Por Benedito Vasconcelos Mendes
Benedito Vasconcelos e esposa Susana Goretti
O Engenho de Cana-de-açúcar do Sítio Frecheiras era de tração animal (banguê),
do tipo Engenho de Almanjarra, e estava equipado para a fabricação de cachaça e
de rapadura. A decisão de produzir rapadura ou cachaça era dada pelo mercado.
Quando a comercialização da rapadura era economicamente mais vantajosa, meu avô
optava por fabricar rapadura, ou seja, a preferência por um ou outro produto
dependia da vantagem econômica. Era produzida uma coisa de cada vez,
nunca rapadura e cachaça ao mesmo tempo. Ano se produzia cachaça, ano se
produzia rapadura.
Meus avós passavam os três últimos meses do ano (outubro, novembro e
dezembro) no Sítio Frecheiras, em cima da Serra da Meruoca, na zona rural do
município cearense de Meruoca, produzindo goma e farinha de mandioca, rapadura
e cachaça. De janeiro a setembro eles ficavam na Fazenda Aracati, criando gado
e fazendo queijo de coalho e manteiga de garrafa. Na Serra da Meruoca, as
farinhadas e as moagens, geralmente, ocorriam nos meses de novembro e dezembro.
A matéria-prima, tanto para a produção de rapadura como de cachaça, é a garapa
(caldo de cana). A rapadura nada mais é do que garapa apurada pela fervura, até
se tornar sólida, e a cachaça é a garapa fermentada e destilada. Tanto a
rapadura como a cachaça artesanal são produtos naturais, sem adição de
corantes, conservantes ou de outras substâncias.
As moendas de ferro fundido, para esmagar a cana e extrair a garapa, eram
tangidas por duas juntas de boi, uma junta em cada almanjarra. Eram usadas
quatro juntas de boi, sendo duas juntas trabalhando e duas descansando,
de modo que, de dois em dois dias, os bois mansos eram substituídos. Os bois
eram adestrados para o trabalho, desde quando eram garrotes e obedeciam o
comando de voz e das cutucadas de ferrão dadas pelo tangerino. Todo boi manso
tinha um nome e era castrado, para se tornar mais dócil.
Lembro-me de um fato interessante, que ocorreu no Sítio Frecheiras. Certo dia,
em plena moagem, meu avô necessitou viajar à Sobral e deixou um dos
trabalhadores comandando os trabalhos de produção de rapadura.
Coincidentemente, neste dia, o tangerino que tocava as juntas de boi adoeceu e
não foi trabalhar. Foi então, improvisado um novo tangedor dos bois mansos. Ao
amarrar os bois nas almanjarras, o improvisado tangerino colocou o Boi Graúna,
no lado direito da almanjarra, mas ele era acostumado a trabalhar no lado
esquerdo, e colocou o Boi Juriti no lado esquerdo. O Juriti era condicionado a
puxar a almanjarra pelo lado direito. Esta troca de posição dos bois fizeram
com que esta junta de boi empancasse, não saísse do lugar. Depois de muitas
tentativas para fazer os bois andar e sem conseguir, o novo tangedor foi até
onde estava minha avó e relatou o fato dos dois bois não quererem
trabalhar. Minha avó, afeita à vida rural, logo percebeu que a posição dos bois
de uma das juntas estava trocada e facilmente resolveu o problema. É que os
animais ficam condicionados a realizarem determinadas tarefas, pelo exercício
repetitivo.
Na produção de cachaça artesanal, a garapa é coletada na moenda e levada para
as dornas de fermentação. As dornas são confeccionadas de pau-d’arco, bálsamo,
imburana ou frejó. A dorna tem a tampa quase totalmente fechada, apenas
com uma abertura no centro, para permitir a entrada de ar, pois a levedura responsável
pela fermentação alcoólica é, preferencialmente, aeróbia. Depois que a garapa é
fermentada, transforma-se em mosto. A boca da dorna não é totalmente
aberta, para evitar que o mosto derrame durante o “ balanço do caldo“,
pois devido ao grande desprendimento de gás carbônico, oriundo do metabolismo
da levedura, o líquido (mosto) entra em movimento, que só vai cessar no final
do processo fermentativo. Em virtude do acelerado metabolismo da levedura, além
da grande liberação de gás, ocorre também liberação de calor, que faz com que o
mosto fique muito quente. Depois de fermentado, o mosto esfria e para de
balançar. O mosto, então, é levado para o caldeirão (panelão) de cobre, situado
sobre um forno à lenha. O vapor gerado pela fervura do mosto, ao penetrar na
serpentina de cobre, se liquefaz (passa do estado gasoso para o estado
líquido). A serpentina ficava mergulhada em um tanque com água, para permanecer
sempre fria. O alambique (panelão e serpentina) do Sítio Frecheiras era de
cobre, o que hoje é proibido, devido deixar resíduo deste metal na cachaça.
Atualmente, os alambiques (destiladores) são de aço inox.
O microrganismo responsável pela fermentação alcoólica é a levedura
“Saccharomyces cerevisiae”, que não necessita ser adicionada, pois ela existe
naturalmente no ambiente dos engenhos. Na produção de cachaça artesanal, a
fermentação se processa de maneira lenta, fermentando por aproximadamente 6
dias. Na fabricação de cachaça industrial (cachaça de rótulo ou de marca), a
fermentação é acelerada pela adição de determinadas substâncias nutritivas para
a levedura (carboidratos, suplementos proteicos, suplementos vitamínicos, sais
minerais etc.), que reduz o tempo de fermentação para cerca de 6 horas. Neste
tipo de cachaça industrial é também comum a adição de corante, para que a
cachaça adquira a coloração amarelinha. A cachaça artesanal, depois de
produzida, era armazenada em tonéis de madeira, para envelhecer. As aduelas dos
tonéis são feitas das mesmas madeiras utilizadas para a feitura das dornas, ou
seja, são confeccionadas de Pau-d’arco, Bálsamo, Frejó ou Imburana.
Os bodegueiros da cidade e da zona rural de Meruoca iam comprar cachaça no
Sítio Frecheiras. Transportavam a cachaça em ancoretas de madeira de imburana,
com capacidade para 24 litros cada, sobre lombos de animais (jumentos ou
burros). Os compradores traziam também uma pequena ancoreta de 5 litros, que
eles davam o nome de “Passaporte” e se destinava a transportar o “brinde”, que,
geralmente, ganhavam do proprietário do engenho.
O plantio da cana-de-açúcar, os tratos culturais, o corte da cana, o
transporte da cana do campo para o engenho e o esmagamento da cana, para
extrair a garapa, são processos comuns, tanto para a produção de rapadura como
para a fabricação de cachaça.
Na produção de rapadura, a garapa é levada da moenda para um grande caldeirão
de ferro fundido, localizado sobre um comprido forno à lenha, que pelo efeito
da fervura se torna mais concentrada e se transforma em mel e, quando o mel
adquire consistência mais densa, é transferido, com auxílio de uma cuité de
cabo longo, para o caldeirão vizinho e, com o passar do tempo, com mais
fervura, o mel fica mais condensado, quase pastoso, ocasião em que ele é
novamente transferido para o terceiro caldeirão e daí, quando adquirir a
consistência cremosa, é levado para o quarto e último caldeirão, onde vai
esperar atingir o ponto de rapadura, para ser batido, com uma palheta de
madeira, e depois colocado nas formas, para esfriar e solidificar, originando,
assim, a rapadura. Os quatro caldeirões de ferro fundido eram colocados vizinho
um ao outro e sobre um longo forno de quatro bocas, com grandes aberturas na
parte de baixo, para receber a lenha. As fôrmas de rapadura, feitas de
Pau-d’arco, tinham a marca do ferro de ferrar gado do meu avô, de modo que cada
rapadura exibia, em alto relevo, a gravura do referido ferro. Meu avô tinha o
costume de ferrar, com a sua marca de ferrar gado, portas, janelas, cancelas,
caixões de guardar rapadura e farinha, gamelas, cochos, queijo de coalho e
outros objetos.
As rapaduras do Sítio Frecheiras eram grandes, pesavam aproximadamente um
quilo, eram duras e tinham a coloração escura, quase preta, em
virtude da não adição de branqueadores (elevadores de pH: cal ou cinza
vegetal). O mel ácido origina rapadura escura. Quando se faz a correção da
acidez do caldo, a rapadura é clareada. Elas eram duras para facilitar a
conservação, pois quanto mais dura, mais difícil absorver umidade e melar. O
mestre que comandava a feitura de rapadura no Sítio Frecheiras sabia
determinar, com precisão, o momento que o mel grosso, do último caldeirão,
atingia o ponto para ser batido com a palheta, até alcançar o ponto de ser
colocado nas formas de rapadura. As rapaduras eram armazenadas em grandes
caixões de cedro, hermeticamente fechados, para evitar a penetração de umidade,
pois se o ar úmido, que é comum no período chuvoso, entrar no caixão vai
provocar a mela da rapadura. As rapaduras eram colocadas no interior do caixão,
alternando camada de rapadura (arrumadas enfileiradas em pé ) com camada de
folhas secas de cana. A palha seca é higroscópica e absorve a umidade, que por
ventura penetre no caixão. Estes caixões de guardar rapadura, de um ano para
outro, eram confeccionados pelos velhos carapinas, com apenas cinco apetrechos
de trabalho: machado, serrote de dois cabos, enchó, formão e cantil. O machado
era usado para lavrar as toras de madeira, deixando-as com quatro faces. O
serrote, para serrar as tábuas, a enchó para dar o acabamento, o cantil para
fazer os encaixes nas tábuas (macho e fêmea) e o formão, para fazer os encaixes
dos cantos (colunas). Não se usava pregos nem parafusos na construção destes
recipientes, pois as tábuas eram apenas encaixadas uma na outra. As madeiras
usadas nestes caixões eram: aroeira, pau-d’arco, imburana, cumaru, frejó,
timbaúba e cedro. O caixão era feito no local onde ia ficar, pois, por ser
grande, não passava nas portas. Para mudar de lugar era necessário desmontá-lo.
O ambiente de engenho era exclusivamente masculino, pois quase todas as tarefas
eram executadas por homens. As mulheres só tomavam parte na feitura de batidas,
tijolinhos e alfenins, quando estes doces eram temperados com coco-babaçu,
castanha de caju e cravo-da-índia. Para se fazer o alfenim, a geleia tinha que
ser puxada repetidas vezes, pelas mulheres até atingir a cor amarelinha e a
consistência apropriada. A produção destas guloseimas pelas mulheres tornavam o
ambiente mais festivo, com muita alegria e animação.
Quando a moagem terminava, meu avô presenteava cada trabalhador, com uma certa
quantidade de rapadura, como recompensa pelo trabalho executado por cada um.
Estas são as doces lembranças de minha infância, que conservo até os dias de
hoje, do Engenho de cana-de-açúcar do Sítio Frecheiras do meu avô paterno.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
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