Era 1964
quando o Brasil testemunhou o desabrochar de uma das maiores aventuras
cinematográficas de todos os tempos. Em março daquele ano, era lançado, no Rio
de Janeiro, o longa-metragem “Deus e o diabo na terra do sol”, do cineasta
baiano, Glauber Rocha. O filme, considerado por um jornal da época como “a
maior explosão de talento já ocorrida no cinema brasileiro”, foi rodado nas
áridas regiões de Monte Santo e Canudos, tendo em seu elenco atores da estirpe
de Othon Bastos, Yoná Magalhães, Geraldo D’El Rey e Maurício do Vale.
Naquele
momento, o Brasil atravessava uma das fases mais singulares da sua história
política. Terminava o governo de Juscelino Kubistchek e começava o governo de
João Goulart. A sociedade brasileira, que por cinco anos amargara a política
“desenvolvimentista” de JK, agora, com Jango, divisava o surgimento de um novo
modelo socioeconômico, cimentado, sobretudo, nas chamadas “Reformas de Base”.
Nesse
contexto, “Deus e o diabo na terra do sol” ecoou como uma espécie de “alegoria
da esperança”, servindo de combustível a um país que clamava por mudanças
urgentes. Um dos motes norteadores do discurso político da época, a reforma
agrária, aparece num dos cordéis que compõem a trilha sonora da fita: “A terra
é do homem, não é de Deus nem do Diabo”.
O cenário do
filme é o nordeste do Brasil, caracterizado, em extremo, pela miséria do seu
povo. Nesse ambiente de dor, convivem simultaneamente as figuras do beato e do
cangaceiro, ambos no papel de porta-vozes dos pobres e injustiçados. De posse
do rosário ou do bacamarte, têm eles as melhores armas contra as velhas
estruturas de poder, que, de há muito, submetem a população nordestina ao jugo
pesado da fome e da opressão. Não por acaso, tais manifestações de rebeldia
acabam sempre reprimidas pelas forças mantenedoras da política do atraso,
representadas, na trama, pela figura soturna de Antônio das Mortes, o frio
matador de beatos e cangaceiros.
É ao místico
ou ao cangaceiro que costumam recorrer os pobres nos momentos de maior
dramaticidade, sempre encontrando neles o alento de que necessitam para
continuarem subsistindo. O sonho de uma vida melhor, alimentado pelo vaqueiro
Manuel, encontra eco no verbo cortante do beato Sebastião, que, rodeado de
piedosos devotos, revive o caminho e a profecia de Antônio Conselheiro: “Do
outro lado de lá deste Monte Santo existe uma terra onde tudo é verde. Os
cavalo comendo as flor e os meninos bebendo leite nas águas do rio. Os homem
come o pão feito de pedra, e poeira da terra vira farinha. Tem água e comida. O
sertão vai virar mar e o mar virar sertão!”.
Tida como uma
das dez obras mais importantes da história da cinematografia, “Deus e o diabo
na terra do sol” é, talvez, a maior expressão do chamado Cinema Novo, que teve
em Glauber Rocha seu representante mais significativo. Graças a seu rápido e
estrondoso sucesso, a película logo transporia as fronteiras nacionais,
tornando-se um fenômeno de alcance mundial. Sua participação nos festivais mais
relevantes da época denunciou ante o mundo o drama alarmante da fome e chamou a
atenção dos detentores do poder para o pouco caso com que, secularmente, foram
tratados os segmentos mais pobres do povo, em especial nos países ditos
periféricos, com destaque para o continente latino-americano, um dos alvos da
política neocolonialista.
O motivo para
tamanho sucesso estaria, como pontuou o próprio Glauber, na “trágica
originalidade do Cinema Novo”, expressa em “seu alto nível de compromisso com a
verdade”. Compromisso este que ele, Glauber, destacará, tempos depois (1965),
quando da redação do célebre manifesto “Estética da Fome”, conhecido como a
carta magna do Cinema Novo: “Onde houver um cineasta disposto a filmar a
verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí
haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o
comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do
Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer
procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas
importantes do seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo”.
O monstro do
colonialismo, combatido à exaustão pelo cineasta, continua tão vivo quanto
antes, aterrorizando povos e nações em todas as partes do planeta. Quando, por
exemplo, os Estados Unidos, valendo-se de seu poderosíssimo aparato de
inteligência, resolvem invadir a privacidade de cidadãos e instituições de
outros países ao redor do mundo, desrespeitando, inclusive, o princípio da soberania inerente às nações, como
ocorreu recentemente no Brasil, é a velha e nefanda política colonialista
mostrando suas garras maléficas. Fica patente, como observou o próprio Glauber,
que “o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais
aprimorada do colonizador”.
Enquanto a
fome e a dominação não forem completamente extintas do nosso meio, “Deus e o
diabo na terra do sol” e o Cinema Novo haverão de continuar vivos, como um
grito de denúncia a ecoar nos quatro cantos do mundo.
José Gonçalves
do Nascimento
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
Fonte: facebook
Postado por Adryanna Karlla Paiva Pereira Freitas
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