Por A. Fleming
O reino de
Lampião
A geografia do
sertão- nas vozes dos poetas
O sertão pernambucano é uma vasta planura cinzenta; serras isoladas, dispersas, cujas silhuetas fulvas alteram as retas do horizonte.
Talham-se, nos horizontes, perfis de ossaturas e arcabouços, de matos garranchentos, espinhudos, singularíssimos, e de arcanos ensolarados. Bandos de negras aves numerosas esculpem rodopios ao acaso dos céus, pelo espaço mudo, parado de eternidade. Cascavéis se aglomeram nas estradas e veredas.
Terra paupérrima. Aquela solidão dardejante, aquele mar de quietude e cinza, onde se escutam, por vezes, vagos sons cavos e monocórdios. É, pois, reino de numeroso silêncio, intransfigurado reino em que as horas se sucedem monótonas e só elas renovam, nas cores do dia abrasador e da noite que chega abruptamente, enregelada, a imutabilidade do céu e da terra. Geografia de fulgurações. As mesmas fronteiras da seca e do cangaço.
É de estarrecer...
É o mundo brasileiro das ardências recurvas, côncavo, convexo, de puríssimas poalhas em escarlate azul!
Ali, naquele deserto, onde até o ar é absolutamente seco, não se conhece, senão no tempo das chuvas, o murmúrio das águas. Os rios são temporários, pulsáteis, "cortam", na linguagem do povo. E lá ficam aqueles estirões compridos, sem fim, de areia.
O famoso Vale do Pajeú, rio dos sertões pernambucanos, é dos mais belos e férteis do país dos nordestinos. Banha, entre outras localidades, Floresta, cidade natal de nosso guerrilheiro-místico Lampião, e, por isso mesmo, é famoso por seus cangaceiros, cantadores e vaqueiros.
Quando a madrugada, despertada, se sacudia nos assanhos do sol nascente, costumava este famoso Rei do Cangaço ? Capitão Virgulino Ferreira da Silva ? fincar-se de pé, nos altos dos tabuleiros desse vale, para contemplar, demoradamente e farto de altivez e satisfação, as vastidões do seu Reino , mantido na sujeição de seu ferro e sinal, e conquistado numa grande guerra de vinte anos ? a Guerra de Lampião!
Versos de Lampião
"Sou senhor absoluto
De todo este sertão
Aqui quem quiser passar
Precisa apresentar
Licença de Lampião".
Em anos de 1929, numa das andanças pastorais, o vigário de Glória, padre Emílio Ferreira, encontrou-se num arraial com o legendário Rei do Cangaço, que fora assistir à missa.
Por notável coincidência, o padre, momentos antes de celebrar o ofício, havia recebido de presente, das mãos de um caixeiro viajante amigo, um grande mapa-plano do Brasil que media aproximadamente 1m2, forrado de algodãozinho e pregado em dois cilindros finos de madeira para enrolar, uma edição do Ministério da Viação do Rio.
Após a missa, vai Lampião cumprimentar o sacerdote. Durante animada palestra desenvolvida entre goles de café, teve uma idéia o padre. Estendeu o mapa aberto sobre a mesa e, entregando a Lampião um grosso lápis encarnado, pediu-lhe: - "De vez que o senhor é Rei, marque e risque sobre esse mapa o tamanho de seu grande Reino".
Lampião, devagar, observando as localidades, rios e montanhas, perguntando muito e auxiliado pelo padre, foi traçando. Tomando por ponto de partida, ao norte, Mossoró, no Rio Grande do Norte, desceu, em zigue-zague, até Porto da Folha, em Sergipe. Desceu mais até Capela e daí tangenciou numa linha até a fronteira da Bahia, onde penetrou por Itapicuru, talando o Estado por Riachão do Jacuípe até Morro do Chapéu. Desceu profundamente, em ponta de lança, até Barra do Estiva e Rio de Contas, donde iniciou a subida para Remanso. Continuando para cima, atingiu Juazeiro do Norte e Caririaçu, no Ceará, depois Jaguaretama, Morada Nova e Limoeiro do Norte, donde fechou o circuito para Mossoró. Em síntese, uma imensa área de cerca de 300.000 km2!
Mapa do Reino de Lampião
O sertão pernambucano é uma vasta planura cinzenta; serras isoladas, dispersas, cujas silhuetas fulvas alteram as retas do horizonte.
Talham-se, nos horizontes, perfis de ossaturas e arcabouços, de matos garranchentos, espinhudos, singularíssimos, e de arcanos ensolarados. Bandos de negras aves numerosas esculpem rodopios ao acaso dos céus, pelo espaço mudo, parado de eternidade. Cascavéis se aglomeram nas estradas e veredas.
Terra paupérrima. Aquela solidão dardejante, aquele mar de quietude e cinza, onde se escutam, por vezes, vagos sons cavos e monocórdios. É, pois, reino de numeroso silêncio, intransfigurado reino em que as horas se sucedem monótonas e só elas renovam, nas cores do dia abrasador e da noite que chega abruptamente, enregelada, a imutabilidade do céu e da terra. Geografia de fulgurações. As mesmas fronteiras da seca e do cangaço.
É de estarrecer...
É o mundo brasileiro das ardências recurvas, côncavo, convexo, de puríssimas poalhas em escarlate azul!
Ali, naquele deserto, onde até o ar é absolutamente seco, não se conhece, senão no tempo das chuvas, o murmúrio das águas. Os rios são temporários, pulsáteis, "cortam", na linguagem do povo. E lá ficam aqueles estirões compridos, sem fim, de areia.
O famoso Vale do Pajeú, rio dos sertões pernambucanos, é dos mais belos e férteis do país dos nordestinos. Banha, entre outras localidades, Floresta, cidade natal de nosso guerrilheiro-místico Lampião, e, por isso mesmo, é famoso por seus cangaceiros, cantadores e vaqueiros.
Quando a madrugada, despertada, se sacudia nos assanhos do sol nascente, costumava este famoso Rei do Cangaço ? Capitão Virgulino Ferreira da Silva ? fincar-se de pé, nos altos dos tabuleiros desse vale, para contemplar, demoradamente e farto de altivez e satisfação, as vastidões do seu Reino , mantido na sujeição de seu ferro e sinal, e conquistado numa grande guerra de vinte anos ? a Guerra de Lampião!
Versos de Lampião
"Sou senhor absoluto
De todo este sertão
Aqui quem quiser passar
Precisa apresentar
Licença de Lampião".
Em anos de 1929, numa das andanças pastorais, o vigário de Glória, padre Emílio Ferreira, encontrou-se num arraial com o legendário Rei do Cangaço, que fora assistir à missa.
Por notável coincidência, o padre, momentos antes de celebrar o ofício, havia recebido de presente, das mãos de um caixeiro viajante amigo, um grande mapa-plano do Brasil que media aproximadamente 1m2, forrado de algodãozinho e pregado em dois cilindros finos de madeira para enrolar, uma edição do Ministério da Viação do Rio.
Após a missa, vai Lampião cumprimentar o sacerdote. Durante animada palestra desenvolvida entre goles de café, teve uma idéia o padre. Estendeu o mapa aberto sobre a mesa e, entregando a Lampião um grosso lápis encarnado, pediu-lhe: - "De vez que o senhor é Rei, marque e risque sobre esse mapa o tamanho de seu grande Reino".
Lampião, devagar, observando as localidades, rios e montanhas, perguntando muito e auxiliado pelo padre, foi traçando. Tomando por ponto de partida, ao norte, Mossoró, no Rio Grande do Norte, desceu, em zigue-zague, até Porto da Folha, em Sergipe. Desceu mais até Capela e daí tangenciou numa linha até a fronteira da Bahia, onde penetrou por Itapicuru, talando o Estado por Riachão do Jacuípe até Morro do Chapéu. Desceu profundamente, em ponta de lança, até Barra do Estiva e Rio de Contas, donde iniciou a subida para Remanso. Continuando para cima, atingiu Juazeiro do Norte e Caririaçu, no Ceará, depois Jaguaretama, Morada Nova e Limoeiro do Norte, donde fechou o circuito para Mossoró. Em síntese, uma imensa área de cerca de 300.000 km2!
Mapa do Reino de Lampião
Entusiasmado, exclamou o padre dirigindo-se ao Rei do Cangaço:
- "Territorialmente falando, seu REINO faria inveja a muita cabeça coroada da Europa!..."
Lampião - Sua gente
Restantes da guerra de extermínio do período da colonização do século XVII, os índios da região do nordeste, já em reduzido número, e vencidos e subjugados pela força, acabaram estabelecendo alianças com os colonizadores, visando com isso barrar sua própria extinção.
Por sua vez, as alianças trouxeram a miscigenação e incrementaram o povoamento. Em dias de hoje, a população sertanejo-nordestina é predominante mestiça, cabocla: o vaqueiro tem sangue e espírito de índio. A excepcional resistência de Virgulino Ferreira era assombrosa - como se verá ao longo deste artigo - mesmo perante seus companheiros de cangaço, tanto que, muitos deles, não suportando seu duro regime de vida, deixaram sua companhia.
No final do Império, deu-se a transformação dos fazendeiros latifundiários em coronéis políticos, em geral, sátrapas, cruéis e briguentos. Assim, em meados do século XIX até quase 1940, existiu um sertão típico: o de coronéis e vaqueiros, beatos e cangaceiros, cantadores e almocreves ? o universo sertanejo - com seus pontos culminantes no coronelismo, em Antônio Conselheiro, em Padre Cícero e em Lampião.
Na resplandecência azul dos espaços e tempos, os sertanejos vivem, em geral, em casas de taipa, cobertas de telha vã; usam fogão de trempe de pedra, alimentado de lenha, graveto e maravalha; repousam em zidoras ? cama de varas - ou no chão forrado de esteiras de piriri, talos de bananeira ou palha de carnaúba.
O meio quase único do trabalhador se locomover, por conta própria, sem estar a serviço, são os próprios pés, exceto nos casos em que usam o animal do patrão. Aliás, os sertanejos são resistentes e velozes andarilhos. Mesmo nos curtidos da fome, nos flagelos das secas, é a pé que eles emigram, cambaleantes, pelos caminhos sem-fim, com a poeira frouxa levantando-se do chão pedregulhento e urente.
Uma das grandes táticas de Lampião era a sua incrível e assombrosa mobilidade que o tornava extremamente periculoso. Chegam às raias do fabulesco as longas tiradas a pé realizadas por ele e seu grupo. Como aquela, a mais famosa, de vinte léguas numa noite, das 18 às 6 horas do dia seguinte, dos fundos do Raso da Catarina (Bahia) à cidade de Capela, em Sergipe!
Bando
de Lampião em 1936, Ribeira do Capiá, Alagoas
O espírito religioso do sertanejo é acentuado pelo temor a Deus. Todo mal é castigo do pecado. E o pior de todos os castigos é a seca . Tirado o pecado ? impossível porque entranhado na natureza humana ? a seca desapareceria, o sertão viraria mar e, então, se concretizaria a sonhada miragem verde da abundância e da felicidade! A mística da seca é a temática da vida e do eixo de giro de toda a religiosidade sertaneja. Mística sistematizada em doutrina através das pregações terrificantes, das procissões penitenciais de esconjuro da seca ? o mau destino! - e de clemência por chuvas, a maior benção do céu! O sertanejo não maldiz nunca a chuva, mesmo arrasadora. Mãos estendidas, apara, de joelhos, até os poucos pingos que caem, beijando-os sofregamente, devotamente. A chuva é a esperança e a salvação. A água é bênção divina que molha os corações de esperança e enche as terras de verde e de fartura. Maldição são as prolongadas estiagens, as secas sem fim, que acontecem muitos anos, aniquilando tudo o que significa vida.
Nessas épocas não há trabalho, nem o que comer. Sai o pobre sertanejo, sem tino nem destino, em retirada, como ave de arribação, estrada a fora: é o retirante. Bênçãos, lágrimas, olhos arregalados e parados na despedida que, todos sabem, pode ser definitiva.
O mistério das coisas da vida e da morte aderem, feito acréscimos, a esse misticismo. O mistério em tudo, influindo e atemorizando, fatalizando e fanatizando.
Dentro de um clima tropical semi-árido, a canícula arde impiedosa, o céu é incandescente e o sol, de rachar: é a seca influenciando a vida e condicionando o homem, um homem diferente, o homem sertanejo. Constituído em geral de grande resistência física e moral, define-se no misticismo dos beatos e penitentes, nos arremetimentos audazes das vaquejadas, na música telúrica do baião e no ritmo do coco, na resistência teimosa contra as inclemências da região agressiva e nas aberturas das brigas ? pelo sim pelo não ? em cenas sangrentas do cangaço sob a vibração épica da Mulher Rendeira.
CONTINUA...
Extraído do
GEH - Grupo de Estudos Humanus
http://www.geh.com.br/forum/viewtopic.php?f=62&t=6332
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/12/482233.shtml
http://blogdomendesemendes.blogspot.com