Por Rangel Alves da Costa*
Há instantes
na vida, no vai e vem do destino, que a pessoa passa a estar verdadeiramente
dependente da bacia das almas. Em determinadas situações, onde tudo já parece
perdido, pois tudo já tendo se mostrado sem nenhum efeito, então a pessoa se
prostra para ver se enxerga resposta na bacia dos aflitos. Não que a seus pés
esteja um vaso com água e que se ajoelhando veja refletida a resposta ao que
deva fazer, mas no que encontra como último refúgio, como última salvação.
Eis, pois, a
bacia das almas. Na bacia lava-se, purifica-se, avistam-se na sua água os
sinais do destino. Mas nela também se joga o grão que some ao fundo ou mesmo
enxerga-se o nada ter no seu raso. Deseja-se uma esmola por não haver nada na
bacia ou desespera-se porque a qualquer instante o que nela resta vai
desaparecer. Então, fazer o que? Sofrer. O mesmo sofrimento dos aflitos diante
da bacia que clama para não sumir no seu próprio raso. O sofrimento percebido
em toda bacia das almas.
A expressão é
comumente usada como ditado popular, mas contém história de uso. Popularmente
se diz que a pessoa está na bacia das almas quando está entregue à última sorte
da vida, quando parece que nada mais lhe resta como salvação. Não raro se diz
que a situação se mostra tão difícil de ser superada que ao sujeito só resta
esperar pela dádiva da bacia das almas. Ou que depois de tudo tentado e nada
conseguido, agora desesperadamente se lança à bacia dos suplicantes. Entregues
a tal destino, as almas aflitas passam geralmente a depender de outros que lhes
estendam à mão.
Historicamente,
há relatos que no período medieval irmandades se reuniam para angariar fundos
para a celebração de missas em favor das almas do purgatório; ou seja, daquelas
pessoas que necessitavam ultrapassar os portais do Paraíso e não tinham mais
nada a oferecer para espiar seus pecados. Desvalidas, tais almas necessitavam
da intercessão dos vivos por meio de missas, preces e oferendas. E tudo leva a
crer que as bacias tanto eram os recipientes para arrecadação de fundos como as
denominações das irmandades reunidas para tais fins.
Mas o conceito
atual sempre remete a bacia das almas a uma situação dramática, desesperadora.
Carrega em si uma noção de tormento e aflição. Na tal bacia está aquele que
passa por extrema dificuldade, que não encontra mais possibilidade de resolução
de seus problemas, que está entregue a qualquer sorte e nada mais depende
somente dele. Soa como o último remédio, o último recurso, àquilo que a pessoa
desesperadamente se apega como meio de libertação do perigo e do sofrimento.
Ora, depois de tudo tentado e nada conseguido, abraça cegamente qualquer
milagre que lhe pareça restar.
Assim, quando
tudo já visto como perdido, então o milagre pode emergir da bacia dos aflitos,
dos desvalidos. Ou, de modo diferente, somente na bacia das almas a pessoa é
capaz de fazer algo jamais imaginado em outra situação, de tomar uma atitude
tão extremada que a outra coisa não se afeiçoa senão como gesto desesperador.
Neste último aspecto, a aflição e a desesperança fragilizam a tal ponto que
torna o ser impotente, inútil para agir de outro modo e até desconhecido de si
mesmo. Não há mais razão para sustentar uma negativa ou rejeitar a submissão,
vez que sua condição se mostra tão desfavorável que nada pode exigir além do
oferecido.
Os que sofrem
e os necessitados, os que clamam por uma última ajuda, todos estes vivem à
mercê da bacia das almas. Nesta o último rogo, o clamor angustiado, a extrema
súplica. Alguém se desfaz de um bem desde muito carinhosamente guardado porque
não encontra outra saída para resolver um problema. E outro adquire esse bem a
preço vil porque encontrou a fragilidade naquele em lastimosa situação. Quando
tudo já não surte mais efeito e a doença parece ter vencido, então se lança a
qualquer tentativa de cura e pelos meios mais impensados. Dificilmente alguém penhora
uma aliança muito antiga de casamento se não estiver com grande dificuldade
financeira, ou com a corda no pescoço, como comumente se diz. Tais situações
exemplificam a bacia das almas como último e desesperador recurso.
O sertanejo,
por exemplo, que tanto se apega ao seu quase nada ter, só se desfaz de sua
última e ossuda vaquinha se já estiver, verdadeiramente, na bacia das almas.
Está tão necessitado que não encontra outra saída senão entregar parte de seu
próprio ser por verdadeira ninharia. Em épocas de grandes secas, aliás, a vida
do pobre sertanejo fica sempre à mercê desse poço raso dos aflitos. Desfaz-se
de tudo que ainda lhe resta por qualquer tostão. Torna-se tão fragilizado que é
iludido, enganado, subtraído daquilo que ainda lhe dava sustentação. E é assim
que abre a cancela para o animal de estimação, para a sela carcomida de sol, e
não raro para a própria família, pois até o terreninho entrega por dois
vinténs.
A bacia das
almas é, assim, o limite entre a força e a fragilidade humana. Diante dessa
situação extrema, alguns compreensivos e de bom coração ajudam a transformar a
súplica em salvação. Já outros, sempre se aproveitando da ocasião, simplesmente
afundam a bacia e quem nela esteja pendente.
Poeta e
cronista
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