Por Carlos
Braz
No próximo dia
28 de julho completam-se 80 anos da morte do afamado cangaceiro Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, juntamente com sua companheira Maria Bonita e
nove “cabras” do bando. O cenário do sinistro acontecimento foi uma grota no
interior da Fazenda Angicos, localizada à época, no município sergipano de Poço
Redondo.
Decorridos
tantos anos, a história do cangaço como fenômeno social do nordeste brasileiro
tornou-se objeto de estudo de cientistas sociais de diversos ramos. E sobre o
capitão Virgulino, em particular, muito ainda há de se ouvir falar. Muitos
mistérios ainda existem para serem decifrados, mistérios esses que desafiam as
pesquisas de centenas de historiadores e das instituições voltadas para esse
tema.
Lendas e fatos
reais se misturam ao sabor dos interesses pessoais, eternizando a figura do
“general do sertão”, ensejando debates apaixonados que adicionam novas obras à
já extensa bibliografia a respeito do assunto.
Evidentemente,
ao se falar desse flagelo regional, a primeira imagem que vem à mente é a
violência extrema daqueles tempos; o banho de sangue proporcionado pelos
facínoras, os estupros, sequestros e assassinatos perpetrados em um ambiente
inóspito onde só sobreviviam os que conheciam muito bem o sertão catingueiro.
Tempo dos
coronéis, dos coiteiros e das volantes, que não hesitavam em torturar até a
morte aqueles que porventura não fornecessem informações sobre o paradeiro dos
meliantes. A terra seca, o gado magro, o sol causticante, a fome e o sofrimento
sertanejo para sobreviver foram a moldura perfeita para o drama da vida real
que se desenrolou nas paragens nordestinas.
Contudo, o
conflito social conhecido como cangaço não começa com Lampião. Os embates
agrários, os valentões que não levavam desaforo para casa, os capangas à
serviço dos poderosos formaram os primeiros bandos de desordeiros.
Desde meados
de 1871 já corria pelos sertões as histórias sobre Jesuíno Brilhante. Considerado
o precursor do cangaço, assombrava as regiões da Paraíba e Rio Grande do Norte,
assaltando os ricos para abastecer os pobres, segundo relatos, durante a grande
seca que devastou todos os estados da região.
Outro chefe de
bando afamado foi o Sinhô Pereira, cuja valentia e arruaças com os
destacamentos policiais fizeram história, espalhada de boca em boca, em terras
pernambucanas. Com o passar dos anos e o desejo de levar uma vida pacata, longe
das correrias e tiroteios, o celerado se afasta da vida bandida e toma destino
ignorado.
É nesse
momento, em data incerta que gira em torno de 1918, que surge a figura lendária
do rei do cangaço. Corrido da polícia após uma rixa com seu vizinho, o
proprietário de terras, Zé Saturnino, substitui Sinhô Pereira como líder e
supera seus predecessores em ferocidade e astúcia.
Foram
aproximadamente 20 anos de selvagerias pelas veredas do sertão, combatendo
quase sempre em condições adversas. Como estratégia, armou uma rede de colaboradores,
os coiteiros, que forneciam ao bando informações sobre os deslocamentos das
volantes, alimentação, munição e lugar seguro para recuperação dos ferimentos
em combate.
Também inovou
em técnicas de guerrilhas na caatinga, percorrendo longas distancias a pé, ou
na friagem da noite, enquanto seus perseguidores descansavam. Criou um modo de
usar o fuzil em posição lateral, o que diminua as possibilidades de serem
atingidos por projéteis inimigos.
A partir de
Virgulino, o contexto social do Nordeste chama a atenção do Brasil e elimina-lo
torna-se uma questão de honra para o Estado brasileiro, o que ocorre naquela
madrugada fria e sanguinolenta de Angicos.
Ali morre o
homem e nasce o mito, que atravessa os tempos cantado em prosa e verso, nos
repentes dos violeiros e nas sextilhas dos cordéis. E nos rastros das cantorias
vem os bonecos de barro vendidos nas feiras, os chapéus de couro enfeitados com
estrelas, as alparcatas de couro cru capazes de enfrentar o rigor das
caatingas, e um sem número de produtos que constroem o legado cultural da saga cangaceira.
A história do
cangaço passa a ser explorada comercialmente e a sua estética torna-se objeto
de estudo de disciplinas acadêmicas. Ao mesmo tempo, a partir de relatos orais
e obras referendadas por pesquisas comprometidas com a verdade, lançou-se um
novo olhar sobre a figura do bandido desalmado que matava pelo prazer de matar
ou por vingança: percebeu-se o ser humano existente atrás do marginal.
Muitos
entraram na vida do crime para não morrerem assassinados por desafetos
poderosos, protegidos pela justiça dos homens. Quando tinham algum tempo livre
para amenidades, dançavam, cantavam, tinham saudades dos parentes, e cultivavam
uma vaidade explícita nas roupas enfeitadas com bordados e moedas. O companheirismo
e lealdade era fundamental para a sobrevivência de todos.
A
religiosidade, marca indelével do povo nordestino, também se fazia presente no
cotidiano daqueles homens embrutecidos pela vida, em uma mistura entre o
sagrado e o profano. Crucifixos e patuás para fechar o corpo ocupavam o mesmo
espaço nos embornais. O respeito aos templos católicos e ao padrinho Padre
Cícero Romão Batista, era lei que não podia ser desrespeitada, sob pena de
morte, e quando podiam, rezavam uma Ave-Maria às 6 horas da noite.
A imaginação
do povo alimentou as lendas, aumentando ou diminuindo um pouco de tudo. O
xaxado foi intitulado como trilha sonora da maratona entre xique-xiques e
mandacarus, a “muié rendera”, os embornais coloridos, as cartucheiras cruzadas
no peito e o punhal afiado tornaram-se símbolos daqueles tempos de miséria e
injustiças.
Na
contemporaneidade, a chamada estética do cangaço em suas variadas vertentes,
alimenta um segmento comercial diversificado que emprega e beneficia milhares
de pessoas de todo o Brasil, gerando renda e desenvolvimento social, não só no
Nordeste brasileiro.
Hoje essa
verdadeira indústria cria pontos turísticos temáticos em cidades que conviveram
de algum modo com o flagelo do cangaço. Piranhas-AL, de onde partiu a volante
com destino a Angicos, possui dezenas de pousadas e um museu, e Canindé do São
Francisco-SE, conta com uma boa estrutura gastronômica e de transporte fluvial,
são bons exemplos disso.
O cangaço e
sua estética expandiu-se pelo mundo através das artes visuais, do cinema e da
televisão, movimentando fortunas com patrocínios e exibição em países da
Europa, América e Ásia. Está presente na obra brilhante de Glauber Rocha, Dias
Gomes, Ariano Suassuna, dos sergipanos Jenner Augusto e Orlando Vieira, entre
tantos outros.
Muitos artistas
foram imortalizados através de atuações magistrais, à exemplo de Nelson Xavier
e Tania Alves que encarnaram brilhantemente o capitão e sua Maria em seriado de
TV, e Marco Nanini, no magnífico Auto da Compadecida.
Nas feiras
nordestinas, uma infinidade de objetos em cerâmica e madeira, representando
cenas e imagens de Lampião e Maria Bonita são vendidos diariamente, bem como
bolsas com alças floridas, no formato de embornais, camisetas, bonés, punhais,
espingardas de madeira e o indefectível chapéu de couro em forma de meia lua
com as estrelas de prata em detalhe.
Já os
violeiros e cordelistas continuam a entoar e escrever sobre as façanhas
lampiônicas, surpreendendo os ouvintes e leitores com suas imaginações férteis,
que mesclam fatos verídicos com outros, improváveis, mas que encantam a todos e
lhes garante bom rendimento.
Enfim, grupos
teatrais e musicais, quadrilhas juninas, escultores, historiadores, curiosos,
escritores reconhecidos e outros, que não passam de embusteiros e
falsificadores da história, muitos abordam o cangaço como fonte de inspiração,
e são recompensados por isso.
A maior
tragédia social que assolou as terras nordestinas ainda frequenta a memória
social do povo, e o seu legado cultural mostra-se perene, o que garante ao seu
principal protagonista, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião,
sobreviver através das artes visuais, da literatura e do cancioneiro popular.
Carlos Braz é
sergipano, natural de Aracaju. É Bacharel em Museologia, formado pela UFS, e
acadêmico de Licenciatura em História também na UFS. É membro da Associação
Sergipana de Imprensa (ASI).
https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/
Adquirido no acervo do pesquisador José João Sousa
http://blogdomendesemendes.blogspot.com