Por Rangel Alves
da Costa*
Dizem que
lugarejo interiorano que se preza guarda na memória cotidiana dos tempos idos
algumas figuras e personagens inesquecíveis, com o justo reconhecimento de que
tudo seria mais difícil sem eles.
A velha
parteira, cujas mãos trouxeram à luz do mundo centenas e até milhares de
cabeçudozinhos, já barrigudinhos e chorões desde sempre. O entregador de leite
– e logicamente também o seu burrico – que acordava antes do madrugar para
recolher a leitaria pelos currais e depois fazer a entrega de porta em porta
pelas ruas da cidade.
Todos os dias,
logo cedinho, lá estavam as mulheres num misto oficioso, divididas que entre a
fofocagem, o olhar a vida e a porta dos outros desde cedinho e a varredura de
ruas. E conversavam tanto enquanto iam varrendo, que muitas vezes esqueciam
completamente o lixo juntado e se punham a fazer rodadas para o aprofundamento
descomunal e pretensioso da vida alheia.
E antes mesmo
que virasse a esquina para entrar na rua já se ouvia a vendedora do piau seco,
com um balde na cabeça e outro na mão, dizendo que aproveitassem porque o rio
estava se negando a mostrar o peixinho e que não havia coisa melhor do que
cuscuz de milho ralado com piau sequinho passando na banha de porco. Com
efeito, nada mais saboroso que aquele peixinho se esfarelando na boca e
apreciado tanto com cuscuz ou feijão de corda como acompanhando uma cachaça da
terra.
Já outra
chegava, mas sempre com maior raridade, anunciando o araçá da estação. Frutinha
dos deuses sertanejos, plantada por anjos e encontrada apenas por alguns
iluminados, de sabor inigualável e com aquele gostinho de quero mais. Muito
difícil de ser encontrada, colhida bem longe, lá por dentro da mataria fechada.
E num instante vendia litro a litro da frutinha pequenina, amarelinha ou
avermelhada, inigualável no sabor e na vontade de querer mais ainda de boca
cheia.
Em épocas que
antecediam as festas, principalmente da padroeira, chegavam os profissionais
cerimonialistas do sertão. Tinham por função embelezar as pessoas, retratá-las,
dar nova feição aos instrumentos festeiros guardados em armários. Então
chegavam os vendedores ambulantes nas suas caminhonetes repletas de tecidos,
roupas prontas e as maiores novidades do mundo. Tudo de tergal, algodão,
fustão, chita. Sucesso tremendo os vestidos de chita, as roupas com babados e
as camisas de volta-ao-mundo.
O velho
fotógrafo, matreiro que só, conhecedor das boas oportunidades para realização
de negócios, sabia que naquelas épocas as pessoas estavam mais propícias a
desejarem ser fotografadas. E mesmo o retrato sendo três por quatro, faziam
isso para ter à mão uma lembrancinha para entregar a um parente que chegaria
para a festança, para um amor ocasional que surgisse, para colocar dentro do
envelope e mandar lá pro sul do país. O instantâneo era batido na máquina sobre
o tripé, com cortinado ao fundo, e logo revelada com sorriso de passarinho.
Após a pose e
o estalido tradicional, o retratista ajeitava sua máquina de tripé, descia os
panos que ficavam à frente da lente, manuseava o rolo de filme por dentro da
caixa de madeira, e pedia para que a pessoa aguardasse um instantinho. E a
mocinha, toda linda e demasiadamente pintada na bochecha e no lábio, saía toda
sorridente no retrato em preto e branco. Já com o homem era diferente. Todo
sério, colocava por cima a enganação de gravata e aparecia quase
irreconhecível. Certa feita um cabra se negou a pagar, assegurando raivoso que
o retratado era seu falecido avô. Foi briga feia.
Contudo, um
dos mais importantes ambulantes que chegava ao lugar era o engraxate. Naquele
tempo não havia menino perambulando pela rua perguntando a um e a outro se
queria dar um brilho no pisante. Não, eis que o engraxate era pessoa adulta, já
conhecida de outras datas, um bom amigo da clientela interiorana. Mas não era
apenas engraxate, pois se assemelhando mais a cirurgião plástico de sapato
velho. Muitas vezes olhava desconsolado para o sapato e perguntava se a pessoa
queria mesmo que operasse um milagre. Em tom de brincadeira, perguntava ao
sapato como tinha passado nos últimos dez anos.
Chegavam-lhe
às mãos sapatos de muitas festas e andanças, todos carcomidos e tronchos, com
cara do que não teria mais serventia. E então o engraxate falava baixinho
consigo mesmo: Deus ainda vai me ajudar a chegar um dia que eu não precise mais
desenterrar defunto. Depois olhava para o dono e dizia: Coisa do destino, mesmo
antes de nascer esse sapato já era seu, pois mais velho que você. E quando o
brilho esperado era alcançado, então passava com uma escovinha ou pincel um
líquido pelos lados do solado. E o pisante parecia que era novinha em folha.
Dois contos de réis, eis o preço.
Hoje
praticamente não existem mais profissionais assim pelas cidades interioranas.
Os sapatos agora estão imprestáveis num canto e o retratinho três por quatro na
moldura junto com outras fotografias ou na carteira do sertanejo apaixonado.
Mas já está amarelado, perdeu a simplicidade do sorriso. Perdeu a alegria
inocente de um dia. E que falta faz essas coisinhas bestas, esses pequenos
gestos, vidinha que era felicidade sem saber.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com