Autora: Ana
Maria Lisbôa Mortari
História publicada em 02/06/2008
Quando
pequena, eu caminhava de mãos dadas com minha mãe a caminho de uma conhecida
tricoteira do bairro de Santa Cecília, chamada Dona Aretusa, e costumávamos
passar em frente de um castelo, igualzinho àqueles que eu via nos contos de
fada.
Na época, muitas vezes parávamos na frente para observar melhor, pois eu ficava
encantada com aquela construção, apesar de seu aspecto tétrico, num misto de
mágico e encantador que provocava arrepios aos que por ali passavam.
Isso não me impedia de querer conhecer a sua história, de entrar e sentir o
clima interior que, para mim, se mesclava às histórias de castelos e fadas que
minha avó sempre me contava.
Foi assim que certo dia minha curiosidade despertou para aquele castelo, que
sempre esteve fechado e onde nunca se via ninguém.
Foi nesse dia que mamãe me contou que aquele lindo castelo fora outrora o
palácio onde morou uma rica e tradicional família de conceituados milionários
da cidade. Porém, uma fatalidade o havia transformado em palco de um dos crimes
mais famosos de São Paulo, na década de 1930.
A mansão foi construída entre 1912 e 1917, por um arquiteto francês, trazido
diretamente de Paris, para executar essa inusitada réplica de um castelo
medieval francês, com seus vitrais pintados por renomados pintores da época e
seus tapetes todos indianos.
Uma escadaria de mármore importado subia para o primeiro andar da mansão.
Pelas características de sua construção, tornou-se imediatamente conhecida como
o Castelinho da Rua Apa, situado no nº. 236, esquina com Avenida São João,
bairro de Santa Cecília, em São Paulo.
Ali morava Dona Maria Cândida Guimarães Reis, de 73 anos – Dona Candinha -
dedicada à prática religiosa e viúva há dois meses do médico Vicente César dos
Reis e seus dois filhos: Armando César dos Reis, um tipo bastante discreto e
pacato, de 43 anos e Álvaro Reis desportista, de 45 anos, sempre cercado de
belas mulheres, playboy excêntrico, arrojado e boêmio, com manias de patinar
pela Avenida São João inteira e de fazer malabarismos em cima de uma
motocicleta, a primeira que apareceu na Paulicéia, além de viver se exibindo
para as mulheres da alta sociedade local.
Apesar de ambos haverem se formado advogados no mesmo dia pela Faculdade de
Direito do Largo São Francisco, eram tipos completamente diferentes como
normalmente acontece com irmãos.
Os jantares e as festas concorridíssimas levavam a burguesia paulistana todas
as semanas ao castelo, pois estar nos badalados eventos do castelo era o que
havia de mais chique na época, o que logo o transformou num marco da vida e da
paisagem paulistana.
A família também era proprietária do Cine Teatro Broadway, na Avenida São João,
566 - em frente ao Cine Ritz - inaugurado em 1934 com uma grande cúpula de
cristal, onde em 1935 foi lançada a grande novidade do ar condicionado em São
Paulo.
A princípio ali apresentavam filmes da UFA, depois se especializaram em
produções latino-americanas, principalmente os dramalhões mexicanos, alguns
baseados em boleros do famoso Augustin Lara: Perdida, Hipócrita, Perversa, além
de apresentações de astros e estrelas da época, nos chamados “Coquetéis
Broadway”.
Um dia, a grande cúpula de cristal rachou, provocando um grande ruído, e
assustando os espectadores, talvez também pela mudança de temperatura provocada
pelo ar condicionado.
Pelas suas telas, rebolaram as rumbeiras Maria Antonieta Pons e sua tenaz
rival, Ninon Sevilha, que esteve no 1º Festival Internacional de São Paulo em
1954, além do mexicano Tin-Tan, que tentou competir certa época com o cômico
Cantinflas, mas perdeu parada.
Álvaro Reis - http://estacaoterror.blogspot.com.br
Ao retornar de uma viagem à Europa, Álvaro estava entusiasmado, com novos e
arriscados projetos na cabeça: alimentava ambições grandiosas, de transformar o
imóvel que estava arrendado para o luxuoso Cine Broadway na Avenida São João,
566, num grande centro de diversões, com rinque de patinação no gelo, que seria
o primeiro do Brasil, coisa que Armando, por pensar mais modestamente, era
contra, pois já havia um rinque de patinação na cidade, além de sua mãe
negar-se a dar o dinheiro para o empreendimento. Aí começaram os
desentendimentos, até que um dia, numa discussão mais acesa, os dois chegaram
às vias de fato, apelando para as armas. A mãe correu para tentar separá-los,
mas, os três morreram.
Como? Escolha as versões apresentadas:
Na noite de 12 de maio de 1937, dentro do castelinho até hoje existente, a
cozinheira da família Elza Lengfelder, que morava no anexo da mansão, ao ouvir
tiros no interior do castelinho, saiu às ruas para chamar um policial. Ao
retornarem à casa, o policial viu os três corpos estendidos entre o escritório
e a sala: dos irmãos Armando e Álvaro, e de sua mãe, Dona Candinha.
Por tratar-se de gente muito importante na cidade, no dia seguinte "o
crime da Rua Apa" ganhou as manchetes dos jornais e a polícia encontraria
aí uma primeira pista para a sua versão do crime: os desentendimentos entre os
irmãos levara Álvaro a matar Armando e a mãe de ambos para suicidar-se em
seguida.
Perto dos corpos foi encontrada uma pistola Mauser, calibre 9 mm, de fabricação
alemã, registrada em nome de Álvaro, o que veio reforçar a hipótese da polícia.
A circunstância que atrapalhava esta tese é que Álvaro fora morto com dois
tiros, fato pouco comum no caso de suicídio e, em investigações posteriores,
foram descobertas promissórias assinadas por Álvaro, que levaram a polícia a
dar por concluído o caso, apontando-o definitivamente como o autor dos
disparos.
Amigos de Álvaro, no intuito de preservar sua imagem, encarregaram-se de uma
versão mais amena: que ele teria empunhado a arma, talvez sem mesmo pretender
usá-la contra
Armando, porém a mãe apavorada, quando tentava separar os filhos,
fizera-o acionar o gatilho, provocando também sua própria morte. Diante dessa
tragédia, Álvaro não teria cogitado outra alternativa senão o suicídio.
O caso de glamour e sangue da aristocracia paulistana rendeu manchetes durante
vários dias nos principais jornais de São Paulo:
- Quem matou quem na família Guimarães dos Reis? - o mistério eletrizava a
população da cidade.
Segundo a versão da polícia, o boêmio e aventureiro Álvaro, com idéia de
transformar o Cine Broadway, de propriedade da família, em rinque de patinação,
discutiu com sua mãe, que não concordava em dar o dinheiro para o caro
empreendimento, e com seu irmão, Armando, que também era contra, o que gerou um
forte desentendimento... Um dos irmãos sacou uma arma e disparou contra o
outro. A mãe, ao se dar conta do perigo, correu para se interpor entre os dois
e também foi atingida. O atirador, desesperado, resolveu dar fim à própria
vida.
Uma das contradições é que disseram que Dona Candinha a princípio havia sido
assassinada por dois tiros, e depois falaram ser três, sendo um pelas costas e
dois deles de calibres diferentes da arma Parabellum, não mais de uma Mauser,
apresentada no crime, o que incorreria numa quarta pessoa e talvez num tríplice
assassinato. Porém, nunca foram encontradas nem a segunda arma nem a quarta
pessoa.
O Dr. Costa Júnior, advogado que estudou profundamente o caso, acha que Álvaro
matou a mãe e o irmão a tiros, para suicidar-se em seguida.
A polícia nunca descobriu qual dos irmãos seria o assassino e a população nunca
se convenceu da história dos policiais.
A polícia deu por encerrado o inquérito considerando Álvaro o culpado em
virtude de se tratar de um tipo aventureiro, embora os legistas considerassem
Armando, por haverem encontrado vestígios de pólvora em suas mãos, o que
significaria que ele tinha manuseado a arma.
http://santaceciliasantainsone.blogspot.com.br
Tempos depois o governo reivindicou a herança pela falta de herdeiros, de
acordo com a nova legislação do ditador Getulio Vargas, que não reconhecia
sobrinhos como herdeiros, apesar de atualmente apresentarem-se: Doreen Carré,
Leda Kiehl e Jorge de Castro Kiehl... Por ser herança vacante, o imóvel passou
a ser propriedade da União, assim como o Cine Broadway.
O Cine Broadway foi demolido e hoje existe um prédio de apartamentos de
militares no local.
Porém, na época em que minha mãe me contou o caso, D. Maria Cândida Cunha
Bueno, a Baby, uma mulher liberal, culta, muito a frente de sua época, namorada
apaixonada do Álvaro desde seus tempos de juventude ainda vivia e ia religiosamente
nos dias 12 de cada mês ao cemitério da Consolação para homenagear a memória do
seu namorado, autor do crime para a polícia, e vítima para ela, de um crime
batizado pelos jornais de "O crime do castelinho da Rua Apa".
Pouco tempo antes de sua morte, no dia 23 de julho de 1988, ainda se via a
velha senhora Maria Cândida Cunha Bueno - a Baby dos seus tempos de jovem -
caminhar até o cemitério para homenagear a memória do seu querido, durante
grande parte dos seus 97 anos.
Ninguém sabe o que realmente aconteceu naquela noite, pois a polícia técnica e
os legistas de São Paulo apresentaram laudos contraditórios.
Depois da tragédia, desencadeou-se uma série de contos e de lendas de
assombrações, inclusive dos vizinhos, afirmando terem começado a ver vultos na
residência da família Reis, ouvirem gemidos, gargalhadas, choros e gritos de
horror, objetos caindo, móveis mudando de lugar, apavorantes rangidos... Outras
alegam passar mal ao entrar no local e desde o crime, dizem que ninguém
conseguiu morar mais ali, pois seu endereço ficou ligado ao acontecimento
trágico do passado, como cenário de um crime chocante até hoje não esclarecido.
Essas histórias colocaram o castelinho no “Circuito do outro mundo” de
"São Paulo além dos túmulos", juntamente com outros locais
considerados mal assombrados.
Mas para dona Baby, nenhuma das duas hipóteses correspondia aos fatos. Ela
tinha certeza que Armando era o verdadeiro vilão da história e morreu
defendendo a inocência de Álvaro.
Levada para uma casa de repouso, devido a uma fratura na bacia, ocasionada por
queda, ela pediu a um parente que continuasse a cuidar do túmulo de Álvaro,
após a sua morte.
Ela faleceu aos 97 anos, sem esquecer do seu grande amor da juventude, nem
descuidar de seu túmulo, levando mensalmente flores, durante 51 anos.
Eu passei por lá muitas vezes durante todos esses anos e nunca ouvi e nem vi
nada, apenas a grande tristeza pela deterioração de um prédio histórico da
nossa cidade.
As agruras do Castelinho começaram com a construção do Minhocão (Elevado Costa
e Silva) em 1971, que levou à desocupação do imóvel por seus inquilinos e o
governo, seu proprietário, se desinteressou completamente pelo imóvel,
levando-o à rápida e total deterioração em que se encontra.
Lamentavelmente inúmeras iniciativas para tentar salvar o Castelinho até agora
não tiveram sucesso. Existe até abaixo-assinado para tentar salva-lo no site:
“http://www.PetitionOnline.com/castelin/petition.html” com o objetivo de evitar
a destruição total, como aconteceu com outros edifícios importantes em São
Paulo.
Hoje, nas ruínas do Castelinho funciona a Associação de Mães do Brasil,
entidade que tenta localizar crianças desaparecidas, mas que infelizmente não
tem condições financeiras para a sua reforma. Uma época, chegaram a aventar de
ali fazerem o Museu do Crime.
Como o Castelinho é um patrimônio histórico da Cidade de São Paulo, acho que os
governantes deveriam tomar uma providência para fazer seu tombamento e
restauração. É a história de nossa cidade!
e-mail da autora: anamariamortari@bol.com.br
http://www.saopaulominhacidade.com.br/list.asp?ID=1794
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