Por Eleuda
Carvalho – editoria do Vida & Arte
Após décadas
de sedição e rebeldia, com armas defasadas e perseguido mais por cobiçosos de
sua riqueza que pelos crimes que cometeu, capitão Virgolino é morto na
madrugada de 28 de julho de 1938, pela volante comandada por João Bezerra.
Maria Bonita, o capitão e outros nove são metralhados e suas cabeças cortadas
viraram atração de feira. O sertão tinha mudado e o tempo do cangaço nômade
passou. Mas deixou rastros.
Uma furna de onça,
lajedo sem saída onde chispava a malacacheta entre touceiras de facheiro.
Esconderijo de lacraus e outros bichos de peçonha que rastejam. Há dois dias
ali fizera pouso o grupo de cangaceiros que acompanhava Lampião. Um pouco
abaixo da abertura da grota, Zé Sereno e os seus armaram acampamento, para
receber as ordens do compadre chefe. O lugarejo pertencia à Fazenda Angico,
situada com ferro e sinal na margem sergipana do rio São Francisco poucas
léguas adiante, do lado alagoano, o Diabo Louro Corisco e seu povo aguardavam
condução para ir ter com o líder, que combinara encontro para sexta-feira, dia
29 de julho. Seria o momento de abandonar o cangaço?
O presidente
Getúlio Vargas acenava com anistia aos que depusessem armas, mas as volantes do
tenente Bezerra festejavam ouro e grudavam no encalço, tramando traição. Na
madrugada de quinta, o ofício de Nossa Senhora foi secundado por uma rajada de
balas, Lampião nem teve tempo de fazer pontaria, caindo de cara na poeira com
um buraco na goela, fatal.
Vinte anos de
reinado, Virgolino desafiando o governo, coroando-se senhor do sertão. Esse
sertão de pedra sangrada, cenário dos caçadores de índios nos primeiros tempos,
feudo de clãs sanguinários e vingativo para quem o mundo era seu curral,
caatinga áspera onde os mais duros aprendiam a beber dos cipós, a devorar
espinhos.
Nos anos de
formação, o jovem Ferreira caolho andou sob as ordens do Sinhô Pereira, chefe
guerreiro dos cariris velhos, que o adestrou na tática eficiente do ataque
súbito e da retirada ligeira, por dentro do velame garranchento que era preciso
conhecer como a própria mão. Nem os valentões solitários do passado, tão pouco
os posteriores anti-heróis da modernidade, acoitados na favela: Lampião foi o
rito de passagem, enredado entre o futuro e o passado, no olho do furacão.
Louco por
cinema, o sheik interpretado por Rodolfo Valentino numa fita de hollywood
inspirou as cartucheiras enfeitadas de moedas, encastoada de metais, arte mourisca.
Admirador de guerreiros antepassados, quebrou o chapéu de couro ao modo de
Napoleão Bonaparte, imperador da Europa. E nele incrustou seis sinais de Salomão,
insígnias do catolicismo caboclo ao qual era devotado. Gostava de jazz e
inventou o xaxado, combinação do chiado da chinela com a ponta do rifle riscada
no chão, num improviso ligeiro como repente. Um dia, no deserto arenoso do Raso
da Catarina, permitiu a estada do libanês Benjamim Abraão, que se apresentou
com dois salvo-condutos: Uma carta do Padre Cícero Romano e uma engenhoca de
filmar.
Informação: (observar
que nesse período padre Cícero já repousava em seu túmulo desde 1934, mas
talvez a carta tenha sido feita muito antes do padre morrer, já que o futuro
cineasta não tinha condições de procurar Lampião, vez que estava cuidando da
fragilidade do padre. Esta é a minha opinião). E o bando fez pose, simulou
combates, vestiu a armadura encourada e os apetrechos caprichosos para fixar-se
no acetato.
Nos primeiros tempos,
com apoio dos barões catingueiros, a vida parecia um filme. Eles centauros,
homens e cavalos cheirando a madeira do oriente, Maria Déa dirigindo o exotismo
futurista de um ford bigode em estrada carroçal. Em preto e branco, ver-se a
baiana baixinha e de quadris largos, que usava uma pistola Mauser de 11 tiros e
botas de couro de bode sobre meias de seda, a quem depois o povo apelidou
Bonita. Naquela madrugada de Angico, contam, estava na boca da tenda a pentear
os cabelos quando uma bala certeira destruiu-lhe o abdômen. Foi degolada ainda
viva e usava calcinhas vermelhas, segundo a curiosidade satisfeita dos seus
matadores. Enedina teve o crânio esfacelado, bocados atingindo a menina Sila
que fugia um pouco adiante.
Zé Sereno
consegue escapar com alguns do seu grupo, reunindo-os depois para contabilizar
ferimentos. Há algum tempo, muitos sonhavam com as terras férteis do Jalapão,
nas lonjuras de |Goiás, onde pudessem
viver outra vida, com outra identidade menos afamadas.
A mulher de Zé
Sereno, Sila, com apenas 15 anos, seguiu o companheiro na fuga que terminou na
cadeia. Muitos anos depois, outro que escapou, Candeeiro, era um pacato vigia
de escola primária.
Sila viúva,
apurava o o talento para a costura aprendido no mato, formando-se num curso
técnico na cidade de São Paulo. Onde criou os filhos e escreveu suas memórias.
Corisco e Dadá
não se entregaram. Penaram mais de dois anos de fuga desenfreada, caçados como
feras. Sérgia da Silva Chagas brigava como um homem, diziam os homens como
elogio. Cristino Gomes da Silva era terrível como o raio que o batizou com fogo.
Zé Rufino e seu bando de soldados mataram Corisco e capturaram Dadá, uma perna destroçada
por metralha. Ela sobreviveu.
Fonte: Jornal O Povo - Fortaleza-CE
Data: Domingo - 26 de julho de 1998
Digitado e ilustrado por José Mendes Pereira
Desculpem-me alguma falha de digitação, pois tenho sério problema na visão.
Este jornal foi presenteado a mim pelo pesquisador do cangaço e membro da SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço Francisco das Chagas do Nascimento (Chagas Nascimento)
http://blogdomendesemendes.blogspot.com