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sábado, 12 de outubro de 2013

Aurora e Lampião: objetos ou sujeitos da sua própria história

Por: José Cícero


Por mais de uma vez, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião – o rei do cangaço - estivera no município de Aurora.


É certo pensar que algum motivo de caráter superlativo atraíra o célebre bandoleiro pernambucano para as terras aurorenses. Senão, por que a redundância das vezes que esteve em visita e em descanso na ribeira salgadiana? O que lhe atraia tanto para este município? Eis a pergunta que não quer calar...Vale lembrar que Lampião estivera em Aurora dois anos antes(1925) com passagem pelo Tipi, Monte Alegre, Catingueira e Taveira. Outras datas ainda carecem de registros mais apurados, todavia ocorreram de forma discreta, posto que não tiveram a devida repercussão em face da ausência de outros confrontos tal qual o de junho/julho 1927.

No entanto, uma das vezes mais notória aconteceu no início de junho de 1927 quando na Ipueiras de Zé Cardoso, sobrinho do conhecido Izaias Arruda, então coiteiro de grande confiança de Lampião. Lá foi onde se deu toda a logística e trama para o malfadado e famoso ataque a Mossoró-RN, na época, considerada a segunda maior cidade do interior daquele estado. Fato ocorrido no dia 13 de junho de 1927 às 16 horas.

De Aurora o bando levaria, além de um otimismo exagerado, farta munição desviada por Izaias dos chamados “Batalhões Patrióticos” criado durante o governo Artur Bernardes para o combate à Coluna Prestes. O fruto do assalto ao Banco do Brasil de Mossoró seria dividido entre os três empreendedores da Ipueiras. De cara Izaias já recebera trinta e cinco contos de réis pelo armamento fornecido. Como se nota, não era um investimento de risco.


O retorno do Rio Grande do Norte para Aurora se deu por absoluto instinto de sobrevivência... Vez que com o malogrado ataque a Mossoró, Lampião e seu bando sofreram um revês dos mais humilhantes e significativos. Estavam acuados e em frangalhos. Várias baixas foram sentidas, tanto no aspecto moral quanto no seu poder de fogo, posto que o seu quantitativo de confronto ficou seriamente comprometido, notadamente pelas deserções que se seguiram, a começar pelo grupo de Massilon. Não houve escolha. Aurora lhes daria arrego. Afinal, aqui deixara, além de amigos; coiteiros fidedignos. Deve ter pensado Lampião quando foi acossado pelas saraivadas das balas mossoroenses e seguidamente durante os confrontos com as volantes interestaduais. Porém a invencibilidade de Lampião ainda estava à prova. Com pouco mais de 30 homens ele enfrentara um contingente de 300 praças do RN, Limoeiro até o solo caririense. E ainda teria a sua espera em Aurora cerca de 87 jagunços do coronel e mais de 150 praças oficiais em várias emboscadas que se seguiram.


Depois deste episódio Lampião e sua hoste nunca mais seria o mesmo. Perdera uma das suas mais importantes qualidades: o respeito, além da sua famigerada invencibilidade. O medo começava a partir dali, a vencer a auto-confiaça de um grupo inteiro, menos a do seu líder. Era ele um exemplo da persistência e da coragem em pessoa. Mesmo após ter perdido os valentes Jararaca, Colchete e Xexéu, Lampião ainda se mostrava impávido. A morte rondava os cangaceiros como um fantasma danado. Um cão sardento a seguir os passos do bando nos grotões cearenses. O moral do pequeno grupo estava ao nível do chão. E Lampião do alto da sua inteligência e experiência sentia exatamente isso nas suas entranhas e sentimentos. À pulso tentava esconder tudo isso por trás do seu gesto guerrilheiro. Não transparecia para os seus comandados nada que se parecesse negativo para a auto-estima do seu pessoal. Sua valentia era de um leão enfurecido abrindo passagem a todo custo em plena caatinga do Ceará. Por quase um mês os cangaceiros foram perseguidos desde o ataque à Mossoró até o município de Aurora e a Paraíba. Foram combates sangrentos quase sem trégua o que exigia dos “jagunços” uma resistência sem limite. Acuados por várias frentes de batalha, Lampião teve que agir rápido. O jeito foi derivar para os lados do Cariri com os pensamentos voltados para Aurora como verdadeira tábua de salvação. E em 1º de julho adentraram os limites aurorenses pelo vizinho município de Lavras da Mangabeira na altura do sítio Olho d’água das Éguas na serra da Várzea Grande. Após um pequeno descanso, o bando segue pelo Bordão de Velho e Malhada Funda onde todos se alimentam. Um boi e três ovelhas são sacrificados para a alimentação dos cangaceiros que há dias não sabiam o que era comer com fartura e tranqüilidade. A fome e a sede agora, não era mais problema.


O ataque a Mossoró


O mito do rei do cangaço começava ali, nas plagas norte-riograndense a desmoronar. A evidenciar os primeiros sinais da sua fragilidade, da sua exaustão, até então desconhecida para os que se sentiam donos absolutos de uma situação, bem como de uma terra onde a lei, quando se supunha que existisse, estava sempre a serviço dos mais fortes. Nunca em favor dos oprimidos e injustiçados pela vida e pela sorte.


O governo, a volante e os povos dos sertões adentro, começava também a se darem conta de que as investidas, assim como a própria existência do Lampião podiam ser barradas, combatidas de igual para igual. Teriam um basta. Um fim. A depender da coragem e da ousadia dos homens comuns, de carne e osso do próprio sertão até então, ao Deus dará. Neste conflito as gentes dos sertões pagaram um preço dos mais altos. Foram a um só tempo, protagonistas e vítimas de um corolário de injustiças cometidas por ambos os lados. Há quem diga, inclusive, que em alguns casos, mais por parte dos policiais do que dos próprios bandoleiros cangaceiristas. A narrativa do cangaço não pode ser expressa pelo prisma nem tanto dos anjos e tampouco pelos dos demônios. Haja vista ter sido toda ela uma construção cotidiana alicerçada pela condição humana em meio a ignorância, a estupidez, a ganância, os equívocos e a fragilidade sentimental do gênero humano.


Por conseguinte, Aurora, como se ver, parece não ter dado muita sorte aos propósitos lampiônicos. Mesmo se sabendo que não era a intenção precípua do famoso cangaceiro invadir a urbe de Mossoró. Tudo foi ideia do Massilon Leite. Um pseudo-estrategista que até então conquistara a admiração e o respeito do rei do cangaço não por muito mérito, mas pela suas invencionices mirabolantes. Coisas que o rei o capitão Virgulino pensava ser verdade. Depois por uma série de embuste e mania de grandeza. Massilon não passara de um bom falastrão. Um homem cuja lábia o servia muito mais que a própria arma e ousadia. Um fino observador das estradas e da vida dos coronéis, vez que era, além de bandoleiro, também almocreve. Um propagandista de mão-cheia, que sempre que podia usava o recurso da linguagem exagerada e, portanto, nem sempre verdadeira, mas em favor dos seus interesses lucrativos. Um homem cuja capacidade inventiva atraíra até o próprio Lampião – um cético em potencial que costumava por princípio desconfiar da sua própria sombra. Mas foi assim. A leitura falsa e florida que Massilon fizera de Mossoró foi uma verdadeira peça teatral para a qual Lampião e sua turma não estava suficientemente preparada para absorver com as devidas nuances da verdade. Faltou o princípio da precaução. A devida avaliação objetiva dos fatos. Uma análise estratégica da investida. O suposto Eldorado traçado maquinalmente por Massilon inebriou a todos, qual cachaça envelhecida em túnel de cedro. Ao ponto de Lampião e seus comandados anteciparem o prazer daquela que seria (na cabeça de todos eles) uma vitória fácil. Favas contadas... Mais uma a ser colocada no rol da fama do nobre capitão. Mas, ao que tudo indica, Massilon sabia que não era assim. Por algum motivo ainda não devidamente explicado e conhecido, o fez jogar seu amigo Lampião com sua gente numa verdadeira armadilha. O desiderato de se atacar Mossoró e adjacências foi, por assim dizer, um clássico caminhar de mocós em direção a tábua do forjo. Um fiasco com todas as letras, como o bando jamais havia executado. E Lampião, mesmo com sua cartilha do ‘confiando desconfiando’, seguiu com seu bando como gado a caminho do matadouro. E Massilon era em suma, o condutor em potencial desta boiada suicida. Resta saber com que interesse Massilon engendrara tal empreitada insana. Um projeto que já soara fracassado deste o princípio. Estava ele mancomunado com os interesses do Governo? Queria passar a perna em Lampião? Receber algum tipo de recompensa e, em seguida tentar ocupar seu lugar na história do cangaço nordestino? Estava a serviço do Cel. Izaiais Arruda que almejava consolidar seu apoio político junto ao governador e ao mesmo tempo obter lucros financeiros com a derrota de Lampião? Por que estaria pulsilanimente enviando Lampião para o cadafalso? O que ganharia com tal propósito? Que ligação teve ele, com a célebre tentativa de envenenamento de Lampião e seu bando, dias depois em Aurora, durante um banquete oferecido graciosamente como noutras vezes no sitio Ipueiras, propriedade de Izaiais? Como se percebe toda uma trama envolvia os fatos que em seguida ocorreram. Acontecimentos que até hoje, ainda não foram devidamente explicados.


A Traição para com o rei do cangaço


De fato, na história do cangaço não era possível a construção duradoura de amizades sólidas. Amigo era quase sempre um artigo que tinha vida efêmera. Não eram amigos apenas cúmplices. Um jogo de interesse que transcorria ao sabor dos acontecimentos. Era um eterno andar sob areia movediça. A lógica dos fatos nos apontava isso. A começar pela maneira como terminou a grande relação de amizade que(supostamente) existia entre o rei do cangaço e o Cel. Izaias – um dos maiores coiteiros que Lampião mantinha a peso de ouro nestas bandas dos sertões do Cariri cearense. Sim. Nada era de graça quando se envolvia com os negócios lucrativos do cangaço guiado na maioria das vezes pela teoria macabra do roubo e da pilhagem.


Tanto que em Aurora, Lampião se sentia como que em casa. Com um ingrediente a mais: aqui ele se sentia seguro e em plena mordomia, em face dos verdadeiros banquetes que lhe eram oferecidos pelos potentados do lugar. E não diga que era apenas da parte do famoso coronel. Isso não. As regalias assim como os presentes dispensados aos bandoleiros iam muito além dos préstimos oferecidos pelo Sr. Izaias Arruda. Aqui nas terras aurorenses, Lampião parecia mais querido que odiado. Não se sabe se por temor ou pura admiração dos seus feitos cantados e decantados pelo Nordeste adentro. O certo é que em Aurora Lampião promoveu seguidores ao passo que verdadeiros bandos nasceram e atuaram anos a fio por estas ribanceiras. Inclusive de jagunços sanguinolentos, como verdadeiras milícias profissionais à serviços dos coronéis do latifúndio. Basta dizer que do subgrupo de Massilon muitos eram naturais d’Aurora principalmente da região das Antas tais como: Zé de Lúcio( o Três Pancadas), José de Roque e Zé Cocô, só para citar alguns. Um outro pequeno grupo tivera a participação do famoso Róseo Fidélis das bandas da Ingazeiras.


Contudo, mesmo desconfiado como era sua praxe, Lampião nunca esperaria uma traição que viesse dos seus amigos das Auroras. Estava redondamente enganado. O tempo não tardaria a lhe provar o contrário em três grandes momentos distintos. A estratégia traçada aqui para a invasão de Mossoró, o ataque da volante sofrido no sítio Ribeiro e o suculento banquete(envenenado) oferecido na Ipueiras – fazenda-vivenda pertencente a José Cardoso, parente do famoso coronel Izaiais Arruda que terminaria com um cerco policial e o ato incendiário ao bando de Lampião.


Mas, de certa forma Lampião com sua perspicácia saíra quase incólume de todas elas. Não totalmente ileso, mas salvara a sua vida e dos seus próprios apaziguados no seu conjunto(com pouquíssimas baixas). Uma saída possível do cerco da Ipueiras onde tombou o cangaceiro Xexéu. As baixas que tiveram foi o preço mínimo que pagara para não sofrer uma derrota ainda mais completa e humilhante. A fome, a sede, o cansaço, a falta de munição e o verdadeiro desmantelamento dos armamentos. Tudo isso somado redundou no enfraquecimento e quase fim do bando lampiônico naquele momento singular na história de Virgulino Ferreira. Seu know-how de homem estrategista ajudara a escapar de todas as armadilhas e confrontos com as volantes, mas o batera sensivelmente. Lampião não estava preparado para a derrota. Neste sentido Mossoró e Aurora comprometeram para sempre os sólidos princípios da velha ousadia do cangaço lampiônico.


A estratégia genial de Lampião na geografia da caatinga


No dia 7 de julho saíram às pressas da Ipueiras. O ziguezague que a partir dali realizou no território aurorense foi algo só digno a um profundo conhecedor da nossa caatinga. Na sua segunda marcha, Lampião seguiu na direção do Sudeste, Serra do Coxá, Ingazeiras. Após a traição de Ipueiras Lampião seguiu para a serra do Góes já na divisa com Caririaçu indo pelas bandas do Pau Branco atravessando o Salgado na altura do sítio Barro Vermelho, passando pelo Jatobá, Brandão e pernoitando em Vazantes. De lá se dirigiu para a serra dos Quintos e no dia 9 para a serra dos Góes adentrando o município de Milagres transpondo a linha de ferro na localidade de Morro Dourado ainda em Aurora. Uma volta que envolveu todo o perímetro do território aurorense. Esta estratégia deixou completamente perdidos os que lhe caçavam a ferro e fogo. Dali conseguiu penetrar sem ser incomodado no estado da Paraíba pela a serra de Santa Inês. Um fino estrategista militar. Dera um banho de conhecimento geográfico e topográfico nas diversas frentes policiais que tentaram cercá-lo no Cariri e alhures, sobretudo nas saídas para Paraíba e Pernambuco. Este tino de rasgar os sertões com exímia perícia era uma coisa admirável no ‘Che Guevara’ dos grotões nordestinos. Foi um notável também neste aspecto. Esta capacidade talvez, o tenha ajudado bastante nas incursões que fizera com sucesso durante os anos que se aventurou pelas íngremes e inóspitas regiões do Nordeste. Lugares que até então, nenhum cristão da capital havia posto os pés e nem sequer ouvido falar. Porém por conta de Lampião, estava lá nos jornais da época, na pauta dos governos na boca da sociedade, malgrado a crítica contra ou a favor do Virgulino. Por tudo isso, o cangaço ajudou de alguma maneira, a denunciar o sofrimento dos sertanejos abandonados pela sorte e pelo poder e a excludência social numa época em que o Brasil quase sempre não passava do Litoral.


Lampião e sua admiração por Aurora


Mas digamos que o Cariri no geral e Aurora em particular conquistaram a admiração e o apreço do bandoleiro. Mas a propósito, quais as motivações que o levaram a isso? A figura afamada do padre Cícero do Juazeiro? O difícil acesso das volantes? O quase isolamento geográfico? Mas, a estrada de ferro? O rio Salgado? A truculência dos coronéis? A fome, a miséria e a seca?


Há que se destacar a proteção do temível coronel Izaias e sua ligação política como prefeito de Missão velha? Até armeiro consagrado o rei do cangaço possuía por aqui. Sem dúvida, o rei do cangaço mantinha uma autêntica relação afetiva com Aurora e boa parte desta região. Amigos, conforme a sua perspectiva...


Místico e religioso foi aqui que certa feita escolhera para sua suposta iniciação ao grupo dos Penitentes da Ordem Santa Cruz. O propalado mito de que Lampião se encantava, ficava invisível, tinha o corpo fechado, começou nas paragens aurorenses. Vez que passara algumas vezes por meio da própria volante, sob a proteção dos seus “irmãos” da Ordem. Como dizem, um destes fatos inusitados ocorrera durante o cerca e o ataque que sofrera no sítio Ribeiro da Aurora. Porém, o mistério continua... O certo, no entanto, é que Aurora ocupou um lugar de destaque na rica história do cangaço lampiônico. E isso precisa ser resgatado, pesquisado, contado e reescrito para que as novas gerações possam conhecer no devido grau de importância histórica este verdadeiro fenômeno social e sociológico dos nossos sertões.


Aurora e Lampião: uma história que não pode morrer


Não nos enganemos de novo. Digamos se tratar de uma nova luta: desta feita, não apenas da memória contra o esquecimento total, como se de chofre possa se imaginar pelo os menos atentos ou desavisados. Mas, a história narrativa dos que não apenas a escreveram como história oficial e, ainda a defendem com unhas e dentes, como a saga escritas ao sabor dos vencedores. Isso não. Defendamos a história da autenticidade: como ela foi e como ela é. A história verdadeira dos que fizeram parte dela sofreram com ela, protagonizaram-na em toda sua inteireza, enfim, foram não somente objetos, mas, principalmente sujeitos dela. E Aurora, indubitavelmente foi e será sempre, sujeito da sua própria história.


Geralmente a história escrita pelos vencedores nem sempre pode ajudar ao serviço da verdade. O cangaço assim como as passagens de Lampião pelas terras aurorenses não podem fugir a esta regra deveras imutável.

(*) artigo especialmente produzido para o seminário Cariri Cangaço.

Por: José Cicero
Blog de Aurora

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AS CHUVAS VOLTARAM (E OS SENTIMENTALISMOS TAMBÉM)



Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa 

Não, não sou capaz de tecer uma só linha de filosofia romântica, mas alguém já disse que as chuvas, quando são caídas em meio ao tempo tristonho e escurecido, são como palavras vindas do alto para inundar o coração do poeta.

Outro, também num plano simbólico, disse que as chuvas que caem e molham a terra, lavam as ruas e descem nas enxurradas, acabam sendo as mesmas enchentes que desaguam das almas sedentas e transbordam pelos rios das faces melancolicamente aflitas.

O máximo que eu poderia dizer é que as chuvas me comovem e me transformam. Sinto-me sentimentalmente desnorteado e emocionalmente fragilizado toda vez que o horizonte irrompe com aquela feição de chuvarada. E os pingos caídos já me encontram passarinho desassossegado.

Perco o norte do ninho, não sei se vou ou se fico, procuro asas para voar e acabo sendo guiado apenas pela imaginação, pela saudade, pelas recordações. Basta chover e o velho baú parece se abrir por conta própria; o álbum antigo se mostra folheado diante de mim; as coisas velhas e novas se juntam numa fotografia emoldurada pela vidraça embaçada.

Eis a minha feição agora com a volta das chuvas. Desde ontem mais cedo que o tempo começou a mudar, o azul da barra adiante tomou uma cor escurecida e o vento mensageiro chegou avisando o que todos já sabiam: as chuvas voltaram, e com elas pingos acompanhados de ventania, daqueles que se lançam pelas portas e janelas para molhar tudo que encontrar.


Mas foi um bom sinal aos meus olhos. Admiro a chuva como o noctívago gosta da rua deserta e doido se envolve com a lua cheia. Mesmo sabendo que com ela também chega o vendaval açoitando os sentimentos, não posso negar o encantamento que sinto diante dos dias molhados.

E não sei por que, mas as chuvas da primavera chegaram diferentes, inesperadamente contínuas e até ameaçadoras. Acompanhadas de vento forte e baforadas friorentas, colocam os cortinados em verdadeira convulsão e vão forçando passagem diante dos obstáculos mais frágeis. E respingam pelas salas e quartos para encontrar pessoas recolhidas aos sentimentos mais íntimos.

Tomei-me de sonolência, mas não por necessidade de dormir. O tempo nublado me faz mais perto da noite; a noite me traz a velha canção e as recordações dos idos e vividos; a antiga canção me coloca diante de faces, olhares, sorrisos. E tudo isso me faz tomado de melancolia e de uma nostalgia que vai entrando no ser e adormece o instante. Para acordar apenas o passado.

Mas não poderia ser diferente. A paisagem, interna e externa, emoldurada na chuva, não traria consequências diferentes. E certamente não sou o único que é completamente envolvido por chuvaradas tais, como essas de primavera que estão caindo. Verdade é que tudo fica mais entristecido, mais silencioso, melancólico, poético, inebriante. Quem não é poeta se torna; quem pensa que é de pedra lacrimeja; quem está distante de qualquer querer tem de amargar seu íntimo temporal.

E assim acontece porque bate uma saudade danada, porque cada pingo chega como uma voz, cada respingo vem como relembrança. E se é noite, então. As noites que já trazem consigo mil portas para revivências, acabam despertando as lembranças e faces adormecidas no peito. E fazer o que em momentos assim, senão querer abrir a porta ou janela e voar com destino certo. Mas chove forte lá fora.

Então só lhe resta amargar o sofrimento molhado. E talvez chorar. Mas chore como eu. Aprendi a enganar as lágrimas. Simplesmente corro pro meio da chuva, me misturo aos pingos e me faço ter olhos pelo corpo inteiro. E o peito saudoso fica sempre pensando que estou lavando os martírios da alma.

Poeta e cronista
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