu de palha.
- Major, o Capitão Virgulino mais
três cabras estão aqui perto, no sitiozinho que o senhor conhece, perto do
Tanque, atrás do bosque de oiticicas. Os homens vêm de um combate danado que
toparam há três dias lá para as bandas de Triunfo. Foi tiroteio de mais de
cinco horas, que começou bem para o capitão. Até que apareceu, não se sabe de
onde, uma tropa federal com 150 praças que deram sustento ao fogo da volante do
tenente Maurício. Os cabras de Lampião estavam cercados.
- Não me diga... – fez o Major, apreensivo.
- Mas os cangaceiros conseguiram furar o cerco – prosseguiu o negro,
impressionado com os fatos. – Se meteram na caatinga e conseguiram escapar dos
macacos. Mas havia muitos feridos: Jararaca, Beiço Lascado, Cobra Verde...
Lampião achou melhor separar seus homens, mandando cada grupo para um coito
seguro, em lugares diferentes. Ele mesmo achou que era melhor atravessar para a
Bahia e me procurou ontem à noite, para mode saber se pode acoitar-se uns vinte
dias cá na sua propriedade.
Vicente se calou, aguardando uma resposta. O Major permaneceu em silêncio por
não mais que um simples instante. No entanto, este lhe pareceu o maior dos
instantes que conheceu em toda a sua vida. Só que não devia demorar em
responder ao negro:
- Vá dizer ao Capitão que me espere onde está –
declarou, resoluto. – Vou encontrar com ele no início da tarde.
- Senhor, sim, Major Feitosa – obedeceu o outro e voltou pelo caminho por onde
viera, batendo mais rápido as alpercatas, até desaparecer na distância da
capoeira. A sinfonia de uma revoada de juritis encheu o céu de Cajarana. Os
bogaris, plantados em frente aos esteios da varanda, adocicavam o ar do verão
que, a essa altura, já estava quente como o inferno.
Em contraste com o sol que brilhava acima da casa-grande, a expressão que
tomara conta do rosto do Major era sombria, grave, repleta de nuvens e
trovoadas. Na verdade, naquele momento, a demanda de Lampião o colocava num
impasse delicadíssimo. Uma rixa com o coronel Napoleão da Fonseca, de
Queimadas, havia levado Feitosa a ingressar na política, filiando-se ao partido
do governo. O Major tinha agora a pretensão de candidatar-se a deputado
estadual e a proximidade com cangaceiros podia constituir uma montanha intransponível no seu caminho para a Assembleia do estado. Por outro lado,
dizer não ao rei do cangaço era a mesma coisa que assinar um atestado de óbito
para si mesmo, a mulher e os filhos. Sem falar nos agregados, que eram a
cunhada dona Amelinha, o sobrinho Vitorino e o primo José Amaro.
Se em algum momento o sentido da palavra diplomacia lhe interessou na vida de
mandos e desmandos, foi naquele. O que fazer?, ruminava, aperreado. Sua
plataforma de campanha – que empolgava os eleitores – era justamente o combate
ao banditismo, tanto o dos cangaceiros, quanto dos tenentes de volante que os
perseguiam (além das obras de combate à seca). Puxou um charuto encorpado que
lhe mandaram do Recôncavo, mastigou-o numa das pontas e o acendeu com uma
pederneira. As nuvens azuladas de tabaco fertilizaram seu raciocínio. Em pouco
tempo, ordenava para o afilhado Bentinho, o filho da comadre Vivi:
- Esse menino, me traga aqui o João Gabiru. Preciso conversar com ele, o mais
rápido possível.
Gabiru era uma espécie de pau para toda a obra, na fazenda do Major Feitosa.
Tinha um jeitinho para tudo. Nada ganhava com isso, exceto um teto, roupa e
comida. Para ele, porém, era o que bastava. Mais uns goles de cachaça nos fins
de semana e se dava por muito satisfeito. Além disso, dedilhava a viola e era
um primor no repente. Quando ia a Cajarana, nos dias de feira, vinha gente de
várias cidades das redondezas para ouvi-lo. Apesar de baixinho, franzino,
cabeça grande e o rosto mal traçado, ao tocar a viola, conquistava a atenção
até das morenas faceiras que acompanhavam as mães às compras.
Pouco depois do chamado, Gabiru chegou ao copiá, onde o Major Feitosa o
aguardava, aflito. Ao vê-lo, o patrão nem lhe desejou bom dia e foi direto ao
ponto: Lampião pedira coito, favor que naquela ocasião não estava em condições
de prestar ao cangaceiro. Porém, como podia dizer não a Virgulino Ferreira da Silva,
sem produzir consequências desastrosas? Gabiru matutou, matutou, mas não
encontrava saída.
O patrão também não lhe concedeu muito tempo para pensar, ordenando em seguida:
- Vá imediatamente encontrar o Capitão. Tente explicar que aqui, neste momento, ele
não estará seguro. Melhor que fique mesmo na caatinga, no sitiozinho onde já se
instalou, pegado ao Tanque. Posso mandar-lhe mantimentos e tudo que for de sua
precisão. Mas recebê-lo em minha casa é impossível. Invente que estou esperando
a visita do governador, acompanhado por militares de alta patente e pelo
próprio chefe de polícia. Sei lá! Assunte bem o terreno, veja lá como fala e dê
um jeitinho. Senão, estamos todos desgraçados!
João Gabiru não aparentou medo, ao aceitar a tarefa. Acreditava que a solução
de um problema assim era uma coisa que só se encontrava de repente, num estalo.
Confiou-se a São Severino de Ramos. Colocou sobre a cabeça um chapeuzinho de
couro, quase sem abas. Foi ao curral e arreou a mula ruça, que pisava macio.
Montou, deu-lhe com o cabresto e seguiu caminho. Com a ponta dos pés descalços
nos estribos, equilibrava-se sobre o trote da jumenta, gingando como um ginete
das velhas ordens de cavalaria.
Sob a sombra de uma cajazeira, no sitiozinho do Tanque, os três cabras de Lampião
matavam o tempo jogando dominós. Estavam muito concentrados, mas o instinto os
fez interromper repentinamente a partida. Ao perceber à distância a aproximação
de um cavaleiro, se fizeram nos rifles, espalhando-se aos pés das imburanas.
Porém, à medida que João Gabiru se tornou visível, os cangaceiros serenaram e
baixaram as armas.
A imagem equestre do moleque de recados nada apresentava que lhes pudesse provocar o menor medo. Ao contrário, parecia-lhes um motivo de provável
diversão. De cartucheiras trançadas no peito, os três homens ficaram de pé,
batendo as coronhas do rifle no chão, como autênticos militares. Receberam o
recém-chegado, perfilados, com cortesia galhofeira. Ajudaram-no a descer da
jumenta e perguntaram o que um homem daquele porte fazia naquele oco de mundo:
- Venho da parte do Major Luís Antônio Feitosa – respondeu Gabiru, sério,
aparentemente sem perceber que mangavam dele. – Com um recado para o Capitão
Virgulino Ferreira.
- Pois vossa incelência espere só um minutinho que vou ver se o Capitão pode te
receber – respondeu o maior dos três cangaceiros, que era também o mais mal
encarado, e entrou na casinha de taipa caiada, onde o chefe descansava.
Voltou poucos instantes depois e abriu a porta para o recém-chegado, com uma
reverência que despertou a risada de seus dois companheiros. João Gabiru não
fez caso disso, entrou na casa e deu de cara com a cozinha vazia, com um fogão
de lenha num canto e uma mesa de pinho ao centro, onde pareciam repousar todas
as armas do famigerado cangaceiro: um rifle papo-amarelo, uma carabina
Comblain, três bornais de balas, dois revólveres Schmidt & Wesson, um
punhal e um facão de mateiro. Mas o rapaz não teve tempo de observar o arsenal
com mais atenção, pois uma voz vigorosa o chamou da camarinha.
João Gabiru entrou no dormitório onde Lampião, estirado numa rede, fazia sinal
para ele se aproximar. Pela janela aberta, o sol do meio dia reluzia no quarto
como se estivesse dentro dele. Iluminava a figura ridícula do mensageiro, em
todos os seus pormenores. O único olho do capitão mirou o sertanejo com
expressão furiosa, como se estivesse ofendido por deparar com semelhante
moleque de recados. Como é que o major Feitosa lhe fazia uma desfeita daquelas?
Não só mandava alguém em seu lugar, em vez de vir pessoalmente, mas mandava
aquela figurinha de baralho lhe dar a resposta que ele, o Feitosa – não aquele
cabrito desajeitado – lhe devia?!
Isso era uma desfeita que a majestade de Virgulino Ferreira da Silva não havia
de engolir!
Lampião ergueu-se da rede, com a rapidez que – no gatilho – lhe valeu o
apelido. Estava desarmado e completamente a vontade, com as fraldas da camisa
para fora da calça de zuarte. Lentamente aproximou-se de Gabiru – a quem olhava
de baixo para cima – e sem a mínima cortesia, nem pela mesma mangação dos
comparsas, lascou-lhe na cara uma pergunta atrevida:
- Você sabe o que é a ira de Lampião?
- Não senhor – respondeu Gabiru, sem
deixar de encará-lo.
- A ira de Lampião – explicou-se o próprio – é uma
fazenda arrasada, muitas mulheres graúdas desonradas, dezenas de cadáveres e o
sangue correndo como um rio por cem léguas de distância.
O sertanejo escutou, humilde, mas respondeu com outra pergunta:
- Pois vossa
incelência sabe o que é a ira de João Gabiru?
O rei do cangaço riu-se da
insolência e deu-lhe o troco na bucha:
- A ira de João Gabiru há de ser o
cipó-de-boi comendo no lombo dele, que acabará de volta à casa do Major, mais
morto que vivo, se arrastando atrás de sua mula.
- É não – contradisse o outro e sacou zunindo uma peixeira que trazia escondida
na cintura. – Quando João Gabiru fica irado, como agora, o máximo que pode
haver é dois cadáveres, o sangue não corre mais que cinco passos, mas todo o
cangaço há de ficar de luto.
Com a ponta da lâmina a milímetros de seu
pescoço, Lampião não piscou o olho nem moveu um dedo. Mas respirou fundo, antes
de responder ao Gabiru:
- É de cabra assim, com cabelo na venta, que eu
gosto, não sabe? Abaixe essa arma e vamos conversar, meu camarada. Tem sorte o
Major Feitosa de contar com um macho esperto como tu a seu serviço...
O final da história coincidiu com o fim da minha garrafa de cerveja. Durante
algum tempo, esqueci do mundo, nocauteado pelo relato do velho. Ao voltar a
mim, os danados dos nordestinos tinham simplesmente desaparecido. Cheguei a me
perguntar se os dois haviam estado ali mesmo ou se eu os imaginara numa espécie
de delírio. Não consegui chegar a uma conclusão. Fui interrompido pelo rapaz do
balcão que queria saber:
Outra Brahma, meu querido?
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