Trabalho
vencedor do Prêmio José Lacerda Alves Felipe, versão 2017, concedido pelo
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, no ensejo do XXIII Encontro
Estadual de Geografia do Rio Grande do Norte – EGEORN. - ENTRE VERSOS E RIMAS,
A GEOGRAFIA NA OBRA DE ANTÔNIO FRANCISCO - Pedro Henrique Rocha Martins.
ENTRE VERSOS E
RIMAS, A GEOGRAFIA NA OBRA DE ANTÔNIO FRANCISCO (1)
Pedro Henrique
Rocha Martins
Aluno do 8º
período do Curso de Geografia da FAFIC/UERN
Jamilson
Azevedo Soares
Professor do
Curso de Geografia da FAFIC/UERN
jazevedosoares@hotmail.com
GT 08: ESPAÇO
E CULTURA
RESUMO
O presente estudo
pretende promover uma discussão sobre a relação entre geografia e literatura,
através da obra do poeta popular mossoroense Antônio Francisco, objetivando identificar
temas que podem se configurar como fonte de análise de questões que são
estudadas pela geografia. O procedimento metodológico adotado constou de
revisão da obra do poeta Antônio Francisco, intuindo nela identificar os
elementos geográficos relevantes que servem de objetos para reflexão e análise,
além de consultas a outras fontes bibliográficas relacionadas à temática em
foco. Infere-se que o objeto de estudo apresenta um conjunto de temas tais
como, as transformações das paisagens pela ação da modernização espacial, as
mudanças no meio urbano e, principalmente, as questões sociais e ambientais, as
quais expressam a riqueza da cultura popular pela forma como são abordados, devendo
tais conteúdos ser explorados no contexto da ciência geográfica com vistas à
valorização e reconhecimento do significado e importância que essa literatura
pode representar para a compreensão do papel da geografia no processo de
transformação social.
PALAVRAS-CHAVE:
Literatura de cordel. Cultura popular. Geografia cultural.
INTRODUÇÃO
A literatura
configura-se como uma das mais antigas formas de ensino, mesmo que as práticas
literárias não se dessem exatamente de forma pedagógica. Os gregos antigos e os
romanos liam em praças públicas textos e poemas que eram ouvidos com deleite
pelo público presente, instigando-os a refletirem sobre os conteúdos e para que
também soubessem das belezas do mundo (ALMEIDA, 2014).
Ao
longo do tempo, conforme Almeida (2014), a literatura manteve-se como uma
prática que evidenciava a divisão no contexto social pela forma como passou a
ser colocada - distante do público nas escolas -, configurando-se, assim, como
um instrumento reservado às elites e como marca da separação entre as classes.
Atualmente, a
educação teve seu acesso universalizado na maioria dos países. Tal fato
possibilitou que a literatura fosse posta como um instrumento efetivo de
aprendizagem nas escolas, inclusive dialogando com outras ciências, como é o
caso da geografia.
Na geografia,
a relação com a literatura começou a partir da sua corrente humanista, em
especial em sua abordagem cultural, ao qual se dá como uma nova perspectiva de
leitura do meio socioespacial, propondo, através do diálogo com outros objetos
culturais (sendo um desses a literatura), a compreensão e a interpretação da
relação do homem no espaço por ele produzido e vivenciado (OLANDA; ALMEIDA,
2008).
Na abordagem
empreendida nesse estudo, utilizamos um dos gêneros literários, a poesia, no caso,
o cordel. A literatura de cordel aborda em boa parte de seus versos assuntos relacionados
ao dia a dia de seus autores, ou seja, descrevem em forma de poesia uma leitura
do mundo vivenciado por eles, como aspectos regionais, culturais, sociais,
ambientais, entre outros. Propomos então que, ao estimular a leitura, não
estaríamos apenas contribuindo para com a geografia em si, mas, também para o
fomento à literatura e à difusão desse gênero literário, na perspectiva de
valorizar e contribuir para com a cultural local e regional.
O nosso objeto
de estudo versa sobre a literatura do poeta popular mossoroense Antônio
Francisco, em cuja obra podemos identificar uma leitura crítica e sucinta dos
aspectos e espaços vivenciados por ele e que podem ser utilizados como
instrumento didático no ambiente escolar, estimulando o leitor-aluno a
correlacioná-los de forma crítica com os assuntos evidenciados no livro
didático e com o seu dia a dia, saindo assim do tradicionalismo ainda praticado
hoje em sala de aula.
No trabalho
empreendido foi levantado o seguinte questionamento: Na literatura de cordel do
poeta popular mossoroense Antônio Francisco, percebe-se a presença de conteúdos
geográficos significativos que podem ser utilizados como instrumento de
aprendizagem no ensino da geografia escolar? Em que aspectos tais conteúdos
podem ser relacionados à geografia?
Em busca de
respostas às questões de pesquisas formuladas, o trabalho tem como objetivo
geral analisar, através obra literária de cordel do poeta Antônio Francisco,
conteúdos que possam ser utilizados como metodologia para o ensino da geografia
ao correlacionar os conteúdos da geografia escolar com a poesia evidenciada nos
cordéis, na pretensão de contribuir para a promoção da aprendizagem no ensino
mais eficiente da geografia escolar. Como objetivos específicos, ressaltamos os
seguintes: Identificar conteúdos na obra de Antônio Francisco que abordem
assuntos relacionados à geografia; discutir a relação da literatura de cordel
com o ensino da geografia; contribuir para que o cordel venha a ser pensado e
utilizado como uma ferramenta de real significado para o ensino mais eficaz da
geografia.
Para a
avaliação da problemática aqui indagada, foram utilizados, como procedimentos
metodológicos, o levantamento bibliográfico da obra do poeta Antônio Francisco
para nela identificar os elementos geográficos que seriam objetos para reflexão
e análise. Ainda para embasamento teórico-metodológico foram consultadas fontes
bibliográficas tais como, livros, artigos, monografia, teses, revistas e os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), os quais abordam a questão cultural e
a literatura de forma mais específica como instrumento didático no ensino
escolar.
A LITERATURA
SOB O OLHAR DA GOEGRAFIA: Uma abordagem cultural
Segundo
BROSSEAU (2007, p.17) “O interesse dos geógrafos pela literatura não é novo”;
no entanto, até a década de 1970, estudos geográficos nessa área eram escassos.
Em nosso objeto de estudo, a literatura, com ênfase para o cordel, será
considerada segundo a abordagem cultural da geografia, em que a cultura é assim
percebida:
(...) vista
como um reflexo, uma mediação e uma condição social (...). Considerada como
sendo o conjunto de saberes, técnicas, crenças e valores, este conjunto, no
entanto, é entendido como sendo parte do cotidiano e cunhado no seio das relações
sociais de uma sociedade de classes (CORRÊA; ROSENDAHL, 2003, p.13).
A geografia
cultural permite ao geógrafo trilhar por diversos caminhos, visando a
contribuição e a difusão dos saberes intelectuais sobre a superfície terrestre.
Caminhos, estes, em que podem ser considerados,
(...) tanto a
dimensão material da cultura como a sua dimensão não-material, tanto o presente
como o passado, tanto objetos e ações em escala global como regional e local,
tanto os aspectos concebidos como os vivenciados, tanto espontâneos como
planejados, tanto aspectos objetivos como intersubjetivos. O que os une em
torno da geografia cultural é que esses aspectos são vistos em termos de
significados e como parte integrante da espacialidade humana (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2003, p.13-14).
É sobre esses
caminhos que iremos trilhar ao longo das nossas discussões, ao analisarmos as
obras poéticas cordelísticas do poeta mossoroense Antônio Francisco, através
das quais tentaremos compreender as suas reflexões sobre o local, os aspectos
do cotidiano e da cultura popular, procurando contextualizar com os saberes
também vivenciados no ambiente escolar, através dos conteúdos didáticos
contidos no programa da disciplina.
A geografia
cultural ganhou força na década de 1970. Surgia uma geografia humanista,
paralelamente a uma corrente crítica, de cunho marxista, a qual constitui em crítica
à dominante corrente quantitativa da geografia da época, bem como à tradicional.
Buscava-se colocar o sujeito novamente no centro de seus trabalhos e reflexões.
Paralelamente, geógrafos calcados em fundamentos da fenomenologia, buscam uma
renovação e novos sentidos para os lugares, como assim expressa Claval:
Foi através do
interesse renovado pelo sentido dos lugares, que as pesquisas sobre
representações passaram a integrar novas preocupações: representações tem uma
carga emotiva que as pesquisas começaram a levar em conta (2008, p.17).
Ainda no
pensamento de Claval, essa abordagem cultural tem como característica a atenção
dada ao indivíduo, suas experiências e a maneira como cada um percebe o meio no
qual convive: “a geografia descobre o sentido dos testemunhos literários ou
picturais” (CLAVAL, 2008, p.20). Nessa perspectiva, “a literatura expressa a
condição humana e sua existência” (MARANDOLA JR; GRATÃO, 2010, p.10).
Foi a partir
do rompimento dos paradigmas da geografia quantitativa (calcadas em dados
estatísticos) e da inserção do sujeito novamente no centro dos estudos
(geografia humanista), que diversos geógrafos buscaram uma nova forma de
compreensão do espaço, surgindo então a ideia de espaço vivido, como expresso
na obra de BROSSEAU (2007), ao realizar um panorama dos estudos geográficos
franceses.
Nesse sentido,
a literatura passou a ser vista pelos geógrafos como uma real fonte de conhecimento,
uma vez que nela encontram-se relatos das ações humanas, como é o caso da
literatura de cordel, cuja essência, em sua maior parte, é composta por relatos
da vivencia daqueles que as produziram.
Em realidade,
toda ação humana, alterando a natureza produzia cultura. O gênero de vida, o
resultado das complexas relações envolvendo um dado grupo social e a natureza,
concebidos como expressão e condição social, constitui-se em outro foco central
do interesse de geógrafos interessados em compreender a diversidade espacial
(CLAVAL apud CORRÊA; ROSENDAHL, 2013, p.10).
Essas relações
configuram-se como parte essencial das obras cordelísticas dos consagrados
poetas regionais, essências essas que derivam do fato de que o cordel
configura-se como uma literatura popular e tipicamente brasileira, carregada,
portanto, de uma rica bagagem de relatos e testemunhos dessas relações e ações
humanas.
Não só as
relações e ações humanas se configuram como fator cultural, pois, o próprio
homem é produto e produtor da cultura, uma vez que, conforme SANTOS (1987, p.
7), “cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um
dos povos, nações, sociedades e grupos humanos”. Para este autor, entender as
relações humanas e seus conflitos no discurso da história da humanidade é
fundamental para que compreendamos os fatores culturais contemporâneos.
Essas relações
também são amplamente debatidas entre os geógrafos humanistas e são
fundamentais para a compreensão das dinâmicas espaciais, sobretudo nos estudos
populacionais, urbanos, políticos, econômicos e regionais, como é o caso da
nossa proposta de estudo, na qual o cordel é visto como fonte de compreensão e
expressão cultural, configurando-se como uma construção poética tipicamente
regional, o qual carrega expressões culturais como o dialeto, o sotaque, os
costumes regionais, as paisagens e lugares regionais, entre outros; revelando,
portanto, a essência cultural de uma dada região. Em nosso caso, daremos ênfase
ao Nordeste brasileiro, ao qual tem o cordel como um símbolo de expressão
cultural, com destaque à escrita e à oralidade, sendo que essa última aparece
como uma marca nas literaturas populares, como destaca AZEVEDO (2008, p. 7):
Creio que a
literatura popular, e também a literatura para crianças e jovens, tendem a
adotar o modelo marcado pela oralidade, ou seja, o escritor escreve quase como
se estivesse falando de viva voz a outra pessoa num contato face-a-face (...)
Tal
característica literária remete-nos à ideia de espaço vivido, tendo grandes
semelhanças com a literatura romanesca, que pode nos revelar “um retrato vivo
da unidade do lugar e do povo” (GILBERT apud BROSSEAU, 2007, p. 23). De igual
modo, podemos assimilar a poética cordelística, já que a mesma possui traços
romanescos. Dessa forma seria então a literatura fonte testemunhal, um “porta-voz
das populações” (BROSSEAU, 2007, p.25).
Portanto, é
possível o diálogo geográfico com o literário conforme exposto, havendo então,
um processo interdisciplinar entre as áreas do conhecimento.
A INTERDISCIPLINARIDADE
ENTRE O ENSINO DA GEOGRAFIA E O DA LITERATURA
Não é de agora
que se pensa na interdisciplinaridade da geografia com outras áreas do
conhecimento, tendo em vista que isso ocorre desde o surgimento do pensamento
geográfico, uma vez que, este, ao longo do tempo, sempre teve aproximação com
outras ciências até mesmo quando se discutia sua identidade, objeto, métodos,
conteúdos e seu campo de atuação.
Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) do ensino fundamental, já fazem menção à busca
dessa interdisciplinaridade pela geografia através dos estudos das paisagens,
territórios, lugares e regiões, procurando, portanto, fontes diversificadas,
como por exemplo a literatura:
Mesmo na
escola, a relação da Geografia com a Literatura, por exemplo, tem sido redescoberta,
proporcionando um trabalho que provoca interesse e curiosidade sobre a leitura
desse espaço. É possível aprender Geografia desde os primeiros ciclos do ensino
fundamental, mediante a leitura de autores brasileiros consagrados (Jorge
Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, entre outros), cujas
obras retratam diferentes paisagens do Brasil, em seus aspectos sociais,
culturais e naturais. Também as produções musicais, a fotografia e até mesmo o
cinema são fontes que podem ser utilizadas por professores e alunos para obter
informações, comparar, perguntar e inspirar-se para interpretar as paisagens e
construir conhecimentos sobre o espaço geográfico. (BRASIL, 1998, p.33)
Essa
redescoberta da relação da geografia com a literatura tem levado os geógrafos a
buscarem na literatura aspectos que possam auxiliar na compreensão do espaço
geográfico como, por exemplo, MARANDOLA JR. e GRATÃO (2010), organizadores do
livro intitulado “Geografia e Literatura”, os quais buscam através das obras
literárias aspectos para a compreensão dos lugares, das paisagens, das regiões
e das dinâmicas espaciais.
O CORDEL COMO
GÊNERO LITERÁRIO
A literatura
de fato é produto cultural, como já enfatizado anteriormente, a qual
caracteriza-se como um meio de produção social, cujo elemento básico que a
constitui é uma língua natural, como demonstra JOBIM e SOUZA (1987), podendo
ser dividida em gêneros literários e também por estilos de épocas, nesse caso,
destacaremos apenas um dos gêneros[1],
no caso, a poesia[2].
O cordel é uma
construção poética, cujo nome deriva da forma como as obras produzidas eram
comercializadas. Essas construções poéticas eram conhecidas também por livretos
ou folhetos, os quais eram expostos à venda em cordas, daí a nomenclatura
cordel. Tais construções poéticas também traziam consigo a oralidade, em que os
versos construídos eram declamados nas feiras livres. Estima-se que essa
prática no Brasil se deu com a sua colonização, sendo difundido, posteriormente,
pelo território nacional, principalmente na região nordeste do País, como assim
descrito:
Penso que o
hábito de decorar histórias, dos cantos de trabalho, as cantigas de embalar e
toda sorte de narrativas orais trazidas pelos colonizadores vão sedimentando,
na cultura brasileira, o costume de cantar e contar histórias, de guardar na
memória os acontecimentos da vida cotidiana. Assim, pouco a pouco, foi se
desenvolvendo junto ao homem brasileiro, mais especificamente na região
Nordeste, onde se deu o início da colonização, uma poesia oral com características
muito peculiares (BARROSO, 2006, p. 22).
As primeiras
práticas cordelísticas no nordeste brasileiro datam do final do século XVIII, enquanto
as cantorias de violas do grupo de poetas da Serra do Teixeira, localizada no
sertão do Estado da Paraíba, tinham como principal protagonista o poeta
Agostinho Nunes da Costa (1797-1858). Essas cantorias de violas eram
construídas em sextilhas, e eram declamadas em praças e feiras públicas. Nessa
época, não se tem registros de poemas impressos em folhetos. Segundo SILVA
(2007, p. 12), o cordel é fruto dessa oralidade:
E o cordel é,
antes de tudo, fruto dessa oralidade, pois foi através das narrativas orais,
contos e cantorias que surgiram nossos primeiros folhetos, tendo a métrica, o
ritmo e a rima como seus elementos formais essencialmente marcantes nessa
literatura.
Os primeiros
registros de folhetos impressos datam do final do século XIX através das obras
do poeta Leandro Gomes de Barros (1868-1919), cujo primeiro folheto impresso é
de sua autoria (TEIXEIRA, 2008).
Essa
construção poética se destaca pelo fator cultural (destacando principalmente a
cultura do povo nordestino), pela sua oralidade (capacidade de ser declamada
pela leitura ou de forma cantada) e pela sua identidade (tipicamente
nordestina). Alguns estudiosos afirmam que o cordel é uma construção “puramente
brasileira” (BARROSO, 2006, p. 30). Analisaremos agora a obra cordelística do
poeta Antônio Francisco em busca de elementos geográficos que possam ser
utilizados no processo ensino-aprendizagem.
A GEOGRAFIA NA
OBRA DE ANTÔNIO FRANCISCO
Em sua obra, o
poeta Antônio Francisco Teixeira de Melo aborda de forma crítica assuntos que
também são abordados pela geografia, tais como, as transformações das
paisagens, as mudanças no meio urbano, as questões sociais e ambientais, entre
outros. A seguir, faremos uma análise desses conteúdos para que possam ser
explorados no ensino escolar através da geografia. Vejamos, pois alguns
exemplos.
No cordel “Um
urubu Quase Santo”, Antônio Francisco faz uma crítica contundente à
desigualdade social, como podemos perceber no fragmento de texto abaixo:
Todo fim de
ano eu passo / De frente à mesma favela, / Na esperança de ver / O natal
brilhando nela, / Mas só vejo a mão do mundo / Batendo no povo dela.
Um povo que vive
bem / Distante do cidadão, / Entre urubus e porcos / Numa terrível missão: /
Tirar o pão que mastiga / Da gordura do lixão. (...) (2007, p.55)
Nesse trecho
do poema “Um urubu quase santo”, Antônio Francisco aborda a questão social,
evidenciada no nosso dia a dia, a indiferença social, a miséria vivida por
parte da população, a qual vive à margem da cidadania e apartada do acesso ao
consumo. Essa mesma temática é abordada em outro poema denominado “A casa que a
fome mora”:
(...) Vi a
cara da miséria / Zombando da Humanidade / Vi a mão da caridade / Num gesto de
um mendigo / Que dividia o abrigo, / A cama e o travesseiro, / Como um velho
companheiro, /Que estava desempregado, / Vi da fome o resultado, / Mas dela nem
o roteiro. (...) (2005, p.35)
É proposta a
abordagem dessas temáticas sociais no 4º ciclo do ensino fundamental, o qual
corresponde ao currículo do 8º e 9º ano, onde a temática é debatida no contexto
da globalização, que, juntamente com a crescente influência capitalista e
desenvolvimento da técnica, ciência e informação, proporcionaria o
desenvolvimento de uma globalização capitalista, gerando, portanto, crescimento
econômico concomitante à formação de desigualdades socioespaciais, já que essa
globalização não se dá de forma homogênea, sendo seletiva e excludente. Segundo os PCNs para a geografia se faz
necessário que:
Essa análise
deve ser feita sempre considerando os impactos local, regional e global. A
globalização da economia tem contribuído para o acirramento das desigualdades.
De um lado tem permitido que vários países localizados em vários pontos do
planeta tenham acesso às grandes conquistas das tecnologias. Mas de outro tem
gerado um quadro de superexploração dos recursos da natureza, atingindo até
mesmo recursos básicos como o ar e água. (BRASIL, 1998. p.144)
Já no poema
“Um bairro chamado Lagoa do Mato”, Antônio Francisco destaca outra questão que
também é objeto da geografia, referente ao estudo do urbano. Nele, o autor
aborda as transformações do seu bairro de origem, em que a construção da
narrativa empreendida que, vai de passagens da infância à vida adulta, registra
as transformações desse espaço/tempo em questão, como percebemos texto abaixo:
Nasci numa
casa de frente para linha, / Num bairro chamado Lagoa do Mato. / Cresci vendo a
garça, a marreca e o pato, / Brincando por trás da nossa cozinha. / A tarde
chamava o vento que vinha / Das bandas da praia para nos abanar. / Titia
gritava: está pronto o jantar! / O Sol se deitava, a lua saia, / O trem
apitava, a máquina gemia, / Soltando faísca de fogo no ar.
O galo
cantava, peru respondia, / Carão dava um grito quebrando aruá, / A cobra piava
caçando preá, / Cantava em dueto o sapo e a jia, / Aguapé se deitava e depois
se abria, / Soltava seu cheiro nos braços do ar / O vento trazia pro nosso
pomar, / Vovô se sentava no meio da gente / Contando história de cabra valente
/ Ouvindo lá fora o vento cantar.
A lua entrava
na casa da gente,/ Batia com força nas quatro paredes. / Seus cacos caíam
debaixo das redes / Pintando na sala um céu diferente. / E com ele Zequinha pra
gente brincar, / Comer melancia, depois se banhar / Nas águas barrentas daquela
lagoa. / A vida era simples, barata, tão boa, / Que a gente nem via passar.
O peixe batia, a água espanava, / A gente
pegava uma ponta da linha, / Amarrava um anzol numa vara que tinha / E ia pra
onde o peixe pulava. / Num quarto de hora a gente voltava, / Já tinha a traíra
pra gente almoçar, / Piaba, manteiga pra gente fritar, / Titia fritava e a
gente comia. / Faltava dinheiro, sobrava alegria / Naquele pequeno pedaço de
lar. (MELO, 2005, p.55-56)
Nesse primeiro
momento do texto, Antônio Francisco demonstra, em forma de versos, como era o
bairro Lagoa do Mato, situado na parte urbana da cidade de Mossoró-RN, nos seus
tempos de infância, entre as décadas de 1950-1960, período este em que a
configuração espacial e os elementos presente no bairro configuravam-se de
maneira totalmente diferente da atual, como podemos perceber na segunda parte
do cordel:
Mas hoje nosso
bairro está diferente. / Calou-se o carão, que cantava na croa, / A boca do
tempo comeu a lagoa / E com ela se foi o sossego da gente. / O vento que sopra
agora é mais quente / E sem energia não sabe soprar. / A máquina do trem deixou
de passar, / Ninguém olha mais pros raios da lua / Que vivem perdidos no meio
da rua / Por trás dos néons sem poder brilhar. (...) (MELO, 2005, p.55-56)
Nesse mesmo
poema, Antônio Francisco também aborda outra questão que tem forte inserção na
Geografia: a relação entre a sociedade e a natureza, a qual resulta na
degradação do meio natural, como percebemos no urbano contemporâneo.
Degradação essa
que é fruto do processo caótico do modelo de urbanização preconizado e induzido
pelas forças do modo de produção capitalista e das ações de agentes e empresas
inseridos nessa realidade.
Perdeu-se a
traíra debaixo do barro, / O sapo e a jia também foram embora. / Aguapé criou
pé, deu no pé e agora? / Só as rosas de plástico tristonhas num jarro, / Fumaça
de lixo, descarga de carro, / Suor de esgoto pra gente cheirar (...) (MELO,
2005, p. 56)
Assuntos
relacionados à educação ambiental são inseridos no currículo da geografia e é proposto
o estudo dessa temática segundo os PCNs da geografia escolar no eixo 3, que
corresponde os estudos sobre, modernização, modo de vida e a problemática
ambiental, estudados no 5º e 6ª ano do ensino fundamental, dessa forma,
Propõe-se um
trabalho mais detalhado com a modernização, modos de vida e a problemática
ambiental. Ao cuidar dos temas desse eixo, o professor poderá dar um tratamento
mais aprofundado, abordando o campo da ecologia política, discutindo temas tais
como as mudanças ambientais globais, a questão do desenvolvimento sustentável
ou das formas de ocorrência e controle da poluição. A proposta de Geografia
para estudo das questões ambientais favorece uma visão clara dos problemas de
ordem local, regional e global, ajudando a sua compreensão e explicação,
fornecendo elementos para a tomada de decisões e permitindo intervenções
necessárias. (BRASIL, 1998. p. 46).
CONCLUSÃO
Como visto, é
notória a presença de elementos e temas geográficos na obra de Antônio
Francisco. Dessa forma, podemos concluir que, é sim possível, correlacionar a
obra cordelística desse autor com a geografia, pois, como já destacado aqui, na
literatura de cordel é possível encontrar elementos que são claramente objeto
de estudo da geografia e que destacam temas que são abordados em sala de aula,
como está proposto pelos PCNs, por exemplo.
O Cordel pode
ser utilizado como uma ferramenta auxiliadora no ensino da geografia,
proporcionado, assim, tanto ao professor como ao aluno, experiência
diferenciada, que, por sua vez, quebraria com os monótonos e fastigiosos
métodos utilizados ainda nos dias atuais.
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Trabalho
vencedor do Prêmio José Lacerda Alves Felipe, versão 2017, concedido pelo
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte no ensejo do XXIII Encontro
Estadual de Geografia do Rio Grande do Norte – EGEORN.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com