Ziraldo
- Ele já morreu?
- Eu não sei se ele tá vivo ou se tá morto. Só sei que chamava Adão. Então,
ajuntou lá um time e me cagoetou com a polícia.
Sérgio Cabral - Isso onde?
- Lá no Estado da Bahia.
Ziraldo - Que cidade?
- Não é cidade não, é mato mesmo, Lagoa da Onça. Aí, eu cheguei lá e um rapaz
falou comigo que era pra eu tomar cuidado que a polícia tava por ali. Eu
disse: "Pode deixar comigo que eu sei sair". Quando foi de
manhã, eu saí e matei um garrote. Quando eu tava tirando o couro do garrote,
eles me cercaram dentro de uma roda...”
Millôr - Estava matando o garrote pra comer?
- É. E aí mandaram bala em mim. Tinha um rapazinho comigo ali e ele logo
recebeu um na cabeça e caiu logo ali.
Jaguar - Era amigo, seu, esse cara?
- Era, tava comigo.
Sérgio Cabral - Num queriam nem prender, queriam era matar?
- O negócio num era prender, não. Era matar.
Ziraldo - Como é que você escapou dessa?
- Como que eu escapei? Eu saí, arrombei a cerca por baixo, cheguei por detrais dele,
dei uns dois tiros e caí fora. Eles ficaram lá, brigando umas duas horas, eles
mesmos, sozinhos. Eu fui embora. Cheguei lá, fiquei sentado, chupando melancia.
E a minha vontade era de ir lá, só escutando eles gastando bala feito diabo. E
eu quieto, quietinho lá no meu canto. depois, eu saí e fui na casa desse cara.
Num sabia de nada.
Millôr - Do Adão?
- É, desse Adão. E ele já tinha chamado a turma dele toda lá, tava tudo dentro
de casa. Eu num sabia de nada, era amigo, né? Aí, quando cheguei lá, ele
disse: "Ôpa, que que há, rapaz?” Eu digo: "nada". Ele
diz: "O que que foi aquele tiroteio?” Eu digo: "Eles
me encontraram ali e me deram uns tiros: eu dei uns dois também neles e caí
fora". Ele diz: "Ô rapaz, a tua mão num tá de calo,
não?” Olha, cê vê como que pode. A falsidade dói como o diabo... Ele de
novo: "Escuta, rapaz, sua mão num tá de calo, não?” E
eu: "Que nada, rapaz, isso é bobagem". Ele pegou a minha
mão e apertou. Quando ele apertou, eu digo: "Ô rapaz, deixa
disso". Ele disse: "Você tá preso". Eu
digo: "Preso? Olha, rapaz, eu pego você sem Deus me
ajudar".
Foi a palavra mais errada que eu disse na minha vida. Ele aí avançou em cima de
mim. Quando ele avançou, eu chamei ele e botei no chão. Aí ele gritou: "Me
acode!” Quando eu vi, já tava todo mundo em cima de mim. Uns 15.
Millôr - Você tinha uns 14 anos, né? Um menininho...
- Era garoto, mas era forte. Andei tombando uns dois lá, e aí, pronto. Eles me
amarraram igual um porco. Diziam: "Eu mato, num
mato..." Aí, veio a irmã dele, que queria dar boa vida a ele, e
disse: "Num façam isso com ele não. Já que vocês prenderam, leva ele
e entrega na polícia". Eu, amarrado, que que podia fazer? Eles me pegaram
e foram me entregar justamente a esse tenente que estava baleado. Lá no tiroteio
ele tomou um tiro e tava com as costas toda esfacelada. Aí, quando chegaram lá
e me entregaram, foi o mesmo que entregar um mosquito nas mãos de urubu.
Empurra pra lá, empurra pra cá, eu num vi mais nada. Eu olhava pra cara
daqueles fedorentos e endoidei, fiquei maluco. Aí, chegou um crioulão com um
chapelão: "O negócio é matar". Aí foi dar um tapa na minha cara. Eu
abaixei e dei um pontapé nele...
Millôr - Tava amarrado ainda?
- Amarrado. Aí, veio o tenente lá, todo emplastado: "Num toca nesse
homem não!” É um tenente alagoano – eu esqueci o nome do homem. E foi logo
dizendo: "A hora de vocês matarem ele era lá, na hora que vocês
estavam brigando. Eu recebi esse tiro e vocês saíram correndo. Então, era nessa
hora que vocês deviam ter matado ele. Aqui ele tá garantido por um homem e pela
lei e ninguém precisa pôr um dedo nele".
Ziraldo - Cê acertou o coice no sargento?
- Acertei e foi um coice desgraçado. Ele caiu lá com a mão, rolando pelo chão.
Eu digo: "E se dane". O tenente é Joaquim, Zé Joaquim. Ele
disse: "O homem tá garantido e eu não entrego a ninguém a não ser o
(sic) chefe da polícia. Num sendo ele, num sai da minha mão. E qualquer coisa
que triscar nesse homem aí, já pode saber que vai expulso e preso".
Ziraldo - Ele sabia que você era o Volta Seca?
- Sabia.
Millôr - Isso foi em Alagoas?
- Foi na Bahia mesmo, Santo Antonio da Glória. Aí, eu fiquei lá, num comia
nada.
Ziraldo - Na prisão eles não davam comida?
- Não, vinha de tudo, farinha pura...
Jaguar - Você ficou preso em Santo Antonio da Glória?
- Foi. Não tinha fome nem sentia nada, revoltado.
Ziraldo - Os jornais anunciaram essa prisão lá na cidade?
- Só depois. Aí, eu digo, tá certo. Viro daqui, viro dali, o tenente
diz: "Aqui ninguém toca em você, nem nada". E passou logo um
telegrama pra polícia, pro chefe da polícia, que era o capitão João Facó. Aí,
ele mandou reforço: "Diga que garanto o homem, num toca num dedo
dele, nem nada, me traz o homem". E disse: "Entrega pro coronel
Costinha que ele recambia ele daqui pro Rio, pra Bahia". O coronel Costinha
mesmo foi me buscar, mas o tenente disse:"Não, eu mesmo levo e entrego lá.
Num tenho confiança de deixar vocês levarem ele".
Millôr - Bacana o homem, hein?
- É, tá certo, bacana. Nós saímos e quando nós chegamos lá no trem, ia pra mais
de 300. Um carro do trem, uma traça daquela, não cabia ninguém, a não ser eu e
a polícia só. Um carro só, e veio cheio que não tinha lugar pra sentar.
Millôr - Cheio de polícia pra levar você, né?
- É. Pra me levar. Eu tava amarrado, porque Lampião mandou recado que se não me
segurasse, eles iam me pegar no lugar que eu tivesse. No trem, no caminhão, no
diabo que fosse. E botou diversas emboscadas, mas eles souberam fazer o troço.
Chegando lá, me entregaram, e de lá me tocaram pra Bahia.
Millôr - Eles te entregaram perto de Canudos?
- Não, muito pra baixo.
Ziraldo - Se o Lampião pegasse você, cê tava perdido dos dois lados, né?
- Tava não, ele já queria me salvar. O negócio era esse.
Millôr - A essa altura ele já queria te salvar, né? Então, você chegou na
Bahia...
- Me tocaram pra Salvador.
Millôr - Você nunca tinha ido à capital?
- Não.
CONTINUA...
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