Por Rangel Alves
da Costa*
Consta dos
autos da História que Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, em companhia
de um bando de cangaceiros, praticaram os crimes incursos no códice criminal
sertanejo: homicídios tentados e consumados, estupros, infanticídios, ameaças,
roubos, extorsões, perturbação à paz pública, violação da propriedade alheia e
formação de quadrilha, dentre outros tipos penais. Ofertada denúncia, a
acusação conclamou pela condenação. Em alegações finais, a defesa pugnou pela
absolvição ante a realidade fática, enquanto o órgão acusador reiterou pela
condenação ante a induvidosa materialidade dos crimes praticados pelo bando
comandado pelo também conhecido como Capitão Lampião. Passo a decidir.
Segundo os
termos da acusação, Virgulino Ferreira da Silva, durante cerca de vinte anos,
sempre acompanhado de um bando descontínuo de cangaceiros, assolou todo o
sertão nordestino com a prática das mais insidiosas e perversas ações. Cita o
estado de terror perpetrado nas localidades por onde passava, matando e
violando inocentes, extorquindo oprimidos e poderosos, roubando e incendiando
propriedades, sendo algoz de sangue de qualquer um que pela frente encontrasse.
Por sua vez, a defesa não somente se contrapôs às acusações como justificou as
ações de Lampião e seu bando às luzes das excludentes de criminalidade,
apontando a legítima defesa e o estado de necessidade.
Nesta seara,
afirma a defesa que Lampião e seu bando, ao invés de serem apontados como
agentes do crime, teriam que ser vistos como pessoas que viviam continuamente
sendo perseguidos pela polícia volante, não lhes restando alternativa senão
atacar, como meio defensivo, para sobreviver. Acentua que motivados por uma
causa justa, pois numa luta iniciada pela inação do próprio Estado na defesa
das classes mais empobrecidas e pela sua inércia ante as injustiças praticadas
pelos poderosos, o que alguns sertanejos fizeram foi reunir interesses de
oprimidos para confrontar os opressores, até mesmo o Estado enquanto polícia.
Acentua ainda
a defesa que não se pode ter como prática deliberadamente criminosa uma atitude
meramente defensiva, legitimando a reação contra os constantes e contínuos
ataques das volantes. Ou a reação se dava na medida do ataque ou todo o bando
seria exterminado no primeiro confronto. E por que a polícia tanto perseguia
Lampião e seu bando, indaga a defesa. E responde: Por que o Estado não via
Lampião como criminoso comum, mas como aquele que podia arregimentar forças
poderosas ao seu objetivo de luta, como coronéis, políticos, autoridades e
latifundiários, e assim confrontar as próprias forças estatais. E o Estado não
queria correr o risco de ter um Nordeste com força independente.
Após demorada
apreciação dos autos, resta salientar, de antemão, a prejudicialidade no
julgamento de tal processo sem que se traga aos autos os demais partícipes nos
crimes descritos na fase inquisitorial e que, após instrução com nítido
prejuízo para a defesa, chegou-me conclusos para julgamento. Há de se indagar
se somente Lampião e seu bando deveriam sentar no banco dos réus quando é do
conhecimento de todos que outras pessoas, espalhadas nos diversos grupos
conhecidos como volantes, e agindo em nome do Estado, praticaram os mesmos
crimes, senão com maior perversidade no modus operandi.
Por mais que
se considerem os elementos de prova trazidos aos autos pela acusação, seria
julgar com imparcialidade apenas parte de um grupo maior que atuou durante anos
por todo o sertão. Ademais, com maior requinte nas ações e brutalidade nos atos
cometidos, tem-se conhecimento que a denominada volante não só espalhou o
terror pela terra sertaneja como fez do já desvalido sertanejo o mais humilhado
dos homens. Basta uma rápida conversação com o homem das terras matutas para
saber quem ele acusa como verdadeiro malfeitor, violento e sanguinário. Quem
sofreu na pele as agruras de haver caído nas ensandecidas mãos da volante,
certamente que não dirá que fora Lampião e seu bando aqueles que fizeram
abordagens e trataram o homem com desmedida fúria.
Urge
considerar acerca das práticas criminosas imputadas a Virgulino Ferreira da
Silva e seus comandados. Aquele certamente era um mundo de guerra, de
violência, de perseguições e combates. E não há guerra sem violência, até mesmo
contra pessoas que apenas habitavam pelos caminhos e proximidades dos homens
das caatingas, bem como cidades e povoações. Há de observar-se que o bando de
cangaceiros não chegava àquelas localidades fartos de comida e bebida, limpos e
contentes, descansados e desapressados. Chegavam geralmente com feras em fuga.
E o que faz uma fera ante a negativa de sua pretensão? Logicamente que ataca,
agride, provoca situações angustiantes. Porém há de se considerar o contexto da
ação e não apenas a violência como ato premeditado.
Não se lança,
aqui, conclusões pessoais do julgador, ainda que este se baseie no livre
convencimento pelo bojo das provas trazidas aos autos, mas violência premeditada
era aquela praticada pelo Estado, através de sua polícia. Contudo, o que se
está julgando é o denominado cangaço, tendo como réus Lampião e seu bando, e
não a volante que fazia parte da outra face de uma mesma moeda. E não se pode
julgar com imparcialidade quando algozes de maior monta sequer são trazidos à
condição de réus.
Ademais,
seriam muitas atenuantes em favor de Virgulino Ferreira e seu bando,
principalmente porque os aludidos crimes praticados pelos cangaceiros se
revestem de motivações sociais e até morais, bem como por injustas agressões do
Estado-vítima. Neste aspecto, não se pode duvidar acerca das opressões, das
perseguições, das imposições desmedidas e das violências praticadas pelo Estado
e seus protegidos. O cangaço não foi fruto nem do desejo de Lampião nem
qualquer outro chefe de bando, mas do próprio poder que fez transformar em fera
aquele tido como verme e que achava manter sob sua sola.
Sem maiores
delongas, mesmo considerando a prejudicialidade no julgamento, principalmente
pela ausência do Estado-polícia no banco dos réus, absolvo o cangaço das
acusações que lhes são imputadas, pelos seus próprios fundamentos.
Poeta e
cronista
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