Por Antônio Corrêa Sobrinho
AMIGOS,
54 ANOS, neste
maio de 2020, da publicação, pelo jornal de Brasília, o CORREIO BRASILIENSE, da
histórica entrevista do Coronel FRANCISCO FERREIRA DE MELO, concedida ao
jornalista Antônio Sapucaia. Francisco Ferreira de Melo que, como sabemos, foi
um dos comandantes das forças militares alagoanas que cercaram e mataram
Lampião, em 1938, e se não escreveu livro para dizer deste impressionante e
inesquecível acontecimento, como o fez o seu comandante, o Coronel João Bezerra,
neste seu depoimento aos Jornais Associados, Francisco Ferreira de Melo
apresenta suas impressões e diz sobre a sua participação em Angicos.
Registro que o
amigo José Vanderli Silva é o maior responsável por esta postagem, a quem aqui
agradeço, visto que foi ele que me consultou sobre esta entrevista, que me
levou a buscá-la nos periódicos. E como sempre faço com o que leio e acho
interessante, sobre cangaço, trago para os grupos, devidamente digitalizado,
para conhecimento e deleite da gente.
LAMPIÃO EM
VERSÃO DEFINITIVA
PUNHAL CRAVADO
NO PEITO LEVOU COITEIRO A DENUNCIAR LAMPIÃO
Texto de
Antônio Sapucaia
Novas
controvérsias sobre a figura lendária e quixotesca de Virgulino Ferreira da
Silva – Lampião – levaram dois repórteres associados a percorrer o interior de
Alagoas na busca do homem que comandou o ataque decisivo na destruição do bando
que durante mais de 20 anos levou a intranquilidade e o pânico a toda região
nordestina. Antonio Sapucaia e José Ronaldo localizaram o tenente-coronel da
Polícia Militar de Alagoas Francisco Ferreira de Melo, numa fazenda do município
litorâneo de Coruripe.
Imagem de Francisco Ferreira de Melo Foto de José Ronaldo
Pela primeira
vez, desde o fatídico 28 de julho de 1938, o coronel Ferreira fala com
franqueza e conta tudo sobre o morticínio do bando terrível que matou e saqueou
sem piedade em sete Estados da Federação.
Esta, e a
história inédita que o coronel Ferreira reteve por 18 anos.
Durante mais
de dois decênios, os sertões nordestinos viveram sobressaltados pelas
truculências de Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião, ao lado de
outros cangaceiros que lhe obedeciam severamente às ordens recebidas.
Decorridos
quase 30 anos do desaparecimento do mais perverso bandido que o Brasil
conheceu, vemo-lo transformado em motivo inspirador da nossa música popular,
romances, filmes, painéis, enquanto seus familiares vêm travando uma longa
batalha: levar ao cemitério a cabeça dele e de Maria Bonita, que se acham
insepultas no Museu Estácio de Lima, na Bahia. Ao lado de tudo isto, vem de
surgir um fato curioso, envolvendo a “ressurreição” do “Rei do Cangaço” um velhinho
paraibano radicado em Fortaleza, que conviveu, conheceu muito bem e até
combateu Lampião nas caatingas”, divulgou recentemente que o desalmado
cangaceiro não havia morrido e que a existência de maria bonita não passava de
um mito, porquanto a mesma nunca existira a não ser na imaginação de trovadores
e romancistas de feira. Disse ainda que Lampião “está mais vivo do que nunca,
negociando gado em Campina Grande e vivendo como um nababo”. Chega a desafiar a
qualquer “doutor” a provar o contrário.
Tais afirmações,
bem como alguns pontos obscuros e controversos, que existem em torno do
“Capitão” Lampião, levaram-nos a uma figura das mais autorizadas sobre o
assunto, de vez que assistiu de perto o seu extermínio, lutando e comandando.
Trata-se do tenente-coronel reformado, Francisco Ferreira de Melo, aspirante de
então que comandara uma das volantes e que, em atenção ao tenente João Bezerra,
seu compadre e amigo, e já na pista de Lampião, chegara a orientar o movimento
das tropas que cercariam o cangaceiro e seus asseclas. Além disto, foi a sua
tripa que primeiro se defrontou com os bandidos, abrindo fogo e os destruindo,
na maioria.
A PALAVRA DO
CORONEL
Fomos
localizá-lo no Poxim, povoado pertencente ao município de Coruripe, estado de
Alagoas, onde vive inteiramente voltado para o coqueiral que se estende ao
longo dos fundos da sua residência, uma espécie de casa-grande. Durante
aproximadamente 13 anos, em pleno vigor da sua mocidade, perseguiu Lampião,
tornando-se um dos militares de grande confiança, o que é confirmado pelo fato
de ter sido escolhido para comandar uma das volantes, as quais eram subordinas
ao comando geral sob a responsabilidade do então coronel Lucena, um homem de
fibra, bastante enérgico e vocacionado para a missão.
Homem de 61
anos, em cuja voz e traços fisionômicos percebem-se as pinceladas da velhice, o
coronel Ferreira não se faz de rogado. Começa dizendo que retroceder a esse
período da nossa história é nos deparar com uma série de atrocidades, lutas,
fome, miséria, toda espécie de sofrimento. Fala com entusiasmo, gesticula e
procura ser o mais fiel possível.
- “Para muita
gente, que se mantinha distante dos acontecimentos, Lampião agia exclusivamente
ao lado dos seus cabras, constituindo, todos, apenas um grupo. É puro engano
dos que assim pensam. Do mesmo modo que a Polícia tinha as suas volantes,
agindo em pontos diferentes, Lampião comandava também vários grupos, que se
dispersavam pelas caatingas nordestinas, cometendo as piores misérias. Eu mesmo
– prossegue o Coronel – cheguei a travar alguns combates com vários desses
malfeitores, sem nunca ter me defrontado com o grupo em que se encontrava o
perverso bandido. Com ele, travei apenas um combate – o primeiro e único – que
foi o de Angicos, e que culminou com a sua morte. O certo é que todos eram de
uma perversidade extrema e, por onde quer que passassem, deixavam o rastro da
sua periculosidade. Só mesmo com disposição, sangue frio e muito espírito de
luta é que se poderia enfrentar e dar fim aqueles infelizes malfeitores.
HOMENS SELECIONADOS
- “Os nossos
homens eram todos selecionados, escolhidos a dedo, e aquele que demonstrava
sinal de fraqueza, não poderia figurar ao nosso lado. Muitos deles, bravos e
destemidos, ainda estão por aí, relembrando os dias negros que vivemos, para
vermos terminado um verdadeiro período de calamidade, que colocava em pânico
todo o Nordeste. Afastados dos nossos lares – continua o Coronel – passamos
muitas noites de olhos abertos, em meio à caatinga brava, e era comum passarmos
muitos dias de estômago vazio. Se por vezes tínhamos as criações, bodes,
carneiros, etc., às vezes nada tínhamos, a não ser a fome que nos deixava
assustados. Incrível que pareça, eu mesmo, certa vez, cheguei a comer
pedrinhas, cuidadosamente catadas, tamanha era a fome que de mim se apoderava.
Em 1938, o
aspirante Ferreira de Melo tinha o comando da sua tropa sediada em Pedra de
Delmiro, a do tenente Bezerra em Piranhas e a do cabo Aniceto, em Mata Grande,
enquanto o comando-geral situava-se em Santana do Ipanema.
No dia 27 de
julho de 1938, uma quarta-feira, as tropas do aspirante Ferreira e do tenente
Bezerra encontravam-se em Pedra de Delmiro, juntas, ocasião em que os seus
comandantes traçavam planos para uma batida que julgavam de importância vital
para o extermínio ou captura do adversário. Enquanto o tenente Bezerra deixara
Piranhas para encontrar-se com o aspirantes Ferreira, na Vila de Pedra, o cabo
Aniceto, deixava Mata Grande, sob a alegação de que teria faltado mantimentos
que garantissem a permanência do seu pessoal ali, e demandara Piranhas, onde
morava sua noiva, por sinal, filha do prefeito daquele Município.
Foi justamente
nessa ocasião que, inesperadamente, segundo narra o coronel Ferreira, chegara a
Piranhas um caboclo, meio assustado e tímido à procura do tenente Bezerra, manifestando
o desejo de com ele se avistar. Interrogado sobre o que desejava, relutou em
responder, posto que o sertanejo comumente é desconfiado. Depois de muita
insistência, resolveu confessar então que, horas atrás, vira um grupo de
cangaceiros em Entremontes, distante dali umas duas léguas. Detalhadamente,
dissera que, no momento em que tangia alguns bodes, observou que alguns
bandidos se encontravam em um roçado, quebrando milho e roubando melancias.
Reconheceu que pertenciam ao grupo de Lampião. Diante do que vira, estava
desejando falar com o tenente Bezerra, a fim de que o oficial rumasse para
aquele povoado. Inteirado do fato, sem perder tempo o cabo Aniceto não teve
outro caminho, senão telegrafar ao Tenente Bezerra: “Venha urgente boi curral”.
Tão logo a
mensagem chegou ao poder do seu destinatário, este acusara o recebimento do
telegrama, ao mesmo tempo em que solicitava do seu subordinado que
providenciasse uma condução, e os viesse apanhar, pois em Pedra não havia
nenhuma condução motorizada naquele momento. Apesar disto, as duas tropas, de
Bezerra e Ferreira, partiram com destino a Piranhas, a pé, porque não se
poderia perder tempo. Afinal de contas, a condução poderia vir ou não! Depois
de enfrentarem, durante algumas horas, as terras comburidas e o solo
causticante, encontraram um caminhão, procedente de Mata Grande, conduzindo
alguns feirantes e suas mercadorias. O Tenente Bezerra determinou, assim, que
fosse descarregado o caminhão, fizesse a volta e os conduzisse até Piranhas, o
que foi feito incontinenti, enquanto os passageiros ficaram aguardando o
retorno da condução.
NO ENCALÇO DE
LAMPIÃO
Em Piranhas,
trataram de providenciar uma canoa, a fim de que, através do rio São Francisco,
eles pudessem alcançar a localidade onde se encontravam os bandidos. Depois de
grande esforço, resolveram ajoujar três canoas – diz o coronel –, única solução
viável naquele momento, uma vez que, eram aproximadamente 45 homens e se
tornava necessária a presença de todos. O percurso dessa arriscada viagem foi
feito à noite, sob forte aguaceiro, tendo os policiais chegado em Entremontes,
cerca das 22 horas.
- “Quando
alcançamos aquele povoado, ficamos à margem do rio, tendo o tenente Bezerra,
comandante das tropas, determinado que o cabo Bida fosse à casa de Pedro de Cândida,
bem próximo dali, e o trouxesse preso. Pedro de Cândida – esclarece o coronel –
era um dos inúmeros coiteiros de Lampião, vivendo exclusivamente às expensas
deste e sempre afirmava que botaria a policial em cima de todos os grupos,
menos no de Virgulino Ferreira. Retornando sem haver cumprido a missão, o cabo
Bida informou que Pedro de Cândida havia dito que por obséquio, o tenente fosse
falar com ele em sua própria casa. O pior de tudo, é que não trouxe o homem.
Ficamos tomados de grande revolta e o único pensamento que me veio à cabeça era
de que o Pedro havia fugido e ninguém mais o encontraria. Mas, graças a Deus e
à sua ousadia, que era demais, o homem não se arredara de casa e dois soldados
foram buscá-lo, dessa vez com fortes recomendações. E o trouxeram, sem muito
esforço. Diante do tenente Bezerra – continua o coronel – a despeito dos
apertos que levou, o coiteiro-mor nada confessou, afirmando sempre não saber
onde esse encontrava Lampião. Persistindo no intento de arrancar a confissão
verdadeira, fosse de que maneira fosse, uma vez que ninguém tinha mais dúvida
de que ele poderia tudo esclarecer, o comandante das nossas tropas resolveu
encaminhá-lo para mim, no sentido de que eu desse um “jeitinho” para desvendar
o mistério em torno do paradeiro dos bandidos.
PEDRO DE
CÂNDIDA CONFESSA
- “Chamei-o
para um lugarzinho afastado, já tomado de forte cólera, e conclui que a única
solução do assunto dependia de uma medida rigorosa que, de fato, pudesse
assustar ao maldito coiteiro. Saquei de um punhal que conduzia e encostei ao
peito esquerdo dele, e disse com voz firme: “você tem dois caminhos a seguir:
ou confessa ou morre. Por duas vezes, encostei-lhe o punhal, furando-o sem
grande profundidade. Na terceira vez, quando ele percebeu que eu estava realmente
disposto a mandá-lo para o outro mundo, resolveu falar, insistindo para que eu
não o matasse.
- “Eu vou
contar tudo – disse Pedro de Cândida ao aspirante – mas vai morrer muita
gente...”
- Cientifiquei
o ocorrido ao compadre Bezerra e mandei que ele próprio ouvisse a confissão.
Sem muita demora, foi logo dizendo que os cangaceiros de fato estiveram em
Entremontes, porém já haviam atravessado o rio, estando em Sergipe, e que um
seu irmão, que residia a margem do rio, no outro lado, sabia esclarecer detalhadamente
sobre o paradeiro dos bandidos, principalmente porque, no dia anterior, havia
levado um bode assado para o “capitão” Lampião e sua gente. Não é necessário
dizer que custamos a acreditar naquela conversa. Mesmo assim, atravessamos o
São Francisco, conduzindo entre nós Pedro da Cândida, ocasião em que nos
dissera que, se porventura não fosse verdadeiro o que ele acaba de confessar,
pudéssemos matá-lo. A partir daquele momento, criamos alma nova e ficamos na
certeza de que estávamos nos calcanhares de Lampião. A chuva não cessava e era
cada vez maior a nossa esperança de vermos terminada aquela jornada, que havia
começado há vários anos, sem ninguém saber quando terminaria!
CORONEL
CONFESSA: DEGOLA DOS BANDIDOS FOI LIDERADA POR MIM
Após a
confissão de Pedro de Cândida, os “macacos” perceberam que estavam no começo do
fim. Ouçamos o coronel Ferreira:
- “ Quando
atravessamos o São Francisco, encostamos as canoas em um lajedo e rumamos para
a casa do irmão de Pedro de Cândida, cujo nome não consegui gravar. Deixamos o
coiteiro em poder de alguns soldados, e procuramos falar com seu irmão, sem
dizermos que Pedro se encontrava conosco. Insistimos bastante e ele nada queria
nos confessar, sempre negando, até que a nossa paciência se esgotou. Daí,
procuramos fazer a acareação dele com o irmão, tendo este, tão logo se
avistaram, pedido que confessasse tudo, pois já havia descoberto o que sabia e
estava tudo perdido. Seria inútil qualquer tentativa em sentido contrário. Nada
mais restava fazer. E o rapazote despejou tudo com facilidade, inclusive
confirmou que no dia anterior havia levado um bode assado para Lampião. E
acrescentou que ele havia dito que, se não partissem naquela tarde, partiriam
no dia seguinte, cedinho.
O Coronel
Ferreira respira fundo, esfrega as mãos e diz que a partir daquele instante
estava iniciada uma verdadeira via crucis. Estávamos cansados, molhados como
patos n’água, mas tínhamos uma missão a cumprir – confessou-nos calmamente.
- “As tropas
foram divididas. Cada grupo seguiu o seu rumo e coube à minha volante conduzir
Pedro de Cândida, que nos mostraria o local onde se achava o assassino. Andamos
de quatro pés, de joelhos, rastejamos, e quanto mais nos aproximávamos, em meio
à escuridão, falávamos aos cochichos, evitando, assim, que algum barulho viesse
a denunciar a nossa presença. Vivemos momentos de intensa apreensão. Ficou
convencionado que o tenente Bezerra, tão logo se aproximasse do esconderijo,
daria o primeiro tiro, no que seria seguido por todos nós. O correu, no
entanto, que a minha tropa tanto se aproximou dos miseráveis, ao ponto de
vermos, a poucos metros da nossa frente, um cangaceiro de cócoras, apanhando
água, com uma cabaça, ou cantil. Mais tarde, viemos a saber que se tratava de
Zé Sereno. Ouvimos o chocalho dos animais, fortes gargalhadas, e naquele
momento, entre o clarear do dia e a penumbra da noite, o soldado Abdon, viu-se
tão perto de um cangaceiro, conhecido por “Quinta Feira” que, sem a menor
demora, deu-lhe um tiro. Estava iniciado o tiroteio. Um minuto de indecisão, e
naturalmente teríamos levado chumbo. Iniciada a batalha, confesso que nunca vi
quadro tão horroroso, principalmente pelos gritos horripilantes que os
cangaceiros davam. Eram gritos horríveis, que assustariam a qualquer cristão,
mesmo preparado para o difícil momento. O tiroteio durou uns 20 minutos,
aproximadamente, em meio a uma fumaceira terrível, onde se misturavam a neblina
da manhã com a fumaça vomitada pelas armas, enquanto espirrava cangaceiro por
todos os lados. Quando já havíamos derrubado seus bandidos, já a tropa do
tenente Bezerra se aproximava, dando prosseguimento ao tiroteio, derrubando os
que iam aparecendo.
LAMPIÃO E
MARIA BONITA BALEADOS
- “Cessado o
fogo, fomos dar balanço das vítimas. Dos nossos companheiros, o soldado Adrião
fora baleado mortalmente. Lampião recebera apenas uma bala, atingindo-o no lado
esquerdo da região umbilical. Ainda agonizava, quando um dos nossos soldados
aproximou-se dele, e, apontando o fuzil em direção da sua cabeça, ia puxando o
gatilho, no que foi obstado por um outro soldado, Sebastião Vieira Sandes,
conhecido por Santos, meu compadre e um dos mais corajosos milicianos que
conheci. Mesmo assim, a bala que se destinaria diretamente à sua testa, ainda o
atingiu, embora de raspão. Ao seu lado, Maria Bonita, com o fato todo de fora,
pronunciava palavras incompreensíveis, arrancadas com esforço de moribundo.
Luís Pedro, lugar-tenente de Lampião, ainda correu, tendo sido baleado a umas
10 ou 15 braças do local, acompanhado de um seu afilhado, o bandido “Vilanova”.
Atingido por balas mortais, insistia com Vilanova para que este o acabasse de
matar e que, como lembrança, ficasse com o seu mosquetão. Não resistiu, e o
afilhado ficou com o mosquetão e o chapéu de como lembrança. No local – conclui
o Coronel Ferreira – além de dois animais que eles conduziam, encontramos duas
máquinas de costuras, manuais, comida de várias espécies, principalmente carne
de conserva, jornais, medalhas, anéis de todo tipo, além de um verdadeiro
arsenal.
DEGOLA:
INICIATIVA DO CORONEL
Como se sabe,
as vítimas da chacina de Angicos, excluindo o soldado Adrião, perfizeram um
total de onze: Lampião, Luís Pedro, Quinta Feira, Mergulhão, Elétrico, Caixa de
Fósforo, Cajarana, Diferente, Maria Bonita e Enedina, além de outro cujo nome
não conseguimos reter. Cessada a batalha, jaziam alguns cangaceiros, enquanto
outros ainda agonizavam.
Tomado de
ingente revolta, o aspirante Ferreira chegou a sangrar um dos bandidos, que,
num gesto de represália involuntária, jogou-lhe algumas golfadas de sangue, em
meio aos horríveis gritos que antecedem aos instantes finais da vida.
- “Qualquer
homem de bem, por mais pacato que seja – justifica o coronel – faria o que eu
fiz. Bastaria que conhecesse de perto, colocando diante dos olhos os quadros de
misérias que as terras sertanejas estavam cansadas de nos expor tendo com
responsáveis aqueles perversos e miseráveis bandidos. Certa vez, não pude me
controlar e cheguei a chorar, quando cheguei a uma casa e vi toda família,
inclusive alguns menores, todos amarrados e queimados, vítimas de Lampião e
seus comandados. Em plena caatinga, era hábito encontrarmos esqueletos
dependurados em árvores, iniciativa do terrível Virgulino Ferreira. Seria
ocioso mencionar as suas perversidades, por demais conhecidas, embora não na
sua totalidade.
MARIA ERA
MESMO BONITA E O “REI DO CANGAÇO” NÃO MORREU DORMINDO
Dizíamos, no
meio desta série de reportagem, que existiam muitos pontos obscuros e
controversos sobre Lampião, sua gente, suas façanhas. Um deles, por exemplo,
prende-se ao coiteiro-mor Pedro da Cândida, o homem que conduziu o Tenente
Bezerra e os seus comandados até ao esconderijo em que se achava o perverso
cangaceiro, de conluio com algumas dezenas de divorciados da lei.
Numa série de
entrevistas concedias aos Associados, o ex-cangaceiro “Volta Seca”, atualmente
Antônio dos Santos, pai de sete filhos, funcionário da Leopoldina, no Rio,
dissera entre outras coisas que, após a degola dos cangaceiros, as tropas da
polícia alagoana deram cabo de Pedro da Cândida.
- “Nada mais
inverídico e falso – refuta o Coronel. Na realidade, quando o conduzíamos em
demanda de Angicos, levando-o com certa cautela, eu havia autorizado a dois
soldados que, tão logo fosse iniciado o tiroteio, acabasse com a vida dele.
Entretanto, apesar de não ser lá nenhum bom coração, resolvi pensar de modo
diferente, atendendo aos seus clamorosos apelos, sobretudo com referência à
família, que ia ficar desamparada. Assim sendo, através de gestos, eu transmiti
aos soldados que nada fizessem, deixassem-no ir embora. E assim foi feito. Não
posso esclarecer como ele escapuliu e foi bater em casa, mas uma coisa posso
afirmar: um mês depois da chacina, Pedro de Cândida ainda tirava espinhos do
corpo, um tanto inchado, em consequência da carreira que dera, enfrentando os
mandacarus, xique-xiques e todos os tipos de plantas bravas.
Para desfazer
totalmente as informações de Volta Seca, o coronel diz que os governos de Bahia
e Alagoas (o interventor de Alagoas era o Dr. Osman Loureiro), juntos,
ofertaram cem mil cruzeiros, a serem distribuídos com os participantes da luta,
tendo ele e o Tenente Bezerra recebido maiores parcelas, enquanto o restante
recebeu quantias iguais, inclusive o próprio Pedro de Cândida. Diz, ainda, que
o referido coiteiro ingressara na polícia alagoana, na qualidade de cabo, tendo
ido destacar em Entremontes, local em que residia.
ASSASSINADO
ANOS DEPOIS
E o coronel
revela:
- “Destacando
em Entremontes, Pedro de Cândida, que era muito mulherengo, habitualmente
deixava aquele distrito, conduzido em uma canoa por ele mesmo remada, em
demanda de Piranhas. Naquela cidade, Pedro tinha as suas aventurazinhas
amorosas. Nessa época, começou a aparecer um boato de que existia “bicho”
naquelas redondezas, chegando a ser “visto” por muitas pessoas. Certa noite,
quando um rapazinho de 15 a 16 anos transitava nas imediações do rio São
Francisco, e tendo que passar por um caminho que se localizava bem a sua
margem, inesperadamente deparou-se com um vulto, braços abertos, dando a ideia
de que iria abraçá-lo. Já ciente do boato que circulava em Piranhas, ficou na
certeza de que estava fielmente diante do lobisomem. Deste modo, talvez impulsionado
pelo próprio medo, puxou do bolso uma “faquinha de cabo preto”, que conduzia, e
a cravou no peito esquerdo do suposto fantasma, saindo a gritar dizendo que
havia morto o “bicho”. Com grande surpresa para os habitantes dali,
verificaram, depois, que se tratava de Pedro de Cândida, trajando um capote
escuro, na época distribuído pela polícia de Alagoas.
LAMPIAO NÃO
MORREU DORMINDO
Outra
inverdade divulgada pelo ex-integrante do grupo de Lampião, refere-se à morte
do seu ex-chefe, quando afirma que o “rei do cangaço” morreu dormindo, sem
tempo para acordar. E acrescenta que “foi encontrado no chão, mas já caiu da
rede morto e ensanguentado, com o corpo crivado de balas”.
- “Lampião,
diz o coronel Ferreira, sem dúvida alguma foi tomado de surpresa e longe estava
ele de acreditar que àquelas horas, naquele seu infeliz amanhecer de 28 de
julho de 1938, nossas tropas estivessem, ali, ao seu redor. A bem da verdade,
torna-se necessário esclarecer que o fato de termos o agarrado inesperadamente,
ajudou-nos bastante, visto que, bastaria uma simples falha nossa, ou até mesmo
uma simples indecisão ao abrir fogo, e talvez poucos soldados das nossas
volantes viessem a descrever aqueles instante de ferocidade e agonia. Apesar de
o termos cercado de surpresa, afirmo categoricamente que Lampião não morreu
dormindo, nem foi crivado por várias balas. Todos os cangaceiros já se
encontravam de pé, naturalmente se aprontando para a partida, pois o dia já
estava amanhecendo e Lampião, conforme é sabido por todos, não era homem de
dormir até tarde, principalmente com os seus subordinados acordados. Isto não
passa de conversa mole, que não tem nenhuma razão de ser. Lampião já estava de
pé e recebeu apenas uma bala, conforme eu já disse, empunhada pelo cabo
Honorato, conhecido por Honoratinho. Todavia, ninguém poderia precisar, em meio
ao fumaceiro, às apreensões e a balbúrdia do momento, que esse ou aquele
policial tivesse atingido ao nosso terrível adversário. O verdadeiro, no duro,
é que foi a minha tropa que exterminou Lampião. Esta é que é a verdade – diz
energicamente o Coronel Ferreira.
ANTÔNIO
FERREIRA É UM PSICOPATA
A entrevista
está no fim. “Seu Antônio Ferreira, declarou que Lampião não havia morrido e
que Maria nunca existiu, de vez que ele participava também do bando e nunca viu
mulher ou mulheres entre eles. Lemos para o Coronel as ousadas declarações do
velhinho paraibano, ouvidas sobre forte gargalhada.
- “Só mesmo um
psicopata, poderia fazer tão imbecil afirmativa, sem pé nem cabeça, decerto
procurando um início de levar o nome às páginas dos jornais. Se Lampião não
morreu, como é que os membros da sua família vêm lutando para sepultar a cabeça
dele e de Maria Bonita? Se Lampião não morreu, como é que os próprios sequazes
seus, que lado a lado viviam com ele, constantemente se referem ao seu
desparecimento, muito embora nem sempre historiando a verdade dos fatos?
Existira prova mais fiel do que a existência da sua cabeça, já mumificada, no
museu Estácio de Lima, na Bahia?
- “Não consigo
entender como é que uma pessoa afirma que não existiam mulheres no bando de
Lampião. Eu mesmo fiquei com algumas fotografias, pertencentes ao desgraçado
cangaceiro, retiradas de uma lata que se achava em seu poder, onde se constata
a existência das mulheres.
Folheia um
álbum, que nos deu para examinar, no qual, dentre várias fotos, encontra-se uma
do bandido “Pancada”, ao lado a sua companheira, cujo nome desconhece. Mais
adiante, lá estão Lampião e Maria Bonita, esta sentada, entre dois cachorros, e
aquele de pé, ao lado, em um jornal. Da fotografia, vê-se que Maria Bonita era
bonita mesmo e dona de umas lindas pernas.
HOMEM DE
CONSCIÊNCIA TRANQUILA
Aos 61 anos de
idade, o tenente coronel Ferreira de Melo é um homem que diz viver de
consciência tranquila, não obstante algumas malvadezas que teve de praticar,
forçado pelos ossos do ofício, nem sempre ossos bons de roer. Respeitado e
admirado, vive sob a glória de haver concorrido bravamente para o extermínio do
maior bandido que o Brasil conheceu e reconhece que o triunfo coube a todos que
participaram da chacina e outros que direta ou indiretamente, deram a sua
parcela de sacrifício, em defesa da tranquilidade da nação. Cita os nomes do
coronel Lucena Maranhão, do Tenente Bezerra, do ex-cabo Aniceto, que morreu
baleado em Santana do Mundaú, no de 1959, e não esquece, entre vários outros, o
Dr. Osman Loureiro que, na qualidade de Interventor, muito fez para a extinção
daquela praga social.
Ainda hoje, na
tranquilidade em que vive, fala de Lampião com ares de revolta e ódio.
Correio
Brasiliense (DF) – 12, 13 e 14 de maio de 1966
http://blogdomendesemendes.blogspot.com