Juliana Magalhães - Brasil de Fato | Petrolina (PE) |
Povoado montado com bases
comunitárias e religiosas tinha muitas semelhanças com Canudos e Caldeirão
Sempre no mês de dezembro, uma
romaria relembra o massacre que aconteceu na década de 30 - Thomas Bauer
Na sombra lateral de sua casa, em
meio ao sertão nordestino, Seu Militão Rodrigues da Silva pega a bengala improvisada
e desenha um círculo no chão de terra. Ao lado da esfera, sinaliza com algumas
batidas que ali era o local onde estava a metralhadora, amarrada a uma árvore e
apontada para o acampamento. O episódio ao qual se refere, com memórias tão
vivas, mesmo próximo de completar 90 anos de idade, é o massacre de cerca de
mil pessoas da comunidade de Pau de Colher, ocorrido em janeiro de 1938.
Sobrevivente, Seu Militão é
testemunha de um capítulo de horror da história brasileira, marcado pela
violência brutal do Estado, na época sob a Ditadura Vargas, e que até hoje
reverbera em traumas e preconceitos.
Há 80 anos, o arraial, localizado
a 98 km da sede do município Casa Nova (BA), na divisa com os estados de Piauí
e Pernambuco, chegou a reunir aproximadamente quatro mil pessoas, população
maior do que a própria sede do município e cidades vizinhas, a exemplo de
Petrolina (PE) e Remanso (BA). No local, debaixo de um frondoso pé de juazeiro
existia uma feira e importante ponto de encontro, bastante movimentado, mas os
motivos dessa grande aglomeração foram religiosos e sociais.
A comunidade se tornou uma
espécie de extensão de Caldeirão, comunidade cearense liderada pelo beato Zé
Lourenço. O escritor piauiense Marcos Damasceno, autor do livro “Guerra de Pau
de Colher: Massacre à sombra da ditadura Vargas”, explica que, no início, a
ideia era que Pau de Colher fosse um local que selecionasse as pessoas que
iriam para Caldeirão, mas, com a destruição deste em 1936, as pessoas
permaneceram e os sobreviventes que seguiam Zé Lourenço se juntaram a eles.
“Então Pau de Colher se formou
como uma terra sagrada, como uma terra prometida. E daqui as pessoas iam buscar
alcançar as coisas do céu porque aqui faltava tudo”, comenta o escritor.
Era uma época em que imperava a injustiça social, desigualdades e opressões,
marcada sobretudo pelo coronelismo. A região era esquecida pelo Estado e grande
parte da população vivia em situação de extrema pobreza. A escolha de seguir o
José Senhorinho, líder religioso de Pau de Colher, representava uma luta por
melhores condições de vida. Pau de Colher foi um movimento camponês religioso,
mas também social e político.
“Igual a melancia na pedra”
Em 1934, as pessoas começaram a
chegar ao local, primeiro para participar das rezas com o Senhorinho, depois,
para morar. Em 1937, o arraial atingiu sua maior população. Foi um “dilúvio de
gente”, lembra Dona Helena Nogueira, sobrevivente da guerra. Homens, mulheres e
crianças viviam em “latadas”, uma espécie de barraca feita com palha e varas, e
faziam refeições coletivas. Comia “tudo na mão, não era colher não”, conta Seu
Militão ao falar da alimentação no acampamento, que, segundo ele, era “um
feijão véio mal cozinhado, sem tempero”.
Nem toda a população da
vizinhança quis integrar o movimento religioso, o que gerou disputas,
motivadas, principalmente, de acordo com Damasceno, pela postura do Joaquim
Bezerra. O Quinzeiro, como era conhecido, assumiu a liderança de Pau de Colher
após a morte do Senhorinho. Para o escritor, a história do movimento pode ser
dividida em dois momentos, uma sob a liderança de Senhorinho, marcada pela vida
em comunhão, partilha e rituais religiosos; e outro com o Quinzeiro, época de
violência e brigas entre os que estavam dentro e fora do arraial. Essa
distinção também é relatada em depoimentos dos moradores do local.
Para além das disputas internas,
a multidão em Pau de Colher incomodou as forças políticas regionais. O período
era de Ditadura Vargas, perseguição ao cangaço, e movimentos semelhantes como o
próprio Caldeirão e Canudos haviam sido dizimados.
Quatro volantes policiais foram a Pau de Colher. A primeira, de São Raimundo
Nonato (PI); a segunda, de Casa Nova, que matou o Senhorinho; a terceira, do
Pernambuco, comanda pelo capitão Optato Gueiros e responsável pelo massacre da
comunidade; e a última, do estado Piauí.
O ataque da polícia de Pernambuco
ocorreu entre os dias 19 e 21 de janeiro de 1938. A população reagiu, lutou
contra a força policial com as armas que tinham (cacetes feito de árvores),
alguns conseguiram se esconder e fugir, mas a maioria não sobreviveu. Mais de
400 pessoas estão enterradas em uma sepultura coletiva localizada onde
funcionava o acampamento. Estima-se que cerca de mil tenham morrido no
massacre, atingidos pelas armas e também de fome e sede na caatinga.
“Diz minha mãe que ficou lá o campo igual melancia na pedra”, relata o lavrador
Francisco do Nascimento, nascido em Pau de Colher. Ele conta que sua mãe, Dona
Ângela, 92, sobrinha do Senhorinho, enquanto fugia do ataque policial com a
família, viu sua irmã mais nova morrer em seus braços com um tiro na cabeça. A
brutalidade da ofensiva policial foi tamanha, que Dona Gildete Justiniano,
nascida no ano do massacre, e que perdeu avó e tios na guerra, diz que “até tem
hora que pensa que [a guerra] é um sonho”.
Para o lavrador Gregório Manoel Rodrigues, 73, nascido na comunidade, “eles
morreram tudo de injusto. A polícia não era pra ter matado aquele
povo. Era pra ter pegado e ver o que eles queriam”.
Invisibilidade da luta popular
Quem chega na comunidade formada
por cerca de 40 famílias, se depara com aqueles que têm orgulho de dizer que
são “raiz e semente da história” e outros que evitam ao máximo tocar no
assunto. A história da luta do povo por dignidade e pela sobrevivência diante
da negação e violência do Estado foi ocultada. Prevaleceu a versão de um povo
sem propósito, violento e fanático.
“Ainda hoje tem gente que tem preconceito com isso aqui, tem umas pessoas que
não quer nem que falem das pessoas daquele tempo”, comenta Gregório
Manoel. Por muito tempo as pessoas utilizavam o nome da comunidade no sentido
pejorativo, para adjetivar negativamente outras situações. “Lá vai virar um Pau
de Colher”, conta Francisco do Nascimento. “Usavam o nome
daqui pra poder chocar os outros”, complementa.
O historiador e professor da
Universidade de Pernambuco (UPE) Moisés de Almeida afirma que em quase todos os
eventos em que ocorrem massacres há a tentativa de apagamento, de esquecimento
da memória. Almeida desenvolve pesquisa sobre a narrativa dos jornais de Pernambuco
sobre os movimentos sociais, entre os anos de 1896 a 1938. Segundo o
historiador, a imprensa do período trata as lutas de Pau de Colher, Canudos e
Caldeirão como atentados ao regime.
Para a imprensa “é uma população que se rebela contra o governo, contra o
Estado e o Estado precisa neste caso agir, agir fortemente contra a população”,
destaca o professor que acrescenta que “a imprensa, inclusive, vai dizer que
para fera não existe outra solução que não a bala ou a faca”.
Resgate da memória
Após 80 anos da Guerra do Pau de
Colher ainda encontramos objetos da época no local do acampamento, a exemplo de
balas. Não existe museu ou memorial na comunidade. A memória e a história são
preservadas pelos próprios moradores, que são os responsáveis por capinar o
acampamento, manter conservadas as sepulturas e guardar os objeto antigos.
À espera da construção de um
museu, a família do Seu Gregório guarda como se fosse um tesouro as balas,
talheres, pedaços de vidro, moedas e cachimbos encontrados. “O poder público
acabou, matou o povo, eles tinham o direito de construir e
entregar propovo”, afirma Gregório ao falar sobre o desejo da construção
de uma estrutura física.
O Estado, que despreza a
história, continua a negar o local, mas a população permanece resistindo. Desde
2003, a comunidade realiza, todos os anos, uma romaria. “É de muita
importância, porque se não o lugar tava acabado. Todo mundo fala na
romaria, se não tivesse a romaria ninguém falava”, diz Gregório.
Realizada junto com a Paróquia
São José Operário e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Romaria de Pau de
Colher acontece sempre dezembro, no dia de Santa Luzia. “Até o ano de 2003 o
pessoal tinha um trauma daqui, mas agora o pessoal tá atentando pravalorizar
a história do Pau de Colher”, aponta Francisco. É também a partir desse período
que tecnologias sociais chegaram, a exemplo das cisternas de captação de água
de chuva para consumo humano e produção, e algumas instituições passaram a
atuar na comunidade, possibilitando melhores condições de vida para população.
Entre os moradores do município
de Casa Nova é comum encontrar pessoas que desconhecem a história de Pau de
Colher ou que a associam apenas a uma visão negativa da comunidade. Com o
objetivo de mostrar uma nova visão do movimento religioso e social, uma turma
de estudantes do Colégio Antônio Honorato desenvolveu um projeto sobre a
história local. Eles realizaram uma pesquisa com a comunidade escolar e
descobriram que apenas 4% dos estudantes, professores e servidores do Colégio
tinham conhecimento sobre a Guerra de Pau de Colher.
A partir desse dado, os
estudantes foram até a comunidade, conversaram com os moradores e produziram
uma série de materiais, como um álbum de fotografias, perfis de redes sociais
online e um documentário. “Foi muito importante para trazer a história de Pau
de Colher para que se torne patrimônio da escola, para ela ser mais conhecida,
porque é uma história muito desconhecida e tem sua versão muito distorcida pela
população casa-novense”, avalia a estudante do 1º ano do ensino médio Jailane
Braga.
Para Átila Ramon Gomes, também estudante e integrante do projeto, os materiais
que eles produziram “estão sendo usados como meio para contar uma nova versão
da história e mostrar realmente como que aconteceu, que não foi só o que eles
pensam, mas que tem um outro lado da história”.
*Produzido pela Comissão Pastoral
da Terra
Edição: Vanessa Gonzaga - 57
https://www.brasildefatope.com.br/2018/12/27/raiz-e-semente-da-historia-massacre-de-pau-de-colher-completa-80-anos
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