Por Leandro Cardoso Fernandes
A palavra
Cangaço – à parte de também nomear o bagaço das vinícolas – vem representar a
vida nômade dos bandoleiros nordestinos, que, por alusão à canga do boi,
carregavam em torno de si os apetrechos necessários à sua sobrevivência. Ao
observador incauto, parece designar apenas salteadores sanguinários, criminosos
que não mereceriam mais que a inclusão no rol de bandidos comuns. Mas, ao
melhorarmos o foco, percebemos que a análise correta deste fenômeno ultrapassa
o simples confronto entre mocinhos e bandidos.
O Cangaço
começou a aparecer nos documentos oficiais em meados do século XIX, a partir de
registros sobre o célebre José Gomes, o Cabeleira, que vivera no século
anterior. Mas não começou aí. Seus rastros vêm da aurora da nossa colonização, e
para segui-los é preciso evitar os vieses frequentes dos nossos registros
históricos, quase sempre favoráveis ao colonizador em detrimento de quem
resistisse ao afã dominador. Daí a profusão de qualificações depreciativas para
os insurretos, geralmente descritos como bandidos, facínoras e revoltosos, na
clara intenção de criminalizá-los. Um sofisma largamente difundido é a
colocação do Cangaço como “revolta” pontual de limites definidos no interior
nordestino. No entanto, devemos levar em conta aspectos peculiares de cada
região, com seus catalisadores históricos, que apontam para uma escala
cromática de cangaços, Brasil afora.
Precisamos
recontar nossa História e ouvir aqueles que sucumbiram no violento choque da
nossa formação. São os esquecidos da História. Deixemos, então, que eles no
apontem onde está a forja do cangaceiro.
Capitania de
São José do Piauí, sertão de dentro, por volta do ano 1700. O colonizador
europeu avança palmo a palmo no território antes ocupado pelos nativos,
enxotando-os para o norte e para o Maranhão. A cada légua avançada, ficam atrás
novos currais e arremedos de vilarejos.
Francisco Dias
D’Ávila e seus agregados põe abaixo a aldeia dos índios Aranis, próximo à
freguesia de São Antônio do Surubim, onde hoje está a cidade de Campo Maior,
Piauí. Deste cruel massacre, escapam dois curumins: uma menina de 13 anos e seu
irmão de 12 anos, a quem foi dado o nome cristão de Manuel, e o apelido de
Mandu. O menino foi enviado a um aldeamento jesuíta, o Boqueirão dos Cariris,
situado a 60 léguas do Recife. Alguns anos depois, o índio Mandu, retorna ao
Piauí, na tentativa de reencontrar sua irmã. Ao sabê-la morta pelas mãos do
português, decide pegar nas armas e formar um bando com remanescentes de várias
tribos, algumas inclusive inimigas entre si. Passa a ser chamado de Mandu
Ladino, graças à eficiência em ludibriar os portugueses e índios “preados”
postos no seu encalço. Contra Mandu e seus índios “corsários”, como eram
conhecidos, vieram de São Luiz, forças volantes de El-Rei, que terminam por
matar o chefe índio depois de quase 10 anos de guerrilhas.
Nesta síntese biográfica de Mandu Ladino, um dos esquecidos da nossa História,
está a infância do cangaceiro. O clavinote genocida do colonizador e o peso de
suas botas a esmagar qualquer resistência à expansão de seus domínios. Além do
índio, vergaram sob a dominação o negro, o sertanejo, todos eles empurrados
para a sombra do vulcão adormecido da revolta e do inconformismo latente, que o
Prof. Frederico Pernambucano de Mello brilhantemente chamou de “irredentismo”.
Muitas das manifestações de violência popular, ao longo da História trazem na
verdade esse eco antigo dos nossos índios sublevados, nossos negros e caboclos
sem cabresto. De quando em vez, esse vulcão dos rancores explodia em revoltas
como a de Mandu Ladino; como o Quilombo dos Palmares; as lutas pela
Independência do Brasil; a mal-contada Balaidada, e, finalmente, o cangaço, com
as suas variadas nuances.
O cangaceiro,
portanto, é produto dessa sociedade arcaica, onde mais sobressaía quem se
impusesse pelas armas e pela valentia. Segundo a análise de Frederico
Pernambucano de Mello, na sua obra Guerreiros do Sol, estas condições eram
“fundamentais para se dobrar as resistências do índio e do animal bravio como
condição para o assentamento das fazendas de criar”. Ou seja, durante quatro
séculos, fomentou-se a cultura da violência, onde o indivíduo é senhor do seu
destino e deveria traçá-lo a talhos de facão. O Código Penal sempre foi surra,
bala e punhal. Era muito mais fácil, para o sertanejo, a justiça direta guiada
pelo revide e pela autodefesa. A outra, a dos tribunais das capitais, não era
uma alternativa. Muitos foram empurrados para a garganta do Cangaço por terem
reagido violentamente, de modo moralmente aceitável em sua aldeia, mas
reprovável aos olhos da civilização litorânea. Houve ainda aqueles que
abraçaram a espingarda por não ter outra opção de subsistência. Gustavo Barroso
recolheu uma quadrinha, que traduz muito bem o modus vivendi no sertão de
outrora, e que diz o seguinte:
“Meu pai fez
diversas mortes/porém não era bandido/matava em defesa própria/quando se via
agredido/pois nunca guardou desfeita/e morreu por atrevido”.
No sertão, o
Cangaço encontrou não só o ambiente social para prosperar, mas também o
ambiente físico. Como disse Euclides da Cunha: “a Geografia prefigura a
História”; e a caatinga foi o mais forte aliado do cangaceiro contra a
repressão, pela quase intransponibilidade de seus espinheiros e arbustos, o que
minava o vigor dos perseguidores. E Lampião soube tirar proveito disso. De 1928
para trás, na primeira metade da sua vida de guerreiro, vivia nas caatingas
brabas do Pajeú pernambucano e da Floresta do Navio, que lhe serviam de
refúgio. Mas, quando necessitava de refrigério, corria à fronteira com o Ceará,
e regalava-se na paradisíaca Chapada do Araripe, no verdejante Vale do Cariri
Cearense. Já na fase pós 1928, na Bahia, vivia circundando o Raso da Catarina,
a maior extensão de caatinga do Brasil, dela usufruindo quando precisava impor as
agruras do terreno às Forças Volantes. Mas quando necessitava de refrigério,
recorria à beleza do Vale do Rio São Francisco, onde a região limítrofe entre
Bahia-Sergipe-Alagoas, com seus potentados e coiteiros, lhe fornecia ampla e
organizada rede de apoio.
Lampião, por
mérito particular, aperfeiçoou e modernizou o cangaço! Ao contrário do que
muita gente pensa, era um sujeito calmo, circunspecto, educado, avesso a
farras, profícuo em fazer amizades, inclusive com autoridades. Fazia-se, às
vezes de coronel itinerante, manifestando explicitamente o gosto por
sofisticações, como fotografias, whisky, filmes, ao tempo em que,
paradoxalmente, repudiava, por instinto de sobrevivência, o progresso das
rodagens e dos trilhos que começavam furar os carrascais.
À parte do
cuidado com a segurança individual e coletiva, os cangaceiros preocupavam-se em
larga medida com o apuro da indumentária, usando-a inteligentemente a seu
favor. O traje não tinha por objetivo a camuflagem na caatinga. Bem longe
disso: passava pela imposição da personagem perante os interlocutores. O
fardamento exuberante era motivo de orgulho para o portador, que além das cores
vibrantes das jabiracas e bornais, exagerava em perfumes sobre o corpo suado.
Contrastando
com esse apuro estético, estava sua atuação sempre pelo recuo, pela imposição
do terror, em guerrilha onipresente pela divisão do grupo em subgrupos. As
Forças Volantes, até pela gravitação em torno dos cangaceiros, e necessidade de
adaptação, foram progressivamente trocando o uniforme cáqui da Força Pública
pelos chapéus de meia-lua, enfeites e longos punhais. Exerciam seu poderio
militar às custas da arbitrariedade e da imposição do medo, de maneira
semelhante à atuação dos cangaceiros. Muitas vezes, a única coisa que os
diferenciava era o lado que ocupavam na contenda.
O Cangaço latu sensu, deixou representantes em diversas regiões fora daquela
associada a atuação de Lampião, como no caso de Lucas da Feira (Feira de
Santana, Bahia), o Raimundo “Cara Preta” (na lutas da Balaiada, Piauí e
Maranhão), Silvino Jaques (interior do Mato Grosso), Antonio Dó (sertão de
Minas Gerais), dentre outros.Aliás, falando em Antonio Dó...Aqui abro espaço
para os jagunços tão magnificamente perfilados por Guimarães Rosa, na obra
“Grande Sertão: Veredas”, como Medeiro Vaz, Hermógenes, Zé Bebélo, Joca Ramiro.
Todos eles legítimos capitães de cangaço. O termo jagunço lhes foi emprestado
por que assim eram eles conhecidos nos vastos campos gerais. Mas,
indiscutivelmente, eram capitães de cangaço. Jagunço por conceito é aquele que
vive exclusivamente pelas armas, mas a serviço de um potentado, ou seja: sem
bando independente, tendo como única ocupação o conflito armado. O cangaceiro
manso é aquele que se aparta de suas obrigações de vaqueiro ou de lavrador para
resolver uma contenda, retornando, posteriormente, às suas atividades
pacíficas. Já o cangaceiro volante é o tipo imortalizado por Antônio Silvino,
que, nômade, troca de nome e passa a viver debaixo do cangaço. Lampião foi
cangaceiro manso até os acontecimentos que culminaram com a morte de seus pais;
a partir daí, cangaceiro volante, e – diga-se de passagem – o mais bem
sucedido. A ele se aplica um verso do poeta condoreiro do Cariri cearense,
Barbosa de Freitas: “as águias nascem pequenas/mas quando lhes crescem as
penas/sabem bem alto voar”. E Lampião voou alto. Com ele, o Cangaço alcançou
seu apogeu, nos anos 20, mas também recebeu seu tiro de misericórdia, na
madrugada de 28 de julho de 1938, em Angico, Sergipe. Mas não morreu aí.
Estrebuchou até maio de 1940, com a morte de Corisco, o Diabo Loiro.
Um dos
responsáveis pelo mitificação de Lampião foi a Literatura de Cordel, herança da
Península Ibérica. De Portugal, as “Folhas Soltas”; da Espanha, “Los Pliegos
Sueltos”; e da França a “Literature de Colportage”, cuja influência foi espalhada
aqui pelos colonizadores. Os versos, feitos preferencialmente em sextilhas,
septilhas e décimas, eram muito agradáveis de ler, ouvir e cantar. As estrofes
caíam celeremente no gosto e na memória do povo, tornando-se uma espécie de
noticiário da oralidade do meio em que viviam. O jornal, que em Portugal ocupou
completamente o espaço do Folheto, aqui no Brasil não logrou tal êxito, por ser
quase inacessível ao sertanejo, fato que ainda hoje se observa. Geralmente, o
jornal retratava um cangaceiro criminalizado e um sertão com o rótulo do
atraso. Já o cordel exibia um cangaceiro heroico, guerreiro, astuto e
superpoderoso, cujo escudo ético servia aos sertanejos de maneira geral.
É da época dos primeiros folhetos impressos, ou seja, meados de 1870, que os
romances da literatura dita culta recebem as cores do sertão. Cito aqui duas
obras da vanguarda desse período. O primeiro, publicado em 1876, do cearense
Franklin Távora é “O Cabeleira”, romance histórico com sugestões regionalistas,
mas não dissociado do melodrama de folhetim. É o marco literário inicial do
Cangaço, sendo Távora um grande entusiasta das tradições e tipos legendários do
Nordeste.
A segunda é
pouco conhecida do público e da crítica, mas não menos importante. É o primeiro
dos nossos romances a ter a seca como palco dramático do enredo. Segundo a
professora Maria Gomes Figueiredo, do Departamento de Letras da Universidade
Federal do Piauí é “o primeiro romance de fundo essencialmente regionalista,
que focaliza de forma realista o drama da seca no sertão do Piauí”. Trata-se de
“Ataliba, O Vaqueiro” do piauiense Francisco Gil Castelo Branco, lançado em
1878 como folhetim no Diário de Notícias e posteriormente publicado pela
Tipografia Cosmopolita do Rio de Janeiro, em 1880. Este livro, tal qual João
Batista, que veio preparar os caminhos do Senhor, é o bom augúrio dos
excelentes trabalhos que estavam por vir. “Luzia-Homem”, de Domingos Olímpio,
publicado em 1903; “A Bagaceira” de José Américo de Almeida, publicado em 1928;
os clássicos “O Quinze”, de Raquel de Queiroz, de 1930 e “Vidas Secas” de
Graciliano Ramos, de 1938. Aliás, neste mesmo ano, Graciliano publicou um
artigo no Jornal de Alagoas, onde relata uma visita que fizera a Antonio
Silvino, na companhia de José Lins do Rego. Fica patente a surpresa de
Graciliano ao encontrar um Silvino diferente do que sempre imaginara: era
branco, olhos claros, bem apessoado, educado, inteligente... ou seja, bem
distante da imagem sugerida do Capitão-de-Cangaço sanguinário, fruto da
degeneração racial, lombrosiano, incapaz do convívio social normal. José Lins
do Rego, por sua vez, já conhecia o ex-cangaceiro da infância no engenho do
avô. Dessas memórias ele retirou os clássicos de seus clássicos: “Pedra
Bonita”, “Menino de Engenho”, “Fogo Morto” e “Cangaceiros”, todos contemplando
a figura do capitão-de-cangaço e as agruras do sertão.
O tema Cangaço
nunca envelheceu. Contaminou gerações de escritores, vários romancistas e
poetas, alguns polivalentes, inclusive derivando seu talento para a
dramaturgia, como Rachel de Queiroz, com a peça “Lampeão”, publicada em 1953 e
Ariano Suassuna, com o fantástico “Auto da Compadecida”, publicada em 1955. Não
poderia deixar de citar aqui um dos retratos mais realistas da violência rural
na nossa Literatura de ficção, embora baseado em fatos reais, que é “O Tronco”
do goiano Bernardo Élis. Obra de fôlego, que mostra em cores a convulsão
instalada na pequena Vila do Duro, sufocada e impotente entre os desmandos do
coronel e a arbitrariedade da Polícia Militar.
O “O
Cabeleira”, citado há pouco, também foi ponto de partida para outra vertente
literária, que não o da ficção regionalista. Trata-se da literatura histórica
específica que nasceu do resgate da tradição oral, e adornou-se de ensaios
sociológicos, antropológicos e psicológicos a cerca do tema. Cronologicamente,
citaria o trabalho do cearense Gustavo Barroso, notadamente “Terra de Sol”, de
1912, e “Almas de Lama e de Aço”, de 1930; e as duas biografias publicadas em
vida de Lampião, a primeira por Érico de Almeida, em 1926; e a segunda pelo
médico Ranulpho Prata, em 1933, ambas com o título de “Lampeão”.
Dos trabalhos
contemporâneos referenciais, citaria “Assim Morreu Lampião”, do paulista
Antonio Amaury Correa de Araújo, publicado em 1971, onde o autor passou o pente
fino sobre os acontecimentos do dia em que Lampião foi morto, e colocou-os em
ordem cronológica, a partir de depoimentos de cangaceiros, soldados e coiteiros
que participaram do epílogo de Lampião. Também da lavra de Antonio Amaury,
“Lampião: As Mulheres e O Cangaço”, publicado em 1984, e que foi o primeiro
trabalho dedicado ao universo feminino no Cangaço.
Mas ainda
havia uma lacuna. Faltava um ensaio sobre a violência rural brasileira, que se
esquivasse da visão simplista e fatalista, então vigente. A lacuna foi
preenchida pelo livro “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello,
historiador social de sede matada nas fontes da escola gilbertiana. É um
trabalho maduro sobre as bases sociológicas do Cangaço, e que foi complementado
pelo recentemente publicado: “Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço”, este
último o mais completo trabalho de análise e documentação sobre uma personagem
da nossa história, no caso o cangaceiro.
Dito isto,
termino por aqui parafraseando Guimarães Rosa:
Cangaço está
em toda parte! Também aqui na Casa de Machado de Assis, neste importante
encontro. Afinal de contas, cultura e educação são nosso oxigênio.
Sem as duas, apenas vegetamos. E em tempos de poluição cultural e educação
rarefeita, o brasileiro está apático, sem interesse pelos problemas do seu
país. Tem se preocupado, quando muito, com os desfechos dos programas
televisivos de confinamento e com o dia-a-dia das celebridades. Vale a pena,
então, puxarmos as máscaras de oxigênio e fazer ver a esse povo que a cor da
nossa identidade é reflexo do colorido das penas do índio Mandu Ladino e dos
enfeites dos chapéus dos cangaceiros.
Muito obrigado.
Leandro
Cardoso Fernandes
NOTA CARIRI
CANGAÇO: É com muita satisfação que postamos a espetacular conferência do
Doutor Leandro Cardoso Fernandes, por ocasião do Seminário Brasil, brasis, nos
salões da ABL - Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, no último mês
de Maio.
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