Por Lúcia
Rocha - Entrevista feita em 2002
Publicada em 2003, na Gazeta do Oeste
Entrevistar o
doutor Lahyre Rosado, sempre foi um desejo, desde os tempos de estudante de
jornalismo, em Natal, quando frequentava sua casa, no bairro Petrópolis,
acompanhada da colega de turma e sua filha, Ilná, também advogada. Isso há uns
quinze anos, quando entrei na UFRN. Homem sábio, que exerceu a medicina numa
Mossoró que só tinha um médico, o doutor Almeida Castro.
Algo me marcou nossas conversas. Já que ele praticara a medicina
natural, uma vez quis tirar uma dúvida. Queria saber por que minha garganta
doía quando comia melão. Do alto de sua sabedoria explicou que ‘quem tem
problema de garganta ou osso, não pode comer melão’. Pronto! Resolvi dois
problemas de uma vez. Nunca mais tive dor de garganta e curei uma bursite.
Laíre,
Ilná, Lairson e Laete com os pais:Lahyre e Francisca
Prometi que
um dia o entrevistaria contando essas coisas. Acabei de fazê-lo agora, quando
ele está lúcido com noventa e dois anos de idade, mas suas receitas infalíveis
ficaram no fundo do baú de memórias.
Reencontro doutor Jerônymo Lahyre de Mello Rosado e sua esposa, dona Francisca
Gurgel Frota Rosado, de volta a Mossoró, ela enferma, após acidente durante
assalto em Natal. Nossa entrevista vira uma conversa, onde ele conta que
conheceu alguns Presidentes da República, fala sobre clonagem humana, o
desenvolvimento da cidade, conta que pertence a uma geração de quatro médicos:
seu pai, ele, três filhos – Laíre, Laete e Lairson – além do neto, David,
cirurgião vascular, com residência médica no Rio de Janeiro, exercendo a
profissão em Natal. Fala de Mossoró como se ainda estivesse em Natal e, de vez
em quando, solta: “Lá em Mossoró”.
Define-se como um camarada que não sai de casa, que conversa pouco e não
vê televisão: “Nunca mais gostei de rádio. Acho que já passei da conta”,
brinca. Em Natal o neto Dave – lê-se Dêive – filho de Ilná, lia para o
avô diariamente as notícias dos jornais e da Internet, além de bulas de
remédios. Dave que fazia a ponte com o mundo exterior ficou em Natal. Mas morre
de saudades do avô: “Diariamente eu o visitava e bom era ouvir os comentários
dele após contar as notícias mais importantes do Brasil e do mundo. Cada vez
que eu entrava no seu quarto ele perguntava logo as novidades. Era como numa
novela e cada dia eu contava um novo capítulo”, conta Dave. “Amo meu avô
pelo que representa na minha vida. Sempre gostei de conversar com ele, uma
pessoa íntegra, inteligente, culta e com uma visão muito ampla da vida. Torce
sempre por mim e faz de cada vitória minha uma sua também. Ele mora no meu
coração”, emociona-se o neto engenheiro.
Francisca, Lahiry e Ilná
Doutor Lahyre nasceu em 18 de setembro de 1910, é único filho homem do
médico Jerônimo Rosado Filho e da professora Ilnah Sousa Mello Rosado. Seu
pai era o primogênito de Jerônimo Rosado - seu Rosado - por quem foi criado
após perder o pai prematuramente. Então, viveu em meio aos tios Dix-sept,
Dix-huit, Vingt, Vingt-un, num tempo em que Mossoró era uma cidade
pequena, pacata, carente de tudo: “Água, nem se fala, as ancoretas, as pipas...
Seus problemas se resumiam a água e energia. Se tivesse isso, tudo estaria
resolvido”, resume. A Mossoró de hoje, ele lembra que desde criança
ouve dizer que é a cidade que mais cresce no Nordeste: “Hoje eu digo, só
faltavam água e energia, aí disparou. Agora vem Medicina, já tem
Agricultura - Esam - já tem a universidade – Uern. Pois
é, Mossoró vai ser uma cidade grande. E pode ser até uma grande cidade, quem
sabe? Depende dessa velocidade que ela vai. Tem também a Petrobrás...”,
completa ele que morou uns tempos em Macau e outros em Catolé do Rocha: “Que eu
me lembre, só”, ri. Esqueceu Natal.
Calmo, culto, inteligente, fino, de educação polida, poliglota, vernáculo e bem
humorado, doutor Lahyre Rosado, Doutor Lahyre conta que estudou farmácia
“Pelas contingências do tempo”, na Faculdade de Farmácia do Recife, na década
de 1930. Formou os três filhos homens médicos longe de Mossoró e, talvez por isso,
ao iniciar o nosso papo ele foi logo soltando: “Mossoró vai ter faculdade de
Medicina”. Faz uma pausa e depois completa: “Dona Sandra que puxou o cordão”,
diz se referindo a nora, deputada estadual, Sandra Rosado, autora do projeto de
lei que cria a Faculdade de Medicina de Mossoró, casada com seu filho mais
conhecido, o deputado federal, doutor Laíre Rosado Filho.
Doutor Lahyre senti-se
satisfeito com os netos que terminaram curso superior e dos que estão cursando.
O semblante muda. Um riso alegre de quem tem a certeza do dever cumprido.
Lembra que formou todos os filhos com a ajuda de dona Francisca: “Se não fosse
ela...”, diz pensativo. “Sozinho eu não podia”, reconhece. “Mas minha
filha com muita garra se formou e também os seus três filhos”, gaba-se.
Lahyre já octagenário
Ilná garante que o pai sempre esteve presente na educação dos filhos: “Embora
mais a cargo de minha mãe, ele aconselhava sobre a vida, mas nunca impunha sua
opinião. Durante o ano letivo se interessava pelos assuntos escolares dos
filhos e estava sempre pronto a nos ajudar.
Juntava
durante o ano inteiro amostras grátis de remédios para distribuir nas férias em
Tibau com pessoas carentes que faziam romaria para se receitar com ele”,
lembra a única filha mulher.
Depois de trinta e oito anos residindo em Natal, doutor Lahyre explica o
retorno: “Voltei agora por uma emergência. Não tenho mais amigos aqui. Já se
foram. A maior parte dos conhecidos e amigos já ‘viajou’. Então, tem a
família”, comemora. Diz que é um homem de poucos amigos: “Não era cheio
de muitas amizades, não! Era meio cético, meio esquisito, mas tinha alguns
amigos. Agora tem uma coisa na minha vida que acho muito importante. Nunca
briguei com ninguém. Nem nunca ninguém se atreveu a brigar comigo. É uma coisa
boa, limpa”, se regozija.
Sabe que a rua onde morou durante muito tempo, a Bezerra Mendes, em frente ao
Mercado Municipal, não tem mais casa: “Chamava-se
Rua das Flores. Os vizinhos iam para a calçada conversar. Depois tudo virou
comércio. Acabou-se”, diz entristecido.
Lamenta também as tragédias da família: perdeu o pai aos treze anos de idade; a
mãe, aos dezessete; o sobrinho Carlos Augusto, falecido ainda criança,
desidratado: “Tão gordinho, apliquei muita injeção na barriguinha dele. Mas não
adiantava nada”, recorda. O acidente aéreo que ceifou a vida do tio, o então
Governador Dix-sept Rosado foi muito traumático para ele, pois eram bastante
unidos. Um acidente automobilístico encerrou a vida do filho caçula Lairson,
com quase trinta anos de idade; e mais recentemente o neto, Vingt Neto, com
pouco mais de vinte anos.
Quando terminou a faculdade doutor Lahyre veio direto para a farmácia do tio
Duodécimo Rosado, localizada à rua coronel Vicente Sabóia, onde atuou por
trinta anos e guarda boas recordações desse tempo: “Eu era muito ocupado e
nesse tempo a farmácia não tinha feriado. Abria até no dia de Santa Luzia. A
procissão passava em frente a farmácia, o comércio todo fechado e a farmácia
aberta. Quando a procissão apontava na rua o pessoal dizia: ‘Feche a porta!’.
Quando passava diziam: ‘Abra a porta!’. Ela ficava aberta até às 21
horas. Meu tio queria assim, né?” , graceja.
Nesse tempo Mossoró não tinha hospital, ambulatório, nada disso: “Tudo era
resolvido na farmácia com medicamentos de manipulação. Só havia um médico em
Mossoró, Almeida Castro”, conta. A doença mais comum era desinteria - diarréia
- em criança. Depois surgiu a tuberculose, mas logo apareceu a cura: “A
tuberculose era uma doença horrorosa. O doente sabia que a
doença era grave, mas enquanto tomava a medicação, tinha uma
esperança, pensava que seria curado, ficava mais alegre. Mas não tinha jeito”,
lamenta.
Hoje ele ri da Aids. Porque é uma doença que não tem sintoma: “De vez em quando
ouço: ‘Fulano é portador do vírus da Aids’. Eu pergunto: quais são os sintomas
dessenegócio? Eu não sei. Não sei se os médicos têm uma idéia do que a Aids faz
na gente. Porque ninguém sabe o que é. Eu estava conversando com meu filho -
Laete - e falei que um dia poderia aparecer um remédio para curar o câncer. Ele
disse: ‘Aí aparece outra doença pior’. Essa Aids tem muita propaganda
alertando. Tem durado muito. Parece que é um enfraquecimento no organismo.
Agora, de onde veio, não sei”, comenta.
Avesso a política conta: “Uma vez me empurraram e fui eleito vereador”, foi na
década de 1930, durante um golpe de estado com Getúlio Vargas. Mas o
mandato foi cortado na metade. Não quis retornar depois. Conheceu Getúlio
Vargas quando veio a Mossoró com seu guarda-costas, Gregório. Hospedaram-se na
casa onde hoje reside a viúva do seu tio Dix-neuf com a comitiva. Esteve com
Juscelino Kubitscheck e João Goulart num banquete oferecido na ACDP: “Depois
teve o doido do Jânio Quadros, com aquele olhar vesgo”, que em campanha
eleitoral, participou de um comício numa noite chuvosa na cidade.
Uma neta, Larissa, filha de Sandra e Laíre, acaba de ser eleita deputada
estadual e ele comenta satisfeito: “A mãe dela é deputada agora noutro degrau.
Doutor Laíre deixou. Daqui uns dias termina o mandato e estará desligado
completamente”, acredita, sem saber dos planos do filho.
Sobre o presidente eleito Lula: “É um sujeito muito voluntarioso, persistente e
preparado, também. É um camarada que tentou uma, duas, três e aí me lembro
daquele ditado ‘água mole em pedra dura tanto bate até que fura’. Taí, Lula.
Tem muita coisa esquisita. Ele não tem faculdade, mas dizem que tem certo
preparo. Vai ficar muita gente desempregada... E vai empregar muita gente que
está desempregada”, adverte.
Com problemas de osteoporose e na visão, doutor Lahyre não vê mais televisão,
diz que enxerga pouco: “Tenho duas cataratas do Niágara”, brinca. “E a vista
cada vez vai fechando. Eu peço a Deus que dê para eu enxergar ao menos dentro
de casa até morrer. Não meaperreio, não! Se meu destino é esse... Ninguém sabe
como vai morrer ou se fica sabendo de antemão”, brinca. Lembra que viu
uma entrevista de um geriatra na televisão dizendo que a média dos antigos
romanos era de vinte anos de idade: “Tão pouquinho, não dá nem para tomar
gosto. Aí perguntaram: ‘Com que idade o senhor acha que começamos a
envelhecer?’ Ele respondeu: ‘Depois dos trinta estamos deixando a vida’. Eu aperreei meus
netos dizendo: ‘Vocês já estão descendo’, diz soltando uma boa risada.
“Já estão descendo a escada. Ah! Ah! Ah!”, continua.
Ele fala também sobre clonagem humana: “Mas já estão fazendo até gente”, solta
uma grande risada e depois fica sério: “Ah! Meu Deus, eu não sei como ficou a
história daquele italiano que fez uma ovelha, não sei o quê”, esquece.
Informado que nesses dias foi anunciado o nascimento do primeiro bebê clonado:
“Mas não come, não bebe. Não vai, não! Isso aí, não dá para fazer, não! Já
achei muita coisa quando fizeram nascer de proveta. Junta o germe masculino, o
feminino, bota na proveta, quando dá-se fé: a fecundação. Pega o
óvulo e implanta de novo na mulher. O útero toma conta. Até aí vai. Tá bom!
Está compreensivo. Mas esse negócio aí... Tanta peça que a gente tem,
tanta coisa... não dá!”, comenta negando aceitar.
Longe das notícias no mundo diz que de rádio ele gostava de ouvir música
e notícias: “Mas não boto mais, não! Botei muito, li muito. Por toda vida. Ah!
Ah! Ah! O rádio não tem imagem, mas tem mais notícia do que a própria
televisão, não é? Mas me desinteressei”. Informado que na emissora de rádio de
seu filho Laíre, a FM 93, tem um programa político diariamente, que conta
com a participação do filho e do neto, o jornalista Cid Augusto, ele gosta da
informação e diz: “Não escutei nenhuma vez. Eu podia me acostumar a ouvir rádio
de novo. Tem mais notícia. Não se vê imagem, mas tem muito mais notícias. Cid
tem a vocação do bisavô materno dele, Jeremias da Escóssia, fundador de O
Mossoroense, juntamente com meu bisavô materno, Alfredo de Sousa Mello, que era
português.
Leitor voraz, diz que lia tudo, romance, policial e cita autores
franceses: “Gostava demais de ler, viu? Uma leitura variada. Meu pai gostava
muito também. Não fui empurrado para gostar, não! O que essa cabeça aqui já
leu...”, fica pensativo: “Meus olhos já podem pedir licença”, se entrega.
Além
de farmacêutico, doutor Lahyre também trabalhou como inspetor escolar federal
durante trinta e cinco anos. Ainda guarda de recordação o título da nomeação. A
partir de 1938 trabalhou no Ginásio Sagrado Coração de Maria, o famoso colégio
das freiras, quando ali funcionava somente o primário. Desse tempo uma
ex-aluna, hoje setentona, tem boas recordações do rapaz educadíssimo, que só
andava de paletó, gravata e um sapato que parecia de borracha, pois entrava na
sala de aula sem ninguém perceber: “Ele não perturbava ninguém, era o rapaz
mais bonito da cidade e as alunas avançadas faziam comentários do tipo:
‘Esse homem é bonito demais. Quem dera poder dar um cheiro nele. Não
tem namorada, né? Com quem será que ele vai se casar? Feliz a moça que se casar
com um rapaz desses, pois tão fino e bonito...”, recorda.
Acha graça porque Tibau se emancipou e hoje é cidade: “Tibau era um
morro. Comecei a frequentar desde menino. Tibau eram umas casinhas de palha. E
na beira da praia era bem
movimentada, tinha uns trapiches para
estender as redes. Eu puxei muita rede...”, lembra. O velho Rosado uma
vez mandou até vaca para lá. Era muito complicado chegar ali, mas hoje tem todo
um conforto”, encerrou o papo rindo porque nunca deu uma entrevista, essa foi a
primeira da sua vida.
Uma vez a filha Ilná, o entrevistou sobre Lampião em Mossoró. A entrevista foi
publicada no O Mossoroense e depois na Coleção Mossoroense, em livreto, onde
doutor Lahyre relata que cuidou da mãe doente, inclusive ficando com ela no
sítio, munido de espingarda, quando o bando de Lampião entrou em Mossoró.
* Lahyre Rosado faleceu em Mossoró no dia 22 de agosto de 2003.
Escrito pela jornalista Lúcia Rocha
http://www.luciarocha.com.br/2013_09_01_archive.html
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