Telma de Barros Correia - (Profa. Dra, SAP-EESC-USP)
Negócios e Política
O sucesso empresarial de Delmiro
dependeu de favores e concessões públicas. A realização de iniciativas
empresariais arrojadas, como as levadas a cabo por Delmiro, dependeram de
concessões públicas, obtidas graças a alianças com políticos de Pernambuco e
Alagoas. O Derby tornou-se possível pela concessão do Prefeito Coelho Cintra do
Recife, em 1898, concessão para construir e explorar um mercado - que batizou
Mercado Coelho Cintra - pelo prazo de 25 anos, com isenção de impostos
municipais. Pedra, um empreendimento ainda mais amplo, incluindo núcleo fabril,
fábrica, curtume, fazendas, usina hidrelétrica, açudes, sistema de
abastecimento de água e cerca de 520 quilômetros de estradas, exigiu concessões
diversas, já mencionadas, obtidas graças a empenho pessoal de governadores
alagoanos, com os quais Delmiro travou relações de amizade e de alinhamento
político.
Embora não tenha concorrido
diretamente para cargos públicos, Delmiro envolveu-se profundamente na
política. No Recife, tomou o partido do grupo que fazia oposição a Rosa e Silva
e ao Partido Republicano Federal, mantendo vínculos estreitos com Coelho
Cintra, José Mariano, Gonçalves Maia e Phaelante da Câmara. Na eleição de 1899,
integrou uma caravana que percorreu o interior do Estado em propaganda
eleitoral (SANTOS, 1947, 11). Participou ativamente, em 1911, da campanha do
General Dantas Barreto para o Governo do Estado. Em Alagoas foi aliado dos
governadores Euclides Malta e Joaquim Paulo Malta, do Coronel Ulisses Luna (de
Água Branca) e do Coronel Manoel Rodrigues da Rocha (de Santana do Ipanema).
Aos aliados, além de favores, Delmiro tinha a possibilidade de oferecer votos.
É provável que controlasse grande número de votos entre seus fornecedores de
courinhos, locatários do mercado e empregados das várias empresas que possuiu.
No caso de Pedra, a massa de operários submetida a programa de alfabetização
contribuiu, sem dúvida, para alterar a correlação de forças na região e para
inquietar seus adversários políticos.
Apesar da estreita relação entre
política e negócios que presidiu sua trajetória no mundo do comércio e da
indústria, Delmiro se empenhou em desqualificar sua atuação política. Adotando
um discurso coerente com a imagem do indivíduo independente e do empreendedor
auto-suficiente que procurou encarnar, buscou negar sua intimidade com a
atividade política: "Nada tenho que
ver com a politica. Não sou politico. Não sou partidario. A politica influe
apenas indirectamente nos meus negocios pela acção dos impostos ou pelas
garantias constitucionaes que ella anima" (GOUVEIA, 12 jul. 1899, 3).
A
oposição feita por Delmiro a Rosa e Silva - político que comandou durante mais
de quinze anos a política estadual - provocou grandes danos aos seus negócios
no Recife e inviabilizou sua permanência em Pernambuco. Antigo membro do
Partido Conservador no Império, Rosa e Silva, já em 1893, ingressou no Partido
Republicano Federal - fundado nesse ano - e, a partir de 1896, assumiu a
liderança política do estado, relegando à oposição republicanos históricos como
Martins Júnior e Gonçalves Maia. Embora freqüentasse muito pouco o Recife -
morava no Rio de Janeiro, onde exerceu função de senador e vice-presidente da
República - e contasse com a antipatia de amplos setores da população da
cidade, Rosa e Silva controlou a política estadual de 1896 a 1911. No período,
indicou todos os governadores que, por sua vez, indicaram os chefes políticos
locais. A estratégia de Rosa e Silva para tal domínio consistiu em bloquear a
autonomia política de seus aliados e desencadear uma violenta pressão sobre a
oposição, a ponto de muitas de suas lideranças terem sido obrigadas a emigrar
para outros estados. Em artigo de 1906, o jurista Phaelante da Câmara acusava o
ex-governador Sigismundo Gonçalves - um fiel aliado de Rosa e Silva - de, no
exercício do governo, com a aquiescência ou cumplicidade do judiciário, haver
desrespeitado vários direitos constitucionais, como o habeas-corpus, o
domicílio, a propriedade, a instituição do juri e a fiança criminal (CAMARA,
1906, 1).
Delmiro Gouveia foi um adversário
ferrenho de Rosa e Silva, travando com os partidários deste, no Recife,
violentas trocas de acusações pela imprensa. A situação acusava Delmiro de
especulador e a oposição o defendia, enfatizando o autoritarismo e a
intransigência do governo. No primeiro semestre de 1899, uma série de conflitos
envolveu Delmiro e o então Prefeito do Recife, Esmeraldino Bandeira, indivíduo
que se auto-intitulava a "segunda
pessoa" de Rosa e Silva. Houve, da parte do Prefeito, a proibição -
utilizando força policial - da venda de carne verde no Mercado do Derby. A
imposição de empecilhos a obras drenagem que estavam sendo realizadas por
Delmiro no Derby, foi outro momento de tensão entre ele e o Prefeito do Recife.
Tais conflitos se converteram em confronto aberto quando um carregamento de
farinha que se dirigia ao Derby foi apreendido por ordem do Prefeito ao chegar
ao Recife.
No segundo semestre desse ano, as
divergências acirraram-se, após episódio ocorrido no Rio de Janeiro, onde
Delmiro, após tentar, sem sucesso, um entendimento com Rosa e Silva, tendo-o
encontrado na Rua do Ouvidor, agrediu-o com a bengala. Jornais da situação do
Recife criticaram violentamente esta atitude. Entre as inúmeras mensagens de
apoio recebidas pelo Vice-Presidente da República após este episódio, consta um
telegrama do Governador de Pernambuco, empenhando o compromisso de um revide da
parte dos "amigos" de Rosa no estado:
"Recife, 19 de junho - Urgente - Dr. Rosa e
Silva, vice-presidente da Republica - Rio - Sou interprete competente da grande
maioria do Estado para affirmar-vos que o tendes prompto a lavar qualquer
affronta que a cegueira partidaria por intermedio de algum suggestionado, ouse
fazer-vos... Descansai em vossos amigos. Não se humilha um homem notavel e
limpo por se mandar um desvairado dirigir-lhe, perante uma população civilisada,
algumas chufas. O aggredido, sereno, acatado por todos, volta as costas ao
aggressor, e deixa-o expor-se sozinho por si proprio, tal qual é, ao publico,
que, não raro, se enoja de entes que, inconscientemente, a tanto se abatem. Fui
levar o testemunho do meu apreço aos vossos dignos pais e filhos e encontrei-os
calmos, como deveriam estar, e correctos. Cordiaes saudações. Sigismundo
Gonçalves" (O Paiz, 20 jul. 1899, 1).
O episódio intensificou a troca de
acusações, pela imprensa, entre Delmiro e seus adversários. Delmiro era acusado
de enriquecimento ilícito - sonegação de impostos no comércio de couro e
algodão - e de praticar violências contra concorrentes - teria usado um capanga
para espancar em uma rua do Recife um concorrente no comércio de peles, Clément
Levy, que, após o incidente, teria se transferido para Fortaleza. Atribui-se a
métodos desta natureza - e não ao trabalho honesto e perseverante tantas vezes
reivindicado por Delmiro - a origem de sua fortuna (Jornal do Commercio, 6 jul.
1899, 5). Tais acusações eram rebatidas por Delmiro, questionando as origens da
fortuna que Rosa e Silva "(...) usufrue
em seu ócio" (GOUVEIA, 7 jul. 1899, 4); contrapondo uma idéia de ganho
honesto obtido pelo trabalho com uma noção da política como meio de obtenção de
proveitos indevidos: "Sou um homem
do povo, sou um plebeo, e, se possuo um brazão unico, é o que o trabalho
esculpe na vida dos homens úteis à sua patria" (GOUVEIA, 28 jun. 1899,
4). Coerente com a noção liberal de mérito, Delmiro se contrapõem a este "filho de seu pai" - Rosa era
filho do Comendador Albino Silva - se auto-intitulando "filho de si mesmo", de seu trabalho, de seu próprio
esforço, reivindicando para si "a
coragem que só a luta ensina" (GOUVEIA, 21 jul. 1899, 4).
Enquanto isso, o cerco do governo a
Delmiro foi se fechando com diferentes estratégias. Na madrugada do Natal,
soldados da polícia provocaram tumultos - "terror
e ataques de senhoras" - em evento realizado no Derby, ao investirem
com seus cavalos sobre uma multidão que aguardava dentro do Mercado o início de
uma missa campal (MENEZES, 1991, 96). Conforme matéria em jornal:
"A policia sempre prompta a plantar a desordem,
na noite da festa tentou fazer diabruras no Derby, onde viam-se cerca de oito
mil pessoas, entre ellas familias distinctas. Não poude, porem levar a effeito
o seu intento pela energia do Coronel Napoleão Duarte, que chamou á ordem o
subdelegado e seus auxiliares. No entanto houve panico, provocando este,
ataques e grande confusão. É sempre assim a nossa policia (...)"
(Jornal Pequeno, 27 dez. 1899, 2).
Tal episódio deu lugar a novas
afrontas, quando, poucos dias depois, um coronel da polícia dirigiu-se ao
mercado para protestar contra o tratamento dispensado a seus soldados por
ocasião dos tumultos por eles provocados, alertando "(...) que si quizesse entraria a cavallo no mercado e rebentaria
tudo, e terminou as ameaças com a promessa de voltar em breve" (A
Província, 29 dez. 1899, 1). Na madrugada do dia dois de janeiro de 1900, a
polícia incendiou o mercado do Derby e durante este dia o Recife foi tomado por
frenético movimento de tropas, seguido de prisões, entre as quais a de Delmiro,
de Napoleão Duarte e de vários empregados do mercado.
O incêndio havia sido noticiado com
antecedência por jornais da situação e da oposição. Os primeiros alegavam que
Delmiro iria recorrer a este expediente para tentar uma saída para seus
negócios que, dizia-se, iam mal. Os jornais de oposição alertavam que os
adversários de Delmiro estariam planejando incendiar o mercado para levá-lo à
falência. A Província publicou, em 4 de janeiro, o conteúdo de um telegrama
atribuído ao Governador Sigismundo Gonçalves para o Conselheiro Rosa e Silva: "Mercado incendiado. Delmiro preso.
Saudações, Sigismundo Gonçalves". Ainda em janeiro, Delmiro arrendou o
Derby e viajou para a Europa. Os incidentes foram atribuídos pelo jornal A
Província às eleições de 31 de dezembro de 1899, cujo resultado desfavorável ao
Governo no centro do Recife era imputado, por alguns políticos da situação, à
ação de Delmiro Gouveia (A Província, 10 jan. 1900, 1).
Percebendo que não havia ambiente
propício para se manter no Recife, Delmiro se transferiu para Pedra, em
Alagoas, em 1903. Esta mudança foi precipitada por um mandato de prisão contra
ele por rapto de uma menor que, coincidentemente ou não, era filha - nascida de
uma relação fora do casamento - do Governador Sigismundo Gonçalves. O episódio
gerou reação enérgica dos governantes, particularmente do Governador, envolvido
também por questões pessoais. O Chefe da polícia comandou pessoalmente as
buscas ao casal. Após rápido inquérito policial, a prisão de Delmiro foi
decretada. Quando a polícia finalmente conseguiu localizar Eulina em um
subúrbio do Recife, Delmiro já se encontrava refugiado em Alagoas, onde se
estabeleceu numa fazenda junto ao pequeno povoado de Pedra, no Município de
Água Branca.
A transferência para Alagoas, no
entanto, não pôs fim aos seus conflitos com governantes pernambucanos. Em 1904,
Delmiro foi preso na estação de trem de Pedra por um destacamento da polícia de
Pernambuco - onde permanecia contra ele processo pelo rapto de menor de idade -
e conduzido à cidade de Jatobá de Tacaratu neste Estado, tendo sido liberado
após habeas-corpus concedido pelo juiz Sérgio Magalhães, que em represália foi
posto em disponibilidade e teve sua comarca suprimida.
Em 1910, o Governo de Pernambuco
apreendeu carregamento de peles e instalou inquérito contra Delmiro sob a
acusação de contrabando de peles. A perseguição à sonegação não era uma
atividade administrativa de rotina, mas, antes de tudo, uma arma a ser
empregada contra inimigos políticos e desafetos. Inseria-se, como bem lembrou
Paulo Cavalcanti, numa lógica clientelista, cuja regra básica é: "para os amigos, tudo; para os
inimigos, a lei". Em 1911, com a eleição de Dantas Barreto - aliado de
Delmiro - para o Governo do Estado, o processo foi arquivado e o coletor
responsável pela apreensão das peles demitido.
Em Pedra controlando grande número
de funcionários e estabelecendo relações comerciais diversas, Delmiro
converteu-se na principal força econômica da região. Tal situação colocava-o em
condições de firmar-se, também, como uma importante força política. Desde que
se estabeleceu em Pedra, Delmiro contou com o apoio do Governo de Alagoas e de
alguns influentes chefes políticos do interior do estado. Uma vez em Pedra,
Delmiro ampliou sua força política pelo controle de número crescente de votos.
Em 1911, com a posse de Dantas Barreto no Governo de Pernambuco, a influência
política de Delmiro ampliou-se ainda mais, agravando conflitos com indivíduos
influentes de cidades vizinhas
O assassinato de Delmiro, em 1917, é
atribuído pela maioria de seus biógrafos aos coronéis José Rodrigues de Lima
(de Piranhas) e José Gomes de Lima (de Jatobá), os quais entraram em conflito
com Delmiro por motivos políticos e econômicos. Os atritos entre Delmiro e o
Coronel José Gomes ocorreram quando, com a interferência do industrial, este
perdeu a chefia política do Município de Jatobá e o cargo de coletor. Com o
coronel José Rodrigues - chefe político de Piranhas, município vizinho a Pedra
- os atritos decorreram, sobretudo, de questões econômicas, relativas ao
fornecimento de lenha para a Estrada de Ferro Paulo Afonso, à concorrência no
comércio de peles e a questões referentes à posse de terras.
CONTINUA...
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