Luiz Gonzaga
dizia que todo menino que nasce no sertão e não é vitima da opressão de
senhores arrogantes tem uma infância feliz. Mesmo que passe privações tem
diante de si o recanto mais lúdico e encantado de todo o Universo. Quem
sou eu para contrariar essa afirmativa do saudoso Rei do Baião… Tive uma
infância parecida com a dele nas brincadeiras, nos folguedos, na religiosidade.
Talvez um pouco mais farta e despreocupada, pela condição econômica de meu avô
que era comerciante e pequeno agropecuarista. Guardo desse período as mais
gratas lembranças, relicário de imagens, saberes e lições que moldaram a minha
personalidade pelo resto da vida, desde o gosto literário e musical até a minha
postura diante dos desafios da vida. Quando trabalhei como redator e designer
gráfico em agencias de propaganda de Fortaleza os colegas costumavam brincar:
- Ô bicho
matuto… Este cabra saiu do sertão, mas o sertão não saiu dele!
Diziam em tom
de mofa, cobrando uma urbanização, uma pasteurização de costumes que eu jamais
almejei, por isso a minha resposta era sempre a mesma:
- Eu sou o
Sertão! Matuto, graças a Deus!
Prosear no
alpendre, depois da janta, era um costume secular no sertão de outrora, coisa
que foi desaparecendo gradativamente com a chegada da eletricidade, dos
aparelhos de TV e das antenas parabólicas, gigantescas “urupemas” que infestam
desde as opulentas casas-sede de fazenda até os casebres mais simplórios. Com o
advento do Funrural, instituído no início da década de 1970 e os programas
sociais do Governo, todo mundo possui moto, geladeira, aparelho de TV, telefone
celular (mesmo que não pegue), computador e as indefectíveis parabólicas. É
como diz o Gilberto Gil na canção ‘Parabolicamará’:
Antes mundo
era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena
Parabolicamará…
Foto: Blog do
Macário Batista
Se há um lado
positivo, pela melhoraria da qualidade de vida das pessoas e acesso ao consumo,
por outro lado as tradições estão escoando pelo ralo e as novas gerações
sertanejas, em muitas localidades, são compostas por jovens indolentes,
alienados, arrogantes em sua maioria e, de certo modo, parecidos com os
malandros da periferia das grandes cidades. Copiam a roupa, o modo de andar, as
gírias, o (des)gosto musical e outros hábitos menos recomendáveis.
Mas voltemos
ao alpendre de meu avô; deixemos tais elucubrações para os historiadores e
sociólogos de plantão. À noitinha, depois da ceia, filhos, netos, vizinhos
reuniam-se no alpendre da casa de meus avós para um animado bate-papo, onde não
faltavam histórias de caçadas, viagens, relembranças de tempos distantes,
amenidades do dia-a-dia e novidades que chegavam pelo rádio. Mas a modalidade
mais aterradora de todas (pelo menos para mim) eram as histórias de
assombração, cobras venenosas e discos voadores. Eu tinha muito medo de alma,
de coisa do outro mundo, mas tinha mais medo ainda do tal disco voador, que os
matutos descreviam como uma luz que perseguia as pessoas para chupar o sangue e
as cobras venenosas, cascavéis principalmente, que ficaram nas veredas
enrodilhadas a espreita de uma vítima. E tinha a história de um ateu cujo
caixão pesara meia tonelada na hora do enterro e que ainda por cima virara um
bicho, depois de sepultado, sendo necessário colocar uma jaula sobre a
catacumba. A velha Bastiana, torradeira de café, jurava que era verdade. Quem
ousava duvidar?
Que tortura,
ir deixar um cavalo no cercado à noite, mesmo que houvesse lua cheia. Essas
lembranças logo vinham à tona, o serviço era feito às pressas, sob clima de
terror. Na ida, montado no animal, até que restava um pouco de coragem, mas a
volta eram outros quinhentos. O cabra vinha correndo em desabalada carreira e
quando chegava no terreiro de casa, sentava um pouco para serenar a respiração
e não denunciar o medo que sentia.
Sabendo que eu
era medroso confesso, meu avô raramente me incumbia de tarefas como esta. Cabia
geralmente aos primos Dário José e Walberto, que tinham fama de corajosos, mas
que certamente também tinham medo de tais marmotas. Eles ficavam felizes e
empavonados quando meu avô lhes gabava a coragem:
- Cabra macho!
Esse é homem mesmo! Foi sozinho deixar o cavalo no cercado e voltou nas mesmas
pisadas…
O velho sabia
como mexer com os brios do suposto corajoso. Éramos, ao todo, morando na casa
grande ou nas imediações, mais de vinte netos, além de sobrinhos e agregados.
Menino como o diabo, como dizia Luiz Gonzaga. Só o tio José Oswaldo tinha dez!
De todos, o mais medroso era o Totonho. Se assustava até com a própria sombra,
era raquítico, miúdo, embora fosse um dos mais velhos da turma. Tinha a fala
meio atrapalhada e batia os olhos em sistema pisca-pisca, quando estava
aperreado. Foi vítima de uma das muitas travessuras que aprontei na infância.
Remexendo pelo
armazém da casa velha, onde dormia o João, empregado de meu avô, encontrei uma
velha câmara de ar de pneu de bicicleta, a qual, de tanto remendo, havia sido
descartada. De parelha com meu primo Dário José resolvi pregar uma peça no
Totonho, que morria de medo de cobras. Cortamos o pneu, enchemos de ar e
amarramos com liga nas duas pontas, de modo a parecer uma serpente, uma cobra preta,
para ser mais preciso.
E colocamos a danada na vereda que o Totonho palmilhava
toda noite, por volta das seis meia, para vir tomar uma coalhada que a vovó lhe
oferecia. Dito e feito. Eu já estava meio esquecido da armadilha quando ouvi um
grande alarido, um terrível alvoroço no alpendre, que já estava cheio de gente.
O menino chegou branco dar cor de um finado e levou uns três minutos para
recuperar a fala, aterrado, transido de susto. Depois de beber sofregamente
alguns goles de garapa de açúcar resolveu abrir o par de queixos:
- Vo- Vovô!
Ali tem uma cobla pleta! Um cobla medonha, vovô!
Mané Lima
levantou-se de um salto, deu de garra de um cacete de jucá e foi logo
perguntando:
- Aonde, menino? Cadê essa cobra?
- A- acolá
vovô, na valeda… (vereda)
- Pois vamos
me mostrar!
A ordem era
imperiosa. Mesmo morrendo de medo o Totonho sujeitou-se a ir apontar o local
onde havia avistado o gigantesco ofídio. Na sua descrição media mais de três
metros de comprimento! O Gabriel Lopes, marido de minha tia Heliodoria, seguiu
com eles conduzindo um lampião a querosene.
Chegando ao local, depararam com a
tira de pneu e vovô não contou pipoca, desceu o pau na suposta serpente, com
toda força do braço, a torto e a direito. Atoleimado, como costumava ser em
situações desse tipo. Quanto mais ele batia, mas o pneu pulava e se retorcia,
simulando os movimentos de uma cobra.
O Gabriel
talvez até já tivesse percebido o engano, pois estava com o lampião e tinha a
visão perfeita, mas divertindo-se com a situação, conseguia disfarçar o riso e
dava corda no meu avô, para levar a cena adiante:
- Ô cobra dura
de morrer, ‘seu’ Manoel, taca o pau nessa danada! Abarca essa bicha, arrocha,
‘seu’ Manoel!
Vendo os pulos
da cobra, Totonho foi o primeiro a correr, de volta para o alpendre. Quando a
farsa foi descoberta, todos riram a bandeiras despregadas, até mesmo meu avô,
que tinha sido uma das vítimas do logro. O resto da noite foi só de “elogios” à
coragem do Totonho.
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