Por Raul Meneleu
Na história do
cangaço, não necessariamente a que retrata Lampião e seu bando, sentimos que a
violência imperava naquela época e o reflexo de tal, não irradiava somente na
figura dos foras da lei mas também daqueles que eram pagos pela sociedade para
protege-la.
Lemos em
livros de diversos autores que os soldados e seus comandantes eram também de
uma ferocidade exacerbada e muitas vezes excediam em maltratar principalmente
os pobres, que não dispunham de uma justiça cega, pois a que existia via tudo
ao seu redor e escolhia proteger os que tinham dinheiro e poder.
Aqui e acolá
fatos hediondos nos são trazidos por livros de escritores e um dos que chama
atenção para isso, é um capítulo do livro ALMAS DE LAMA E DE AÇO, onde um dos
mais importantes membros da Academia Brasileira de Letras, advogado, professor,
político, contista, folclorista, museólogo, cronista, ensaísta e romancista; o
cearense Gustavo Barroso (1888-1959), que lhe dá o título de CANGACEIROS DE
FARDA, e através de sua experiência pessoal, como Secretário de Estado do
Interior, no governo (1914-1916) cearense do general Benjamim Barroso
(1859-1933), onde relata a violência dos policiais e a falta de preparo de
alguns oficiais.
Fazendo uma
comparação com os dias de hoje, podemos notar que praticamente alguns policiais
continuam a ser violentos além do necessário, em todos Estados do Brasil, assim
como era naquela época. Mas voltemos ao livro.
Gustavo
Barroso textualmente lá no ano de 1928, quando escreveu esse livro, já dizia
que “são tudo, menos polícias... E que eram organizadas por oficiais do
Exército, escolhidos pelas conveniências políticas.”
Nos Estados do
Nordeste brasileiro flagelados pelo banditismo, os batalhões de polícia eram
chamados de Segurança. Polícia era termo considerado pejorativo. Gustavo
Barroso nos conta que eles tinham o mesmo número de companhias e de praças que
os do Exército, obedeciam aos mesmos regulamentos de serviço, vestiam-se com
quase o mesmo uniforme, eram considerados sua reserva e segundo o autor.
“tornam-se inúteis ou prejudiciais para a missão que deviam cumprir.”
Esses soldados
eram recrutados geralmente entre os piores elementos da sociedade, “dão
guarnição na capital, formam em parada, são revistados no dia sete de Setembro
pelo governador, usam grandes galas espaventosas, fornecem capangas disfarçados
para surrar jornalistas, empastelam tipografias e, na hora do perigo,
derretem-se como por encanto. Conheci uma faustosa polícia dessa natureza, a do
presidente Nogueira Accioly, que o deixou sozinho no dia em que o povo de
Fortaleza se revoltou. Nunca houvera guarda pretoriana mais apavorante, nem
comandante mais entusiasmado. Evaporaram-se aos primeiros tiros de duas dúzias
de rapazes do comércio e estudantes...
Até hoje não
tiveram os Estados nordestinos um homem de governo que os livrasse do ônus
financeiro e moral dessas caricaturas de tropa de linha. Esses aparelhos
militares policiais custam milhares de contos e são nocivos. De que forças
precisa um presidente nordestino?”
Já naquela
época, Gustavo Barroso já defendia um polícia inteiramente civil e não militar.
Nos convida para reflexão quando diz:
“Examinemos a
questão com inteligência. O policiamento de sua capital deve ser feito pela
guarda-civil. Aliás, esta existe em muitas sedes de governo. Uma companhia de
estabelecimento, bem disciplinada, constituída de veteranos de boa conduta, é
bastante para a guarda dos edifícios públicos, as guardas de honra e outros
serviços de guarnição. Um pequeno esquadrão de cavalaria basta às rondas e
escoltas. E, em lugar dos tais Batalhões de Segurança, algumas companhias
volantes no interior, de infantaria montada, organizadas semelhantemente à
guarda rural, tão famosa, do Canadá, e ao regimento sertanejo de S. Paulo.
Homens do sertão, escolhidos a dedo, bem pagos, vestidos à maneira do sertão,
montados, armados, equipados e exercitados à sertaneja. Eis ai a única tropa
capaz de combater e vencer o cangaceiro. Talvez um dia essa ideia medre na
cabeça dum dos administradores daquelas terras e, assim, termine a vergonha de
haver polícias piores que os bandidos, provocando à revolta almas enérgicas que
descambam para o crime. A ação violenta, injusta e brutal da polícia tem de ser
sociologicamente computada entre as causas principais do cangaceirismo.”
Daí então
Gustavo Barroso nos dá vários exemplos da sanha violenta de membros da polícia,
com reportagens de jornais, e indica notícias do jornal O Ceará de 9 de Agosto
de 1929:
"Espancado
por nove soldados de polícia, enlouqueceu — Granja 7 — Meu marido foi
barbaramente espancado por nove soldados de polícia, ficando muito doente.
Depois de tamanha atrocidade, permaneceu trinta e seis horas na cadeia. Dois
dias após ao espancamento, ficou louco. Chamado o medico, dr. Jacome de
Oliveira, este atribuiu a perturbação mental a fortes pancadas vibradas no
crânio. Pedi providências ao dr. chefe de polícia, de quem espero ação
enérgica. Rosa Pereira de Lima."
Amanhã, os
filhos ou parentes dessa vítima matam o responsável direto por esse espancamento,
que não foi punido. Persegue-os a justiça. Eles amontam-se e tornam-se
bandidos. Quem os gerou? A polícia.
Outra local da
mesma folha:
"Verificou-se,
sábado último estúpida cena de sangue, que teve por teatro a pitoresca vila de
Guaramiranga e da qual foi vítima o trabalhador de nome João Branco da Silva,
com 28 anos de idade, casado, empregado no sítio do dr. Hélio Caracas, naquela
localidade." "Achava-se João Branco um pouco alcoolizado, em certa
bodega do povoado, acompanhado de um colega de trabalho, quando, apeando-se do
cavalo em que vinha montado, entrou inopinadamente no estabelecimento o
sargento de polícia Tito, conhecido ali por militar desordeiro e de caráter
atrabiliário.
João Branco,
nesse momento, encontrava-se com o juízo completamente transtornado pelos
vapores alcóolicos.
Ao pedido do
amigo para que não mais bebesse, puxou violentamente a faca que trazia no cinto
e a cravou com força no balcão, vergando-a até quebrá-la em dois pedaços. Nesse
ínterim, apareceu o sargento Tito, que brutalmente agarrou a João Branco pelo
braço, enquanto, dando-lhe voz de prisão, lhe encostava no ombro direito o
revólver e disparava. Atingido pelo projetil, o desditoso operário conseguiu
desprender-se das mãos do militar refugiando-se, em seguida, na residência do
merceeiro, próxima à bodega.
Raivoso por
não ter satisfeito a sede de sangue que caracteriza os assassinos, o miliciano
foi à procura da sua vítima, penetrando na residência do merceeiro, a despeito
dos rogos deste, que queria evitar qualquer abalo moral à sua mulher, que se
achava de resguardo. Surdo aos pedidos, o violento militar arrastou a João
Branco de dentro do quarto onde o mesmo estava escondido, trazendo-o, desse
modo, para fora. — "Neste momento não obedeço nem mesmo aos meus superiores",
foram as palavras do sargento ao ser-lhe pedida pela segunda vez a vida do
operário pelo comerciante.
Sabendo,
porém, que o trabalhador era empregado do dr. Hélio Caracas, o furibundo
militar largou a sua presa, deixando-a retirar-se para a casa dos seus patrões.
O ferido foi transportado, domingo, em automóvel, para Baturité, onde lhe foram
facultados os primeiros curativos. A bala alojou-se na região torácica, não
tendo sido ainda extraída.
João Branco
foi recolhido, anteontem, à Santa Casa, para ser procedida esta operação. A
polícia não tomou conhecimento do fato."
Outro caso que
Gustavo Barroso nos traz a conhecimento deu-se em Guaramiranga que “não é uma
localidade perdida no fundo dos sertões; mas a princesa da serra de Baturité, a
Petrópolis de Fortaleza, com estrada de ferro próxima e estrada de rodagem,
distando da capital mais ou menos cem quilômetros. O fato, eloquentíssimo, não
carece comentários. Os resultados dessas violências são outras violências. No
futuro, esse truculento inferior poderá ser assassinado por vingança, como há
muito pouco tempo foi morto à porta de sua casa, à noite, dentro de Fortaleza,
um tenente de polícia costumeiro a mandar espancar-, desfeitear e
prender.
É ainda o
referido jornal que, noticiando o passamento do chefe político sertanejo Isaias
Arruda, nos dá esta página viva do cangaço no Ceará: "Pesavam-lhe, como
ninguém ignora entre nós, terríveis acusações de chefe de cangaço, de protetor
de Lampião e seu sócio, de incendiário da ponte do rio Salgado, de vários
assassinatos por ele mandados praticar friamente, na sua maior parte, para a
ocultação de hediondos delitos.
Isaias morou
no Cedro e Aurora em cujas localidades, com os seus irmãos, abriu varias lutas
com os destacamentos locais. Ele e os seus eram tidos como valentes e, por isso
mesmo, temidos. Há seis anos mudou-se para Missão Velha. Assumindo o governo o
desembargador Moreira e precisando desbancar o partido democrata, começou por
ali a tarefa, com a deposição, à mão armada, do coronel Manoel Dantas de
Araújo, chefe do mesmo partido, empresa essa que foi confiada a Isaias Arruda,
pelo então chefe de polícia, dr. José Pires de Carvalho e pelos dois filhos do
presidente. Essa combinação se deu, em 1925, na própria vila de Missão Velha
quando se inaugurava a estação da estrada de ferro e quando o coronel deposto
recebia, com festas, o presidente do Estado e luzida comitiva que então, foi ao
Juazeiro e Crato. Dada a deposição, o coronel Dantas tentou reconquistar seu
posto e, então, teve com armas nas mãos, para sua defesa, os seus amigos, de
Ingazeiras e Aurora, os Paulinos.
Estes, homens
valentes, brancos, eram uns quinze, que formavam urna espécie de guarda para a
defesa dos seus interesses, naquele pedaço do nosso sertão onde ainda não raiou
o sol da justiça e onde sempre imperou o direito cio mais forte.
Isaias, que
com eles mantinha relações de amizade, dada aquela atitude ao lado do coronel
Dantas, passou a hostiliza-los, contando para isso não só com os seus
cangaceiros como, francamente, com a força pública. Invadindo Ingazeiras certa
vez à frente de bandidos e soldados, conquistou-a, roubou-lhe as mercadorias de
quatro lojas e ateou fogo nas suas casas, naquele povoado. Numa emboscada,
posteriormente, dirigida por José Gonçalves, delegado de polícia de Missão
Velha, foi assassinado João Paulino, o chefe do bando. Depois seguiram-se os
assassinatos de outros Paulinos e de três moradores seus.
Continuando a
tremenda perseguição, os Paulinos restantes, com as suas famílias, mudaram-se
para a Paraíba, onde, em Princesa, se sentiram garantidos sob a proteção do
deputado estadual coronel José Pereira. Dois desses, passado algum tempo,
vieram da Paraíba à Fortaleza.
Vieram pedir
garantias ao governo para reverem os seus haveres, propriedades e gados em
Aurora e Ingazeiras. O governo não lhes prestou a devida atenção, tendo eles
ainda sido presos aqui pelo tenente Manoel Gonçalves de Araújo, então inspetor
de veículos e cunhado de Isaias.
Não obstante
isso, esses dois Paulinos conseguiram ir à sua terra, às escondidas, e lá
verificaram que nada mais possuíam. Tudo que lhes pertencia, os gados, móveis,
etc., haviam sido roubados!
As casas, os
currais, os cercados, haviam sido devorados pelo fogo. Naquelas paragens
ninguém há que desconheça estes fatos.
Agora eis que
Antonio e Francisco Paulino cortaram a Isaias Arruda, o fim da sua
existência."
Gustavo
Barroso finaliza esse capítulo dizendo: "Os exemplos mostram que os
bandidos sertanejos quase sempre procuram fazer com suas mãos a justiça que
lhes negaram magistrados, policias e governos. De mim sei que, na maioria dos
casos, prefiro os cangaceiros sem farda aos cangaceiros de farda. Aqueles
são muitas vezes almas de aço. Estes raramente não são almas somente de lama."
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