Por Enéas
Athanázio
O livro
“Lampião e o Estado-Maior do Cangaço”, de autoria dos pesquisadores Hilário
Lucetti e Magérbio de Lucena, publicado em segunda edição, revista e ampliada
(Gráfica Encaixe – Ceará – 2004 – 380 págs.), é o mais completo painel que
conheço sobre o assunto, descrevendo com precisão as atrocidades dos bandos de
cangaceiros que fervilhavam no Nordeste desde as últimas décadas do Século XIX
até os anos 40 do Século XX, mostrando o ambiente sócio-econômico e político
que permitiu o exercício dessa forma de banditismo ao longo de tantos anos e
descendo a minúcias biográficas de cada um dos mais importantes atores de uma
atividade tão desumana quanto trágica. Baseado em longas e minuciosas
pesquisas, incluindo investigações in loco e entrevistas com
numerosos personagens, sem faltar o mergulho em incontáveis coleções de jornais
e na melhor bibliografia disponível, é um trabalho sério e confiável, merecedor
de algumas observações, escolhidas dentre as muitas que ensejaria. Embora se
trate de ensaio de cunho histórico, contém passagens antológicas, a exemplo da
retirada do bando de Lampião para Pernambuco, após o malogro do assalto a
Mossoró, cruzando três Estados, viajando quase só à noite e nas altas
madrugadas, varando as mais ásperas caatingas da região e realizando saques
sempre que a oportunidade se apresentava. Façanha que poderia inspirar
excelente novela literária, assim como o livro, no conjunto, forneceria matéria
para um belo romance
O QUE É CANGAÇO
A palavra
cangaço, segunda consta, deriva do fato de que os bandoleiros transportavam
sempre, junto ao corpo, todos seus pertences. Entregues ao nomadismo, sem
paragem certa, levavam em embornais cujas alças se cruzavam no peito e nas
costas os objetos miúdos e de valor, tais como jóias, dinheiro, moedas, papéis
etc. Feitos de tecidos fortes, os embornais ficavam estufados com o conteúdo,
implicando, com certeza, em considerável peso. Observando-se as fotografias em
que os cangaceiros posavam com esses embornais, fica a impressão de que eles
exteriorizavam a riqueza: quanto mais estufados, mais rico seria o seu
portador. Por outro lado, lembravam uma canga, daí surgindo a denominação cangaço e
todos seus derivados. Aqui no Sul os embornais seriam chamados de bocós.
APOIO POPULAR: COITOS E COITEIROS
A
sobrevivência do cangaço, por outro lado, encontra explicação ou, pelo menos,
uma delas, na circunstância de que contava com o apoio das populações rurais
das regiões onde se desenrolava. Os cangaceiros famosos acabavam se tornando
figuras admiradas pelo povo miúdo, a cujos olhos muitos deles apareciam como
justiceiros que afrontavam um Estado injusto e incompetente, responsável pela
miséria reinante e pelas gritantes desigualdades econômicas e sociais. Os cangaceiros,
por sua vez, buscavam com empenho criar vasta rede de relacionamentos com
pessoas poderosas, em cujo meio se encontravam os grandes coiteiros (*),
e com o povo em geral, de cujo seio saíra a maioria deles. Graças a isso,
obtinham apoio nos momentos cruciais, bem como a indispensável ajuda na
aquisição daquilo de que necessitavam. Muitos coiteiros, vivendo isolados num
meio rude, não tinham como se negar à ajuda, sob pena de sofrerem represálias.
Nenhum movimento revolucionário, nem mesmo na forma arcaica do cangaço,
consegue se manter e vingar sem a simpatia e o apoio popular. Essa condição foi
sempre ressaltada pelos revolucionários, inclusive no Brasil. “A gente humilde
das caatingas ainda tinha Lampião como um homem honrado, respeitador e bom para
os pobres... O povo era aliado de Lampião” – palavras de um ex-coiteiro em
depoimento aos autores (pág. 316).
SURGIMENTO E TÉCNICAS
O surgimento
do cangaço se explica com facilidade. Voltado para o litoral, onde se acumulava
o grosso da população, o Estado brasileiro pouco se importava com o hinterland,
e isso acontecia em todas as regiões do país. Entregue à própria sorte, o
interior se transformava em território livre para as investidas de aventureiros
de todos os tipos. Inteligentes como eram, não tardaram a intuir da necessidade
de se juntarem em bandos organizados, com regras, chefias definidas,
sub-grupos, estratégias e táticas próprias. Passavam de simples arruaceiros a
profissionais especializados. A guerra móvel, similar às guerrilhas, as emboscadas,
os ataques pelos flancos e pela retaguarda, os truques para furar cercos e
despistar os rastros, unidos ao perfeito conhecimento do palco de ação, tudo
isso deixava aparvalhadas as forças policiais, muitas vezes despreparadas para
o combate, quando não mais interessadas nos lucros obtidos com a “indústria do
cangaço”. A divisão em sub-grupos, desfechando ataques simultâneos em lugares
diferentes, dava-lhes a aura de ubiqüidade e contribuía para o surgimento das
lendas que cercavam os bandos chefiados pelos grandes nomes do cangaço. O medo
que provocavam nas pessoas pacíficas facilitava suas tropelias. “Ninguém
ignorava o pavor que causava por toda parte a presença de Lampião. Em geral,
quem tinha a infelicidade de se encontrar com semelhante fera procurava o
melhor meio de bem tratá-lo” – escrevem os ensaístas (pág. 225). Daí a razão
pela qual foram tantas vezes recebidos com festas, banquetes e rapapés em
inúmeros lugares, passeando com liberdade pelas cidades, organizando bailes e
comilanças (**).
NEOCANGACEIROS
O ingresso no
cangaço, uma vez consumado, quase sempre se tornava irreversível. Desde então a
família do neocangaceiro não tinha mais sossego. Os motivos para entrar nesse
“mundo da espingarda” variavam, embora os mais constantes fossem a prática de
crimes que geravam inimizades e perseguições, não deixando ao infeliz outra
saída. Muitos se iniciavam por pura e simples vocação, aspirando a uma vida
superior à miséria em que vegetavam. A admiração pelos cangaceiros famosos,
seus trajes vistosos, sua postura exibicionista e arrogante de seres que
estavam acima do bem e do mal influíam na decisão, em especial de jovens,
muitos dos quais se iniciaram cedo nas lides do banditismo. Após o ingresso,
depois do batismo de fogo, recebiam um apelido, e o senso moral aos poucos se
embotava, tornando-os capazes das mais frias atrocidades. Atrás dessas alcunhas
muitos deles se anulavam como personalidades, apagando para sempre o passado. A
consciência aguda de que o caminho trilhado não tinha volta parecia aumentar
sua sede de sangue e a ganância pela riqueza em forma de ouro, jóias e dinheiro
que pudessem transportar. Tudo indica que não confiavam em ninguém para
depositário de seus teres.
APAGANDO O PASSADO: A ALCUNHA
A maioria dos
cangaceiros recebia ou adotava uma alcunha, quase sempre relacionada com suas
características pessoais, habilidades ou fatos biográficos e que serviam como
luva. O apelido, apagando o verdadeiro nome, contribuía para despistar inimigos
e perseguidores. Alguns, no entanto, lutavam bradando o próprio nome aos quatro
ventos, desafiando o mundo e arrotando valentia. Poucos continuavam a ser
conhecidos pelos próprios nomes. Entre os numerosos apelidos referidos no
livro, anotei os seguintes: Bom Deveras, Jararaca. Pai Véio, Zé Sereno, Gavião,
Corisco, Manoel Toalha, Moderno, Cajueiro, Fortaleza, Gato, Umbuzeiro,
Colchete, Jurema, Tempestade, Azulão, Musquêro, Caracol. Tempero, Chico
Chicote, Bronzeado, Casca Grossa, Mormaço, João Cocó, Pinga Fogo, Mergulhão,
Chumbinho, Mão Foveira, Navieiro, Volta Seca etc. O apelido de Lampião se devia
à rapidez com que atirava, dando a impressão de um lampião que se acendia.
É interessante anotar que, apesar das brutais condições em que viviam, muitos
cangaceiros tiveram “carreiras” mais longas que os gangsters norte-americanos
em geral, como Dillinger, Pierpont, Bonnie e Clide etc., cuja sobrevivência em
atividade foi de poucos anos, acabando presos ou mortos. Vários cangaceiros
famosos permaneceram em ação por anos a fio e alguns até se “aposentaram”,
retirando-se para lugares distantes, em Goiás, Minas Gerais, no Maranhão, em
São Paulo e até no Sul do país, como Antônio Massilon Leite, que teria migrado
para o Rio Grande do Sul. Na nova querência mudavam de vida, desaparecendo no
anonimato.
LEIS RÍGIDAS E IMPLACÁVEIS – DESTINO DAS VIÚVAS
O mundo
cangaceiro tinha suas leis, rígidas e implacáveis. Assim, por exemplo, a
humilhação, por mínima que fosse, exigia vingança, e ela acabava acontecendo,
mais cedo ou mais tarde. O mesmo se diga das traições, fossem das mulheres aos
companheiros ou de coiteiros, amigos ou conhecidos. A vindita viria, infalível
e brutal. Lampião desaprovava as costumeiras surras em homens desarmados. “Não
é vantagem para um homem; vantagem para um homem é falar alto para outro homem
armado!” – pregava ele (pág. 204). Existia ainda o “padre-nosso de Lampião”,
ensinado quando o novato entrava no bando: desrespeito a moça de família amiga
se punia com a morte, como aconteceu com o cangaceiro Sabiá (pág. 329). Algumas
regras, no entanto, poderiam ser mais elásticas, dependendo das necessidades e
circunstâncias.
As mulheres que viviam no bando, cujos maridos ou companheiros morriam em
combate deveriam ser sacrificadas para “queima de arquivo”, prática que se
repetiu com mais freqüência nos últimos tempos. No início algumas “viúvas”
foram devolvidas às famílias. Depois, avaliando o perigo que constituiria a
queda delas em mãos policiais, foram eliminadas sem piedade. Conhecedoras das
minúcias da vida do bando, elas o deixariam em permanente risco. Mediante
tortura, com certeza tudo revelariam. Narram os autores algumas execuções
dessas infelizes. Durante muito tempo foi vetada a presença de mulheres nos
bandos.
MEDICINA SERTANEJA
Para os casos
de doenças e ferimentos os cangaceiros dominavam ampla “medicina sertaneja”.
Conheciam as propriedades de ervas e os efeitos de seus chás e todo um
instrumental rústico de cuidados para estancar hemorragias, evitar infecções,
combater a dor e debelar outros males. “A medicina cangaceira era a mesma do
imenso sertão ao redor: chás que serviam para tudo, garrafadas, emplastros,
pimenta e sal soprados nos ferimentos com canudos de mamoeiro, balas extraídas
a ferro quente, remédios da homeopatia primitiva, encontradiços nas boticas dos
lugarejos, rezadeiras, dentistas autodidatas, cachimbeiras, quando o menino não
queria nascer” – dizem os autores (pág. 39). Alguns cangaceiros se destacaram
como competentes “médicos”.Em casos de maior gravidade, parece que sempre
surgia um meio de ser examinado por médicos de verdade.
LAMPIÃO ENTRA EM CENA
Foi nesse meio
fervilhante de cangaceiros que a figura de Lampião se impôs, entrando em cena
para reinar durante 22 anos de “carreira”. Quando o célebre Sinhô Pereira,
cangaceiro temido, decidiu mudar de vida, seu sucessor natural, reconhecido a una
voce, foi Lampião, já integrante do bando e então com 25 anos de idade. A
estréia do novo chefe ocorria em 1922, ano emblemático da história nacional, e
ele logo se destacaria pela inteligência, liderança inconteste, frieza e
crueldade.
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, nasceu em Serra Talhada (PE), em 7
de julho de 1897. Segundo a lenda, teria ingressado no cangaço para vingar a
morte do pai, embora a verdade histórica revele o oposto, como mostram os
ensaístas. Na realidade, o pai foi morto depois da entrada do filho no cangaço
e justamente por esse motivo. A lenda, porém, se disseminou de tal forma que
ainda hoje corre solta. Mais de 500 cangaceiros das mais variadas procedências,
formações e temperamentos serviram sob seu comando ao longo desses anos. Com
rara habilidade, conseguiu formar uma rede de “coiteiros” e “coronéis de
barranco” que o apoiava de forma decisiva, fornecendo armas e munições em
quantidade, além de mantimentos e proteção. Entre eles estava o célebre
“coronel” Zé Pereira (Lima), chefe político de Princesa Isabel (PB) e que
declarou a “independência” de seu município, instituindo a República de
Princesa, de breve duração mas de repercussão nacional. Sobre ela o jornalista
Joaquim Inojosa publicou um livro onde informava de sua participação no
movimento sedicioso. A ligação de Lampião com Zé Pereira, no entanto, não se
prolongou por muito tempo e se transformaram em inimigos rancorosos (***).
O CAPITÃO VIRGULINO
Em 1926
Lampião e seu grupo foram convidados a visitar Juazeiro do Norte, ocasião em
que ele recebeu a patente de capitão e membros do bando receberam patentes de
graduação inferior. Foram armados e municiados, passando a integrar os chamados
“Batalhões Patrióticos” que deveriam combater a Coluna Prestes, embora Lampião
nunca se defrontasse com a mesma. Numa atitude de incrível insensibilidade e
reacionarismo, as autoridades preferiram se colocar ao lado dos maiores
facínoras do sertão e contra os jovens idealistas que realizavam uma empreitada
épica pela melhoria de nossos costumes político-administrativos. É verdade que
esse ato custou caro, muito caro, tanto que os cangaceiros, agora armados até
os dentes, com farta munição e armas modernas, se tornariam invencíveis, e o
Padre Cícero Romão Batista morreu jurando não ser o autor da infeliz
iniciativa, fato que tem provocado o gasto de muita tinta, sem uma conclusão
definitiva. Para os ensaístas, no entanto, estão fora de dúvida a participação
do “Padim” no episódio e sua bênção aos novéis “oficiais”.
No correr dos
anos, entre vitórias e derrotas, Lampião perdeu os três irmãos cangaceiros –
Antônio, Livino e Ezequiel. Foi em geral bem sucedido, ainda que tenha ficado
manco em virtude de ferimento na perna direita. Entre seus ataques, na maioria
positivos, sobressaiu-se um fracasso: a invasão de Mossoró (RN), maior cidade
sertaneja da região, de onde se retirou para Pernambuco, cruzando três Estados
e varando o mais árido da caatinga, perseguido por centenas de policiais de
vários Estados. O malogro deixou profunda marca em sua alma de homem vaidoso e
preocupado com a própria imagem. É verdade que ele realizou esse ataque à
cidade potiguar algo contrariado. Suas incursões em regra visavam cidades onde
apenas uma torre de igreja apontava para o céu, ao passo que Mossoró possuía
quatro... As táticas de guerrilha, a chamada guerra móvel, os ataques pela
retaguarda e pelos flancos, a divisão em sub-grupos, o despiste dos rastros, o
perfeito conhecimento da região, a surpresa, as falsas fugas, os contra-ataques
fulminantes, os informantes e a infiltração de “olheiros”, aliados à coragem
sobre-humana e ao terror que provocavam permitiram carreira tão bem sucedida e
longa.
PREMONIÇÃO DO FIM
Arguto como
foi, Lampião pressentia que o progresso selaria o fim do cangaço.
Transformou-se, por isso, em inimigo das estradas através das quais chegariam
caminhões transportando numerosos “macacos” bem armados. Sempre que possível,
procurava atrapalhar a construção de rodovias, amedrontando os trabalhadores e
praticando violências contra alguns.
MARCA PESSOAL: CANGAÇO SEM ÉTICA
Lampião
imprimiu marca pessoal no cangaço. Segundo os autores, com ele “muita coisa
mudou no modus vivendi dos cangaceiros. Os punhais enormes, as
bandoleiras enfeitadas com libras esterlinas, os chapéus enormes, ornados com
estrelas e signo de Salomão, os dedos cheios de anéis, apurado gosto na
confecção de luvas, lenços e embornais, vidros de perfumes baratos que eram
usados em profusão para afastar o odor do suor e para agradar as mulheres que
eram mimadas como princesas. Tudo isso trazia um pouco da marca pessoal de
Lampião que não era um gênio somente no campo de batalha” (págs. 39/40). Tocava
harmônica, realizava trabalhos em couro e “era metido a poeta”. Os cangaceiros
foram exímios costureiros, atividade que exerciam com naturalidade.
Segundo os
ensaístas, foi Lampião o iniciador da fase do “cangaço sem ética.” No seu
reinado, dependendo da situação, valia tudo, inclusive o assassinato de
mulheres, velhos e crianças, seqüestros, extorsões, torturas, castrações, estupros,
saques e destruição de propriedades alheias. E de fato, os episódios relatados
ao longo do livro, todos confirmados, são de arrepiar os cabelos. “Conotações
de heroísmo”, “injustiça social” e a idéia de um “Robin Hood caboclo, que
tirava dos ricos para dar aos pobres”, não passam de lendas sem base histórica
– afirmam os autores (pág. 186). Pelo contrário, como rolo compressor, Lampião
passava sobre tudo que se opusesse aos seus desejos.
A GROTA DO ANGICO E A TRAGÉDIA FINAL
Lampião foi
morto na manhã do dia 28 de julho de 1938, na Grota do Angico (SE), aos 41 anos
de idade. Nos últimos tempos, cercado e atacado por todos os lados, agia mais
como “empresário do crime” que na linha de frente. O depoimento de Manoel
Félix, último coiteiro, deixa a impressão de que o Rei do Cangaço estava
cansado, descuidando da segurança e confiante em demasia. No local onde morreu
só havia uma saída, circunstância que não aconselharia a permanência, ainda
mais diante do alerta de outros cangaceiros sobre detalhe tão importante. Mas
Lampião parecia ter baixado a guarda, atitude que lhe foi fatal, marcando a
partida para o dia seguinte. Foi tarde demais.
Sua morte
ecoou na caatinga e os sertanejos em geral não podiam crer que um “homem como
aquele pudesse morrer assim” (pág. 363). Decorridos 66 anos de sua morte, a
figura do Rei do Cangaço ainda intriga e fascina.
A SECA DO JOÃO MIGUEL
Em 1931,
acuado por Getúlio Vargas para dar fim ao cangaço, o interventor Juracy
Magalhães urdiu um plano tão inacreditável quanto desumano: esvaziar os
sertões, obrigando a população a migrar para as cidades, onde foi engrossar as
favelas periféricas. As famílias foram instadas a apanhar o que pudessem,
deixando tudo mais ao deus-dará. Esse plano insólito ficou conhecido como “seca
do João Miguel”, recebendo o nome do oficial encarregado de sua execução. Entre
dez e quinze mil sertanejos foram coagidos a abandonar terras, casas, roças e
criações, transferindo-se para as cidades, onde muitos sobreviviam de esmolas.
Imaginavam os mentores de tão estapafúrdio plano que esvaziando as caatingas, o
cangaço morreria por ausência de apoio, mas o resultado foi o oposto: os
sertanejos pobres voltaram miseráveis e o cangaço se banqueteou em liberdade
com tudo que foi deixado (págs. 34 e 321).
O BANDO E O ESTADO-MAIOR
O estado-maior
de Lampião sofreu inúmeras alterações. Muitos de seus integrantes ingressaram,
saíram e retornaram; outros pertenceram a gerações diferentes, nem sempre se
conheceram ou foram contemporâneos. Apesar dessas dificuldades, os autores
rastrearam toda a história de Lampião e levantaram as biografias dos mais
importantes. Em forma sintética, anotamos a seguir os elementos essenciais de
cada um deles:
Antônio
Ferreira (1895/1926). Irmão mais velho de Lampião. Homem sisudo, não ria e nem
sequer sorria. Autêntica víbora. Morreu por acidente, numa brincadeira – um
“sucesso”, na linguagem do cangaço.
Livino
Ferreira, vulgo Vassoura (1896/1925). Também irmão do Rei do Cangaço.
Tagarela e extrovertido, foi um indivíduo bruto e áspero no trato. Corajoso ao extremo,
levava uma faca nos dentes na hora do ataque.
Antônio
Matilde. Irmão bastardo do pai de Lampião. Esteve afastado do grupo e morreu em
1927.
Antônio Rosa,
vulgo Antônio do Gelo (1897/1924). Alagoano. Valente e vaidoso. Foi
morto pelas costas por Livino e Enéas.
Antônio
Augusto Correia, vulgo Meia-Noite ou Bagaço. Alagoano. Valente e
mau ao extremo, matou quando ainda era menino, Virou inimigo de Lampião. Morreu
traído por um coiteiro.
Horácio
Novaes, vulgo Horácio Grande (1891/ ? ). Misto de cangaceiro e
policial; ora um, ora outro. Desapareceu para sempre sem deixar vestígios.
Sabino ou Sabino
das Abóboras. Lugar-tenente de Lampião. Homem corajoso, violento e cruel ao
extremo. Atarracado e feio, nada temia e praticou “um rosário de crimes.”
Ferido, foi morto a seu próprio pedido e a sangue-frio, pelo cangaceiro
Marguião (pág. 105).
Cícero Costa
(de Lacerda - ? - 1924). Paraibano. Figura curiosa, de nível superior ao bando.
Destemido e feroz na luta, matava com facilidade, embora se recusando a torturar,
roubar e maltratar mulheres, idosos e crianças. Simpático, conquistava as
pessoas com facilidade. Foi o “médico” do grupo, conhecendo os tratamentos e a
farmacopéia do sertão. Parece que não foi sepultado, ficando seu corpo ao
relento.
Os irmãos Marinheiros.
Pernambucanos. Foram quatro, de gerações diferentes: Cassiano, José, André e
Antônio. Os dois últimos abraçaram o cangaço a pretexto de vingar o assassinato
dos irmãos. Entregavam-se à extorsão, ao rapto de moças e às ameaças. Fugiram
para o Maranhão e desapareceram. “Nos sertões pernambucanos – ensinam os
autores – diz-se marinheiro aquele cuja aparência física lembra os invasores
holandeses que vieram pelo mar. Estatura elevada, cor branca, cabelos loiros,
olhos azuis, características comuns a esses quatro irmãos bandoleiros” (pág.
137).
Mariano
(Laurindo Granja – 1898/1937). Pernambucano. Fiel a Lampião, acompanhou-o tanto
nos tempos bons como nos maus. Alegre, risonho, tocador de gaita. Não cometia
atrocidades desnecessárias. Valente até o fim, morreu baleado e esfaqueado
múltiplas vezes.
Os Marcelinos.
Também irmãos: Manoel (Bom Deveras), João (Vinte e Dois), Raimundo (Lua Branca)
e José, este último ladrão contumaz, fugiu para São Paulo. Cruzavam a Chapada
do Araripe para o Ceará e Pernambuco, sempre acoitados por gente graúda. Vinte
e Dois foi morto pela polícia e Lua Branca ferido e preso na
mesma ocasião, assim como Manoel Toalha e Pedro Miranda, ambos
do bando chefiado pelo primeiro. Também foram presos Joaquim e João Gomes,
primos, acusados de coiteiros. No dia 5 de janeiro de 1928 os cinco foram
levados ao lugar Alto do Leitão e sumariamente executados, depois de cavarem as
próprias sepulturas (pág. 171).
Virgínio
Fortunato da Silva (Moderno – 1903/1936). Cunhado de Lampião, nascido no
Rio Grande do Norte. Educado, comedido, pouco falante. Foi o “capador oficial”
do bando.
Ezequiel
Ferreira (Ponto Fino – 1908/1931). Irmãos mais jovem de Lampião, morreu
aos 23 anos de idade. Criou-se na malandragem de rua de Juazeiro do Norte (CE)
e idolatrava o irmão, de quem foi a própria sombra. Tinha excelente pontaria e
não foi sanguinário.
José Zeferino
Andrelino dos Santos (Oliveira ou Alagoano - 1912 - ? ).
Pernambucano. Cangaceiro-mirim, entrou no bando aos 14 anos, sendo considerado
uma espécie de filho por Lampião. Muito malvado na juventude, ficou famoso
pelas crueldades praticadas. Deixou o bando em 1928 e cumpriu pena de prisão.
Em 1984 ainda vivia, quando foi entrevistado pelos autores, descrevendo o
ambiente do cangaço e as chegadas do bando nas cidades daquela época.
Participou da frustrada invasão de Mossoró (págs. 196 e 198).
Antônio
Massilon Leite (Benevides). Nascido no Rio Grande do Norte, fôra pistoleiro
profissional e já chegou ao Ceará com 26 mortes nas costas. Atirador exímio,
foi um cangaceiro sofisticado, usando bússola na caatinga, andava sempre bem
trajado e sabia dirigir veículos. Um dos idealizadores do assalto a Mossoró,
dele participou, no dia 13 de junho de 1927, quarta-feira, por volta das
16:00h. Repelido pela população enfurecida, o bando se retirou para o Pajeú,
numa marcha inacreditável através da caatinga. No ataque morreu o cangaceiro
Colchete e Jararaca, ferido, foi preso e consta que teria sido sepultado vivo.
Deixando o bando, Massilon se entregou a assaltar fazendas e parece que foi bem
sucedido. Com o dinheiro, fugiu para o Rio Grande do Sul, onde teria mudado de
nome e ingressado na polícia, chegando a oficial. Nos anos 50 foi visto no
Nordeste, bem trajado e elegante, num caminhão novo, de sua propriedade, com
motorista particular. Visitava parentes e amigos no Ceará e dizia residir em
algum recanto do Brasil Central (págs. 110 e 235).
José Leite de
Santana (Jararaca – 1901/1927). Nascido em Buíque (PE), foi soldado da
polícia e do exército, tendo andado pelo Sul e participado da Revolução
Paulista. Voltando à terra natal, formou o primeiro grupo e iniciou a
“carreira”. Foi ferido e preso no assalto à Mossoró, onde acabou executado.
Antônio
Francisco (Moreno). Pernambucano. Irmão de um dos matadores de Delmiro Gouveia.
Em 1938, ao saber da morte de Lampião, fugiu para o Maranhão e nunca mais se
soube dele.
Cristino Gomes
da Silva Cleto (Corisco ou Diabo Louro – 1907/1940). Muito
famoso, foi o derradeiro dos grandes chefes. Virou verdadeiro carrasco, embora
às vezes revelasse um lado bom. Em virtude de ferimentos, ficou aleijado de
ambos os braços, incapacitado para o manejo de armas longas. Nunca se entregou.
Os Engrácias.
Família baiana, teve vários membros envolvidos no cangaço. Foram eles:
Antônio de
Engrácia (1897/1930). Cangaceiro garboso, rival de Lampião, foi assassinado
pelo próprio irmão, Cirilo. Era considerado um dos dez maiores cangaceiros
existentes.
Cirilo de Engrácia
(Véio Cirilo - 1890/1935). Com o assassinato do irmão, ficou marcado para
sempre. O crime foi escondido pelo bando por muito tempo.
Manoel Moreno
(Bentevi – 1905/1937). Sobrinho de Antônio e Cirilo. Preguiçoso e covarde,
gostava de perfumes, danças e mulheres. Um bon vivant das caatingas.
Aleixo, vulgo Zé
Baiano (? – 1936). Sobrinho de Antônio e Cirilo. Indivíduo perverso,
sádico e tarado, estuprador sistemático. Marcava as pessoas a ferro e usava uma
palmatória a que chamava “Boneca de laço e nó”, com a qual aplicava “bolos” nas
mãos das pessoas.
José Ribeiro
Filho (Zé Sereno – 1913/1981). Sobrinho de Antônio e Cirilo. Esteve com
Lampião em Angicos. Conseguiu escapar ao massacre e fugiu para São Paulo, onde
viveu recolhido, quieto e até respeitado pelos conhecidos.
Esses foram os Engrácias,
célebres e temidos.
Mariano
Barbosa da Silva (Azulão – 1911/1933). Baiano. Foi o terceiro com a mesma
alcunha, mas não o último. Decepada, sua cabeça foi levada para o Instituto
Nina Rodrigues, em Salvador (BA).
Ângelo Roque
da Costa (Labareda ou Anjo Roque – 1899 - ?). Pernambucano.
Entregou-se à polícia e ainda viveu muitos anos.
Luiz Pedro
(Cordeiro – c. 1910/1938). Permaneceu cerca de quinze anos com Lampião. Em
acidente, matou Antônio Ferreira, irmão do Rei do Cangaço, mas foi perdoado por
este, reconhecendo que fôra um “sucesso”. Fiel extremado ao chefe, morreu com
ele em Angicos.
FIGURAS SINGULARES
Resta uma
palavra sobre três personagens envolvidos com o cangaço e que ficaram na
história. O primeiro foi o Padre José Furtado de Lacerda, mais conhecido como
Padre Lacerda, da Vila do Coité. Segundo os autores, ele “achava que a vontade
de Deus vez por outra precisava da ajuda das armas para ser cumprida. Muito
valente, andava sempre armado e cercado de homens de sua confiança” (pág. 124).
Chegou a ser atacado por bandos de cangaceiros, travando-se violentos tiroteios
que deixaram sua casa perfurada pelas balas. Antônio Teixeira Leite (Antônio da
Piçarra – 1855 - ? ). Foi o mais conhecido coiteiro de Lampião no Cariri
Cearense. Vivendo isolado em meio à caatinga, esse fazendeiro alegava que não
teria como negar ajuda ao cangaceiro sob pena de implacáveis represálias.
Entrevistado pelos autores, muito colaborou com eles. Odilon Flor, o Nazareno
(nascido em Nazaré, hoje Carqueja), perseguidor implacável de Lampião e
colaborador de quantos procuraram o cangaceiro, morreu frustrado pela ausência
de reconhecimento de seu trabalho e pela traição da “volante” que eliminou o
Rei do Cangaço (págs. 358/359).
COMPARAÇÃO IMPRÓPRIA
Por fim, uma
palavra a respeito da confusão que tantas é feita entre Cangaço, Canudos e Contestado. Embora
fossem revoluções populares arcaicas, denunciando estruturas injustas e omissão
de qualquer assistência, Canudos e o Contestado foram movimentos messiânicos,
características que o Cangaço não teve. Embora este último, em certa fase,
contasse com o apoio do Padre Cícero Romão Batista ao grupo de Lampião, apenas
isso não lhe confere índole religiosa ou mística. Foi o Cangaço uma espécie de
banditismo organizado sem similar no país ou no mundo. Mas os três
acontecimentos espelhavam o mal-estar social diante da miséria, da injustiça,
do abandono e da incompreensão. Contasse o país com governantes mais sensíveis
e todos eles, com seus horrores, poderiam ter sido evitados. Acabaram ficando
como manchas indeléveis de nossa civilização.
(*) Segundo os
dicionaristas, coiteiro é o indivíduo que dá asilo a bandidos ou os protege.
Coito é o local onde se escondem.
(**) Em um de
seus romances memorialistas, o escritor piauiense J. P. de Lima Cordão relata a
tranqüilidade com que o cangaceiro Antônio Silvino passou vários dias numa
pequena vila, revelando sentir-se em casa, com total segurança. O aparecimento
repentino do cangaceiro, um dos “donos do sertão”, provocava medo e
curiosidade. Labioso e vestido de forma aparatosa, destoante da pobreza geral,
sua presença agitou a vila nos quatro dias em que lá esteve. Após sua partida,
sobreveio o receio da “volante” que poderia estar no seu encalço. Elas podiam
ser tão violentas quanto os cangaceiros (“Muquém”, Edição do Autor – Teresina –
1996). Analisei esse livro em “Fazer o Piauí”, B. Camboriú, Editora Minarete,
2000.
(***)
“República de Princesa – José Pereira x João Pessoa”, de Joaquim Inojosa, Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira/MEC, 1980; “A Revolta de Princesa – Poder
Privado x Poder Instituído”, de Inês Caminha L. Rodrigues, S. Paulo, Editora
Brasiliense, 1981; “Presença de Inojosa”, de Enéas Athanázio, ensaios,
Blumenau, Fundação Casa Dr. Blumenau/Gráfica 43, 1985.
B. Camboriú,
14 de dezembro de 2004, 16:00h.
(07 de novembro/2009)
CooJornal no 657
Enéas
Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
http://www.riototal.com.br/coojornal/eneasathanazio155.htm
http://blogdomendesemendes.blogspot.com