Por William White
Um projeto da
envergadura e abrangência deste catálogo sobre Facas Brasileiras precisa
tratar, mesmo que em rápidas palavras, de um movimento típico do Nordeste
brasileiro que fez uso permanente e intensivo de diversos tipos de armas
brancas: o cangaço. Cangaço era o agrupamento de indivíduos em bandos de
variados tamanhos, desde 3 ou 4 a mais de uma centena, em geral jovens oriundos
da zona rural que se juntavam para cometer crimes diversos, sempre
motivados por três objetivos: vingar-se de alguém, proteger-se de alguma
vingança ou simplesmente ter uma “profissão” rendosa.
Não se sabe
exatamente com quem, onde ou quando esse tipo de atividade teve início.
Entretanto, se a localizarmos nos Estados de Pernambuco e Bahia nas primeiras
décadas do século 19 e, mais precisamente, de 1850 em diante, certamente
estaremos muito próximos da realidade. Importante para os objetivos desta
publicação é saber que seu apogeu ocorreu nas décadas de 1920 e 1930 do século
XX, período que coincidiu com o domínio absoluto do mais terrível
dos chefes cangaceiros: Virgulino Ferreira da Silva que, sob o vulgo de
Lampião, aterrorizou sete estados do Nordeste brasileiro.
Lampião nasceu
a 4 de junho de 1898 no Sítio Passagem das Pedras, município de Vila Bela,
atual Serra Talhada, no Estado de Pernambuco. Desde muito cedo mostrou-se dono
de inteligência anormalmente desenvolvida para os padrões da classe social a
que pertencia. Era almocreve por profissão, além de hábil produtor de
arreios e roupas de couro, sanfoneiro, vaqueiro de primeira ordem, amansador de
burros e sabia ler e escrever regularmente. Por motivos ainda hoje
controversos, tornou-se cangaceiro com cerca de 16 anos juntamente com seus
irmãos Antônio, Livino e, posteriormente, Ezequiel. Os irmãos Ferreira acabaram
por unir forças com Sinhô Pereira, chefe do até então principal grupo de
cangaço em atividade na área e que, ao abandonar a vida de bandoleiro por volta
de junho de 1922, deixa seu bando sob o comando de Lampião que à época contava apenas
24 anos. Foi agraciado com a falsa patente de Capitão em 1926 por pressão de
personalidades do Juazeiro do Norte (CE), entre eles o Deputado Federal Floro
Bartolomeu e o próprio Padre Cícero Romão Batista com a intenção de que
combatesse a Coluna Prestes, de passagem pela região. Morreu na Grota de
Angico, município de Porto da Folha (SE), atualmente pertencente ao município
de Poço Redondo, em 28 de julho de 1938, aos 40 anos de idade e após 22 anos de
atividade cangaceira ininterrupta.
Os bandos do
cangaço lampiônico, se assim podemos chamar o período áureo desta atividade,
eram prioritariamente compostos por jovens oriundos de algum latifúndio
pertencente a um coronel-de-barranco, tremenda força política de então nas
caatingas, onde exerciam a função de vaqueiros ou simples moradores e
parceiros. Assim sendo, e por força das próprias atividades que desempenhavam,
estes indivíduos desde a mais tenra idade se familiarizavam com o sangue de
animais que abatiam e com as lâminas com que desempenhavam esta função. Era
tudo muito mecânico, normal e rotineiro. A intimidade que tinham com facas e a
indiferença pelo sangue e a morte eram fatores importantes quando entravam para
um bando cangaceiro. Além deste aspecto, os jovens delinqüentes eram vistos com
extrema admiração pelas moças de vilas e fazendas, pois que andavam sempre
vestidos à sua maneira vistosa característica, endinheirados e exalavam poder
já que muito raramente encontravam resistência em suas andanças e ataques.
Parece inclusive ter ocorrido uma certa reordenação na hierarquia do poder
sertanejo, já que de certa forma o coronel latifundiário também foi
cerceado em seu mandonismo absoluto pelo rifle insolente do cangaceiro, de
maneira que a arma substituía a posse da terra na estrutura social da caatinga.
O cangaço usava do seqüestro a dinheiro, do fogo em pastos, casas e currais, da
matança indiscriminada de rebanhos e de uma série de outras ameaças largamente
cumpridas para obter recursos e manifestar seu efetivo poder não apenas em
relação ao coronel, mas à população sertaneja em geral.
Alguns autores
têm se ocupado em pesquisar a estética do cangaço apesar da escassa fonte de
informações existente. Muita divergência surge desses trabalhos, mas há
unanimidade quando se referem à vaidade do cangaceiro. E por muitos aspectos. A
citada intimidade do homem em geral e do cangaceiro em particular com as armas
brancas é histórica, ficando até a dúvida de que se seria mesmo o cão o melhor
amigo do homem do cangaço. A estética de sua indumentária lembra algo de mouro
trazido pelos portugueses durante o período colonial e particularizada ao
sertão. A marca registrada dessa composição, não há dúvida, é o grande chapéu
de couro com a aba rebatida na frente e atrás, fortemente adornado com medalhas
de santos, moedas de prata e ouro, signos de Salomão e outros penduricalhos.
Apesar de haver um padrão relativamente bem definido de suas vestimentas e
adornos, cada indivíduo do grupo tinha o direito, e o exercia com capricho, de
manifestar sua vaidade como melhor entendesse. Isso ia do tipo de meia que usavam
à aplicação de enfeites nas alças dos mosquetões e fuzis, ao número e
tipo de anéis que adornavam suas mãos, muitas vezes um em cada dedo - sendo
alguns destes premiados com dois -, o comprimento dos cabelos e o trato de
brilhantina e perfume que recebiam, os óculos de grau ou de sol, a luneta
e uma infinidade de outros quesitos com particular atenção dedicada às facas,
facões e punhais.
Quanto à
importância de cada lâmina carregada pelo cangaceiro pode ser dito que o facão
era utilizado nas tarefas mais duras como o corte de galhos de árvores para
montagem de suas barracas, o esquartejamento de bovinos e outros. No geral não
chamavam muito a atenção com a honrosa exceção de um que Lampião portava e
possuía cabo de prata lavrada com muito esmero e apresentando em sua porção
final uma cabeça de águia esculpida. Mas por serem de feitio comum e carregados
por poucos elementos do cangaço, eram praticamente escondidos sob a axila de
seu proprietário, de forma que permaneciam muito pouco visíveis.
Ressalte-se aqui que mesmo feiosos e sem grande prestígio, tais facões
acabaram, por ironia do destino, participando do ato final da epopéia cangaceira
ao serem utilizados para decapitar os onze cangaceiros mortos na grota
sergipana naquela garoenta madrugada do inverno de 1938. Dois anos antes, a 7
de junho de 1936, o cangaceiro José Baiano, violento chefe de um subgrupo, foi
morto à traição juntamente com outros 3 companheiros e teve sua cabeça
“separada do pescoço por sucessivos golpes de facão”, conforme atesta a
Certidão de Exumação emitida pela Secretaria de Segurança Pública de Sergipe.
Rasparam
minha cabeça
Como quem raspa um leitão
Botaram água fervendo
Caía pêlo no chão
Eu berrava como um bode
Minha barba e meu bigode
Raparam com
um facão
|
Em vez da
noiva enxerguei
De cartucheira na mão
Um grupo de cangaceiros
E o bandido Lampião
Pensei que estava sonhando
Quando acordei fui levando
|
(...)
|
A faca talvez
tenha sido a lâmina de maior utilidade pois servia a muitos fins, como
matar, esfolar e retalhar pequenas criações, castrar animais e, vez por outra,
homens, cortar couro e tecidos para a produção de arreios e roupas, retirar
balas alojadas em seus corpos, descascar frutas, cortar queijo e o que mais
fosse necessário. Estas facas apresentavam características muito diversas umas
das outras e algumas eram verdadeiras obras de arte muitíssimo trabalhadas.
Apresentavam lâminas de cerca de 20 a 30 cm com cabos caprichosamente
executados por alguns cuteleiros que se tornaram famosos, casos da família
Caroca na Paraíba e da família Pereira no Cariri cearense. Eram cabos compostos
por pequenos discos de materiais diversos como chifre bovino, caprino ou ovino,
madeira, prata, cobre, níquel, alpaca, marfim, osso e eventualmente até ouro.
No entanto, o uso deste metal estava longe de ser a regra.
Comumente, para o uso cotidiano, as facas eram lâminas simples e com cabo de
madeira ordinária, especialmente com o advento da industrialização por volta de
1930, fato que colaborou bastante para a extinção da cutelaria artística como
era até então conhecida. Era mais importante que seu aço pegasse bom fio do que
tivesse alto senso estético. Estas também pouco apareciam na indumentária
do cangaço. Quase sempre estavam guardadas no cós da calça, nas costas, ou na
mesma posição do facão, ou seja, sob as axilas.
Porque na
ponta da faca
Uma barriga
não erro
E um ladrão
que me rouba
Até o cabo
eu enterro
Pule o que
for mais valente
Para eu
corrê-lo no ferro²
|
Dei uma
volta na rua
Encontrei um
camarada
Com uma faca
de ponta
Feita de aço
de espada
No momento
que eu cheguei
Sem desejar
encontrei
Um princípio de zoada³
(...)
|
Finalmente, e
com notável destaque, havia o punhal. Utilizado apenas como arma perfurante,
posto não possuir fio em nenhum dos lados, mas apenas a ponta extremamente
aguçada própria para sangrar animais em geral, inclusive homens, como atestam
inúmeros registros de diversos autores. Tratamento especial e diferenciado
sempre foi dedicado aos punhais, estes sim, motivo de orgulho e vaidade de seus
proprietários. Eram sempre carregados de forma ostensiva, transversalmente ao
abdome que lhes servia de perfeita moldura, e sustentados pelo cinturão de
balas. A vaidade de cada um se manifestava neles de diversas maneiras:
pelo material com que era produzida sua lâmina, a composição de sua empunhadura
e sua bainha, o cuteleiro que o confeccionou, seu comprimento e a habilidade
que cada um possuía ao manejá-lo. Material para as lâminas era quase sempre
importado: espadas quebradas, ferramentas agrícolas e especialmente pedaços de
trilhos de ferrovias e do sistema de vagonetes utilizados na indústria
açucareira. A forja e montagem desses punhais eram feitas em locais denominados
tendas, que nada mais eram que rústicas cutelarias bastante disseminadas pelo
Nordeste, em especial nos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e
Ceará, onde a movimentação de cangaceiros era intensa. A estética e
características gerais de forma, tipo de cabo, comprimento de lâmina e material
e modelo da bainha era função da criatividade do cuteleiro e dos recursos de
quem encomendava o produto. De maneira geral, o punhal tinha forma
bastante esguia, longa e fina, arrematado pela empunhadura de estilo muito
semelhante ao utilizado pelas facas artesanais acima descritas. Mesmos
materiais, mesmas formas. As bainhas também eram caprichosamente elaboradas,
quase sempre por terceiros, podendo ser de couro ou metal. Quando metálicas,
por vezes eram forradas de couro ou veludo e podiam possuir uma ou duas
articulações, ao logo de seu comprimento, como delicadas dobradiças, de forma a
facilitar o andar e o montar de quem as usasse.
Prestando
mais atenção
Eu vi um
grande punhal
Fabricado
com três quinas
De um
tamanho desigual
O cabo de
ouro e prata
Nunca se viu
então igual⁴
(...)
|
Conduzia o
seu punhal
Passado na
cartucheira
Com setenta
e três centímetros
Respeito da
cabroeira
Moedas de
prata e ouro
Lhe
enfeitavam a bandoleira
(...)
|
No cangaço
parece não ter havido uma relação direta entre o tipo de punhal e faca
utilizados e a hierarquia interna do grupo. Tudo era exatamente uma
questão de gosto, vaidade e dinheiro. Embora nem fosse de uso mais freqüente,
os punhais longos exerciam especial fascínio entre os cangaceiros, sendo
curioso reproduzir aqui parte do “Inventário dos objetos apreendidos,
pertencentes ao famigerado “Lampeão””, produzido pelo Regimento Policial
Militar de Maceió, em 26 de novembro de 1938:
FACA: de folha
de aço, com 67 cm de dimensão, com cabo e terço de níquel, adornado o
cabo com três anéis de ouro, notando-se na lâmina, umamossa
produzida naturalmente por bala; bainha toda de níquel, com
forro interno de couro, notando-se também na parte interna superior
o estrago produzido por bala.
Sabe-se pela
literatura a respeito do tema que aos 67 cm de lâmina são acrescidos 15 cm de
cabo, perfazendo um comprimento total de 82 cm. Qual a utilidade prática de
tamanho exagero? Talvez nenhuma, exceto manifestar o que vem sendo
escarafunchado aqui: poder e vaidade. Muito embora este relato se refira aos
despojos particulares de Lampião, outros membros do bando também possuíam
punhais igualmente longos, o que é visível na famosa “foto das cabeças” e que
viria reforçar a tese da inexistência de vínculo entre o comprimento dos
punhais e a posição hierárquica do indivíduo no grupo. Para sangrar um
homem ao estilo do cangaço, ou seja, fazendo o punhal penetrar pela fossa
clavicular esquerda para atingir coração e pulmão não era necessário esse
exagero de comprimento, coisa de 70 cm. O tamanho de punhal mais disseminado
entre os cangaceiros era de aproximadamente 35 a 40 cm, incluída a empunhadura.
Claro está que o fato de a arma ser de menor porte em nada atrapalhava a
expressão da vaidade em sua confecção. Era carregada com o mesmo orgulho e
tinha o mesmo poder especialmente frente a adversários civis.
Vale ressaltar
que muito provavelmente existia um aspecto psicológico, mórbido e doentio
quando se considera o significado que o sangramento tinha, e tem, para o homem
rústico do sertão nordestino. Ao usar sua arma esteticamente mais
expressiva para esse fim, o indivíduo manifestava, a um só tempo, sua vaidade
em relação ao punhal, e também um importante poder sobre a vítima, não
apenas porque esta sempre se encontrava subjugada pelo grupo mas também porque
sangrar era, e é, ato de extrema ofensa para quem o sofria,
extensiva a toda a família da vítima. Ou seja, para o sertanejo, o drama
não estava em morrer, mas sim em ser sangrado. Ofensa inadmissível,
passível de vingança necessária e obrigatória e muitas vezes origem das famosas
brigas de família. Sangrar era para porco, cabrito, boi – não para o homem.
Finalmente, é
importante mencionar um vínculo havido entre a morte de Lampião, decretando o
início do fim do cangaço, o poder e a vaidade que aqui se explicou. Após mais
de vinte anos de atividade em circunstâncias quase sempre muito adversas,
“morando debaixo do chapéu”, como certa vez disse o Rei do Cangaço, parece que
a atividade já não exercia nele o mesmo fascínio de outros tempos. Sua
mobilidade era bastante menor e sua área de ação estava mais ou menos restrita
ao baixo rio São Francisco, ora em Alagoas, ora em Sergipe onde, até por
influência das mulheres do bando, passaram a tomar muito mais cuidado com a
higiene pessoal, fato demonstrado pela adoção de novos costumes tais como
banhos freqüentes, lavagem de roupas e um acesso mais rotineiro a melhores
alimentos mandados buscar em feiras através de seus coiteiros. Esses fatos,
acrescidos à onipresente sensação de impunidade, à extorsão praticada à larga
contra as elites urbana e rural apenas via bilhetes, à confiança exacerbada em
sua rede de coiteiros, à cada vez maior delegação de autonomia aos chefes
de subgrupos, à enorme quantia de dinheiro em espécie e ouro que acumulara e
portava e à venalidade dócil e obediente dos militares responsáveis por sua
captura parecem ter provocado o afloramento simultâneo de sua sensação de poder
e vaidade pelo que já obtivera e não mais perderia. Lampião certamente tinha
ciência de que sua morte não era conveniente a muitos caatingueiros que, de uma
forma ou outra, dele dependiam para sobreviver ou auferir maiores ganhos.
Inclua-se aí desde grandes latifundiários e militares até o mais simples
morador que fazia e vendia queijos. Lampião sempre pagou regiamente pelos
produtos que adquiria, fossem alpercatas, rapaduras ou mosquetões e sua
munição. Certa vez perguntaram ao Cel. José Lucena de Albuquerque Maranhão que
quando sargento havia sido responsável pela morte do pai de Lampião:
- Cel. Lucena,
quem matou mesmo Lampião?
- O dinheiro dele!
- Nem só, Coronel, nem só!
¹
Macedo, Nertan. Lampião-Capitão Virgulino Ferreira. Rio de Janeiro: Editora
Renes,1975. pp. 84-85.
²
D’Almeida, Manoel, Os Cabras de Lampião – São Paulo, Ed. Prelúdio Ltda. 1970,
pág 19
³ Macedo, Nertan, obra citada, pág.82
⁴Macedo,
Nertan, obra citada, pág. 57 - D’Almeida, Manoel, obra citada, pág.9
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Postado por
Adryanna Karlla Paiva Pereira Freitas
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