*Rangel Alves da Costa
Zé de Nem não era nem para entrar nessa história, mas entrou pela sua desimportância tão importante, ou pela sua insignificância primordial, como se verá adiante. Mas ainda parece de muita estranheza que um zé-ninguém como Zé de Nem assuma lugar garboso num texto sobre política e políticos.
Não sei mesmo por que tanto enxerimento do cabra, quando todo mundo sabe que a política e os políticos estão a milhões de anos-luz de um mero matuto, de um empobrecido vivendo na desvalia de tudo, de um completo desconhecido arranchado no oco do mundo. Aí é que se engana.
Tanto a política como os políticos não existiriam - para o bem ou para o mal - acaso Zé de Nem não existisse. Este cabra é tão importante que toda filosofia política, toda teoria política, toda tese política e tudo o que se diga e se escreva sobre políticos, sempre terá o tal Zé como figura primordial.
Ora, o que seria da política e dos políticos sem o Zé de Nem na pobreza, sem o Zé de Nem necessitado de tudo, sem o Zé de Nem eleitor, sem o Zé de Nem votante? Talvez até ele nem seja avistado como gente, mas o simples fato de ser estatística eleitoral já lhe permite atenção e visibilidade.
A verdade é que toda política e todo político andam em círculo em torno de Zé de Nem. Tudo prescinde dele. Sem ele nada haveria. Mesmo na sua insignificância social e humana - ao menos aos olhos do poder -, é no Zé que se sustenta todo o pedestal parlamentar e governamental. Eita cabra da peste é o Zé!
Ninguém avista o Zé, ninguém sequer recorda que ele existe. Ao menos em determinado período pós-eleitoral. Na sua casinha se esconde, no seu mundo fica escondido. Os carros de vidraças fechadas passam e quase atropelam o Zé. Um bicho pulguento no beiral da calçada. Bote por riba!
Ora, mas não é esse mesmo bicho feioso que de repente ganha status de celebridade? Os mesmos carros param à sua porta e de dentro deles descem os sorrisos, as mãos estendidas, as demasiadas cordialidades. Tudo para agradar a Zé. Tudo para transformar a miséria de Zé em paraíso, ao menos na promessa. Não poderia ser diferente: Zé vota, Zé é eleitor!
E um fato importante, ainda que espantoso, a dizer. Zé de Nem pobre, faminto, sedento, mísero e doentio, é muito mais importante para a política e para os políticos do que se fosse um sujeito rico, com muitas posses, com fartura de tudo. Assim como o poder abomina o saber, a política partidária abomina todo aquele que não se venda nem aceite favores.
Numa triste, porém verdadeira analogia, Zé de Nem seria o bicho morto estirado no chão, enquanto a política e os políticos são aves carnicentas. E agourentas também, vez que piaram na noite escura para que as fraquezas se transformassem em queda. Ora, as carências e as fragilidades são fáceis demais de domar segundo as pretensões.
Sim. Zé de Nem estirado no chão, buscando qualquer sopro de vida, sem força própria para se erguer, e os carcarás, os gaviões, os urubus, os abutres, tudo voejando ao redor com bico sedento. Mas não pretendem dizimá-lo ainda, não são, por enquanto, intenções suas de destripar o que ainda resta no resto.
Olha o ardil do carnicento. Bem que poderia dar um rasante e num instante a bicada de misericórdia. Mas não. Despeja qualquer coisa sobre o Zé caído, de modo que aquela mísera ajuda sirva como ilusão de renascimento, e no refazimento a submissão àquele que o ergueu. Mantido será em cativeiro.
Tem-se, assim, que até Zé de Nem caído se torna de fundamental importância para as artimanhas futuras. Aquele que o ergue não deseja, contudo, que ganhe muita força. Zé tem que viver para sempre cambaleante, de modo a continuar precisando de ajuda. Não há interesse algum que Zé de Nem tenha força própria para decidir sua vida.
Aos olhos e aos desejos da política e do político, Zé de Nem tem de continuar pobre e precisa continuar vivendo no submundo humano da miséria. Quanto mais Zé necessitar de esmola, mais fácil será enganar e domar sua carência. Dá um pão e submete o homem, dá um remédio e logo se tem como dono de Zé.
É neste contexto de contínua fragilidade, de permanente necessidade, de longa fome e duradoura sede, que Zé de Nem tanto interessa à política e aos políticos. Como dito, mesmo no cai não cai, mesmo no morre e não morre, o Zé continua sujeito aos olhos do poder e de fundamental importância enquanto eleitor e votante.
Também é em seu nome que as políticas públicas, tão bonitas quanto irrealizáveis, saem dos gabinetes. É a distância lembrando a existência de outro mundo. Mas tanto faz. Não se cumpre sequer o constitucionalmente estabelecido acerca dos direitos e garantias fundamentais, quanto mais aquilo que possa ser a redenção humana de Zé.
E assim Zé de Nem vai vivendo. Ontem mesmo um filho pequeno chorou com fome. Nada ele tinha para oferecer. Mas já ouviu dizer que políticos já estão aparecendo pela região. Logo o pão da ilusão chegará. E pelo bico da mais carnicenta das aves.
Escritor
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