Por Domitila
Andrade, no Vermelho
Conflito mataria 25 mil sertanejos. Reportagem resgata, em Quixeramobim (CE), primeiros passos da vida de Antonio Conselheiro.
Foi promessa e
necessidade. A igreja maior, nunca concluída, abrigaria a multidão de fiéis que
passava de 20 mil, em Belo Monte. A madeira paga e encomendada em Juazeiro da
Bahia não chegou ao destino, e o ajuntamento para ir buscá-la fez correr como
pólvora o falatório: os conselheiristas iriam invadir Juazeiro. Ou nem iam,
mas, até que se explicasse, já havia sido pedida a presença da tropa militar. O
embate em Uauá, num dia 7 de um décimo primeiro mês, há 120 anos, inaugurou a
guerra, a de Canudos, e principiou a resistência sertaneja sobreposta pelo
massacre. Foi o estopim, mas não foi motivo único. O desenrolar das birras de
Igreja, coronelismo e Estado com Antônio Conselheiro, o beato dito louco, já
contava mais de um par de décadas. E as raízes se fincam 700 km distantes do
arraial.
Rebento de
Quixeramobim, no Sertão Central cearense, o peregrino nasceu Antônio Vicente
Mendes Maciel, em 13 de março de 1830 na casa que ainda hoje segue de pé no
Centro da Cidade. Muito se fala que, da terra natal, Antônio só carregou
fracasso e tragédia. Mas, vivendo em Quixeramobim até os 27 anos e no Estado
até os 43, Antônio se construiu como beato ainda pelas veredas do Ceará.
A
religiosidade perene na trajetória tem princípio quando o pai, Vicente Mendes
Maciel, quis o filho ordenado padre. “Por um determinado tempo ele se vocaciona
para isso, estuda latim, tem contato com língua estrangeira”, reconta Bruno
Paulino, escritor e professor que leciona em Quixeramobim disciplina específica
sobre a vida do filho da terra.
Outro ponto
dessa aproximação com a fé se dá com Padre Ibiapina, como detalha Ailton
Brasil, historiador e presidente do Instituto do Patrimônio Histórico, Cultural
e Natural de Quixeramobim (Iphanaq). “Os Macieis (família de Antônio) têm
historicamente um conflito com os Araújos, e Antônio
cresce vendo como a justiça funcionava, sempre a favor dos Araújos, o lado
abastado da peleja. Quem faz alguma justiça pela família dele é o padre
Ibiapina, que foi o primeiro juiz de paz daqui”, aponta. Um novo encontro com a
missão do padre e seu catolicismo de ação se dá mais a frente, no Cariri,
quando Antônio já havia se encontrado com sua sina.
Endividado
depois de tentar seguir com os negócios do pai falecido, o
recém-casado Antônio deixa Quixeramobim. O fracasso nos negócios já
mostrava, para Bruno, sinal do humanista que Antônio era. “Quixeramobim o
formou intelectualmente e foi também a cidade que o expulsou. A história
oficial tenta colocar como um fracasso. Eu acredito que isso mostrava que ele
estava destinado a voos mais altos. Conselheiro foi professor, rábula (advogado
prático), arquiteto, líder, um pacifista, um homem de múltiplas facetas que
ensinava o conviver com o outro e com a terra”.
A pecha que
recai sobre o homem, na tentativa de diminuir sua história, era a de corno. A
narrativa imprecisa da traição de Brasilina, a esposa, coloca Antônio em
desespero. Era dali que partia o segundo infortúnio, a loucura, a ele imputada
como que para enfraquecer a obstinação.“Essas pechas servem para esvaziar o ideal
que ele representava”, afirma o psicanalista Osvaldo Costa Martins, um dos
fundadores, na Quixeramobim de 1990, do Movimento Antônio Conselheiro.
Apontando a loucura como “categoria social, que serve a todo tipo de
estigmatização”, Osvaldo, analisou os manuscritos deixados pelo Conselheiro, e
pondera que não tem elementos para diagnosticá-lo. “Ele era tido pela
psiquiatria da época como monomaníaco religioso. Mas no texto do Conselheiro
não tem elementos que apontam para um delírio, uma paranoia. É um texto muito
bem construído, bem argumentado”, acredita.
Apartado da
esposa, outra mulher teve, talvez, mãos mais fortes na moldura do beato de
vestes azuis, profusão de pelos e pés descalços. Longe de Brasilina e dos dois
filhos cujos destinos se perderam, Antônio se enlaça, em Santa Quitéria, com
uma mística e tem com ela Joaquim Aprígio, o rebento que a luz da história
alumiou. Joana Imaginária talhava santos. Santo também foi alcunha que seguiu
Antônio.
Legado
Pedir no
Centro da Cidade informações de onde fica a casa onde nasceu Antônio
Conselheiro é receber informações imprecisas. Além da casa, o bairro abriga o
Instituto Antônio Conselheiro, que guarda informações do peregrino e carece de
cuidados. Ao lado dele, o único ponto comercial que carrega o nome do
andarilho. Para quem leva tenta sustentar viva a memória do beato, esses são
sinais de que os rótulos nele fixados ainda estão presentes e os ideais
defendidos por Antônio seguem perigosos até hoje.
A família
Maciel traz um orgulho quase tímido do parente distante. O pastor Roberto
Maciel, da quarta geração posterior a Antônio, se ressente da falta histórica
de apoio à família. Ele mesmo tem se inteirado da trajetória de Antônio pelas
heranças do tio Marcílio Maciel. Falecido em 2015, Marcílio sabia de cor os
caminhos do Conselheiro e queria que Antônio não fosse esquecido.
“Ele nos
ensinou que a gente tinha o dever de repassar os ideais de Antônio. Quando
morreu me deixou a missão de ir conhecer Canudos. Eu me apaixonei, foi uma das
maiores emoções da minha vida”.
Conselheiro só
passou a ser tema de pesquisa na década de 90, com o Movimento Antônio
Conselheiro. Hoje, Quixeramobim tem o evento Conselheiro Vivo, que envolve
escolas e movimentos sociais e rememora a vida do beato, no dia 13 de março,
feriado na Cidade. Uma procissão também vai a Canudos anualmente em outubro.
Para Neto Camorim, historiador que todo ano viaja a Canudos e perfaz os
caminhos do Conselheiro na Bahia, Antônio deixa como legado “a resistência, a
determinação, a teimosia”. “Ele era à frente do seu tempo e dá uma lição para
as políticas públicas de que uma sociedade comunitária, num sertão seco, é
viável”, diz. Bruno Paulino complementa: “Conselheiro ensina que o sertão é
possível”.
Signo de
tragédia
A peleja de
Araújos e Macieis (esses acusados de roubo de cabeças de rês por aqueles), com
baixas de ambos os lados; e a morte da mãe, Maria Joaquina, quando Antônio só
contava quatro anos, principiam a vida marcada pelo signo da tragédia. Antônio
cresce sendo maltratado pela madrasta; endivida-se ao assumir os negócios do
pai; é traído por Brasilina; e já na Bahia é preso e trazido para o Ceará,
acusado injustamente dos assassinatos de mãe e esposa. No percurso, Antônio
sofre, passivamente, uma série de torturas.
Uma casa
amarela toda azul
A casa de
cinco portas, preparada para um comércio, construída na rua principal de Campo
Maior, como era chamada a vila de Quixeramobim, segue de pé até hoje. Erguida
pelo pai de Antônio Conselheiro, Vicente Mendes Maciel, no século XIX, a casa
hoje amarela e vermelha já abrigou a família do músico e arquiteto Fausto Nilo.
É sobre ela a música “Casa Toda Azul”, dizeres escritos na fachada, quando a
casa de paredes largas e pé direito alto foi, além de residência, loja de
tecido do pai do arquiteto, também de nome Fausto Nilo. O arquiteto conta que,
depois da família Maciel, a casa passou para posse do coronel João Paulino, que
a vendeu para Luiz Pereira, e depois para seu avô Benjamin Frutuoso. Hoje,
vendida ao Governo do Estado, a casa espera restauro e a conclusão do
tombamento.
Cronologia da
Guerra de Canudos
1893
Neste ano,
conselheiristas, no município de Tucano, enfrentaram e venceram um destacamento
da Polícia Baiana. Este foi o primeiro conflito armado do grupo. O motivo foi a
decretação de impostos. Nos primeiros dias de junho, Conselheiro e seus
acompanhantes alcançaram o povoado de Canudos que tomou a denominação de Belo
Monte. Começava uma nova era na vida sertaneja e nacional.
1896
Antônio
Conselheiro encomendou madeira para a capela em construção com comerciantes
juazeirenses. Sem a entrega, espalhou-se em Juazeiro, que os jagunços iriam
buscar o material. Temendo uma invasão, preparou-se uma tropa de linha de 120
homens, comandada pelo tenente Pires Ferreira, que resolveu marchar contra
Canudos e foi surpreendido, no povoado de Uauá, pela jagunçada. Estava
iniciada, em 7 de novembro, a Guerra de Canudos.
1897
A expedição de
Febrônio de Brito, a segunda, sofreu violento ataque dos jagunços e precisou
recuar, no lugar conhecido por Taboleirinhos de Canudos.
O coronel Antônio Moreira
César foi nomeado comandante da terceira expedição, formada por mais de 1,2 mil
homens. A espetacular expedição foi desbaratada em março, vitimando seu famoso
chefe, o Corta-Cabeças. A terceira expedição saiu de Canudos derrotada e deixou
as armas necessárias à resistência.
A quarta
expedição, com mais de 10 mil homens, foi dividida em duas colunas, partindo
uma de Monte Santo e a outra de Aracaju na direção do Belo Monte, que resistiu
durante alguns meses causando grandes perdas aos militares. Os ataques
iniciados em junho somente em outubro dariam a vitória às armas republicanas.
O Conselheiro
morreu em 22 de setembro, de disenteria, estilhaços de granada ou encantamento.
O povoado foi dominado em 5 de outubro, com a queima do arraial e a dizimação
de grande parte dos mais de 20 mil moradores.
O cadáver de
Antônio Conselheiro, sepultado na casa em que morava, foi encontrado em 6 de
outubro. Sua cabeça foi levada para Salvador para ser estudada por uma mestre
da Medicina Legal, Nina Rodrigues, que concluiu se tratar de cérebro normal.
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