Por José Ribamar Alves
Eu vim ao
mundo sem o mundo saber da minha vinda.
E, foi sem o
mundo saber, que fui crescendo como uma árvore que, castigada pela sede,
amarelada pelo sol e surrada pelos ventos, necessita manter-se de pé e
continuar vivendo.
E, sem
entender exatamente nada sobre a vida, sobre o futuro e muito menos sobre a
liberdade, vi-me deixar dias e mais dias, noites e mais noites à distância de
cada surpreendente amanhecer.
E nos velhos
tempos de mil novecentos e setenta e dois, Boa vista no município de Severiano
Melo-RN, servia de testemunha ocular e de cenário para cenas inesquecíveis de
uma infância, sem infância, para eu, Tomé e outros renegados pelo privilégio que
toda criança tem de sentir-se liberta como as aves dos campos.
E, mesmo sem
entender os mistérios da vida, fui vendo morrerem pessoas que conhecia, assim
como conheço os chinelos que calço, o caneco que
uso para tomar água, a cama que arrumo para dormir, a tacha que
uso para fritar ovos e o caderno que utilizo para descrever as orgias do
afortunado e as dores ensopadas pelas tórridas lágrimas dos inditosos que,
predestinados, vem ao mundo.
E, como o
ciclo da vida não para, nem muda suas regras, então, morreu Zé Telécio, o
patrão que tentava ser certo como dois e dois são quatro, partiu Vicentão, que
para passar por uma porta comum, tinha que se abaixar um palmo ou mais, morreu Sebastião Sapo, que por uma cachacinha trocava um pouco do seu tempo, faleceu
Zé Boágua, que tinha o andar de um nordestino puro como o leite do peito da
vaca Tauá, partiu Joel, que para tomar banho precisava a patroa, madrinha Ceci
Ferreira, passar-lhe uns, aranha-gato, morreu Julita, pobre Julita, que nunca
teve um marido para compartilhar seus sentimentos, faleceu Pedro Ângelo um
zelador dos plantios de algodão, de milho e de feião, do patrão, por fim,
morreu Zé Alves, meu pai homem simples, mestre em construções de cercas de
pedra e de arame farpado, um ser honesto e incansável, pelejador pelo sustento
da família.
E lá se vão os
anos caminhando a passos de camelo, sem esperar por ninguém e, eu sem notícias
daquela terra, sigo minha caminhada, marcado pelas lembranças de outrora e
arrastado pelo tempo feito boi de canga, pelo caminho que começa no berço e
termina na morada do silencio.
E, como o
destino não hesita separar pessoas, distanciou-me do meu passado e das pessoas
que me viram crescer, sem imaginarem que eu venceria o anonimato, a miséria, o
preconceito, a solteirice e um pináculo importantíssimo, chamado meio século de
existência.
Somente depois
de muito tempo, encontrei-me com Tomé, na Ilha de Santa Luzia em um dos bairros
da grande Mossoró-RN, e achei-o de semblante sem tantas mudanças, mas ainda
chicoteado pelo infortúnio miserável que ao invés de proteger, deserda quem
tanto tenta fugir de suas emboscadas.
E, vendo-me de
perto, Tomé fez questão de retroceder comigo aos velhos tempos e me suprir de
elogios assim dizendo: Esse cara, quando jovem era um extraordinário jogador;
fazia o que bem queria com a bola nos pés.
E continuou
assim dizendo: Ele foi criado no sítio que a gente morava,
E sempre foi
um cara bom.
E eu diante
daquele brilho prazeroso que invadia seus olhos, já me sentia por demais
lisonjeado, mas muito feliz e agradecido.
E, continuou
Tomé a falar: Nós pescávamos de anzol, jogávamos bola juntos, e ate falávamos
dos sonhos que tínhamos com o padeiro aos domingos pela manhã, gritando: olhe o
pão, quem vai quer? E que pão cheiroso e saboroso.
Mas, Tomé, não
me falou se havia casado e tido filhos; talvez, quem sabe, por não ser bem
casado, por não ter tido orgulho de ser pai, ou até mesmo
por não ter achado necessário, mas confesso eu que teria gostado de saber.
A essa altura
Tomé já havia fechado o corpo com duas ou três doses de aguardente e, quando
percebi que Tomé já havia tomado além da conta, despedi-me do velho amigo e fui
para casa.
Mas
infelizmente com poucos anos depois Tomé deixava as conversas de pé de
balcão e os companheiros de farra.
Mas quem era
Tomé, afinal?
Tomé, nas
antigas, era um servo de quem tentava ser certo, como dois e dois são quatro;
acordava cedo para encher os recipientes da casa da fazenda, com água trazida
do açude num galão, às vezes num jegue com ancoretas, vez por outra em
roladeira, e querendo ou não tinha que fazer isso todos os dias antes de
merendar.
Como sofrera o
pobre Tomé, mas Tomé mesmo assim viu muita gente ser vestida com um paletó de
madeira e partir para nunca mais voltar, assim como eu também vi, inclusive
ele!
Mas a morte me
deixou viver, talvez justamente para falar sobre Tomé e as pessoas que ele
nunca esquecera antes de partir.
Mas pra
desconto ou aumento dos pecados, eu não fui ao enterro de Tomé!
Não fui talvez
pra não lembrar tanto de sua subserviência, de sua prestação de serviços sem
prestação de contas, de sua mocidade mal aproveitada ou até mesmo do nosso
destino parecido um com o outro.
Eu, assim como
ele, não tive uma boa infância, cresci privado do direito de sorrir, se achasse
graça era reclamado porque aquilo era coisa de gaiato.
Para mim até
hoje, sorrir é um entrave, um engasgo, uma coisa difícil.
Cresci e me
criei sem poder estudar, mas a curiosidade de olhar letras e palavras fez de
mim um autodidata.
Portanto, hoje
me valho das letras, das palavras e das lembranças fujonas e regressastes que
me permitem pensar que sou capaz de ser alguém perante tantos alguéns, e sem
receio de errar, afirmo em alto e bom tom, Ah, como se tem Tomés neste País.
Autor: José
Ribamar Alves, 05-08-2017.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
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