*Rangel Alves
da Costa
Todos se
exaurem das tratativas de tocaias e mortes. Todos se cansam das estratégias de
vingança. Todos se enfadam de tantas ordens dadas e de tantas ordens recebidas.
Mas os rifles não.
Os rifles têm
de estar continuamente em sentinela, em vigília constante, de boca aberta e
olhos atentos. Os rifles não repousam senão ao lado de mãos embrutecidas e
dedos vorazes para apertar seus gatilhos.
Coronel
Teovegildo diz ter suas razões para manter matadores dia e noite a seu dispor.
Ou faz assim ou os inimigos chegam primeiro e fazem jorrar pelo terno de linho
branco o sangue muito mais da desonra do que da morte.
Coronel
Fenelon diz ter seus motivos para manter tantos jagunços e pistoleiros prontos
tanto para o ataque como para a defesa. As inimizades semeadas agora tendem a
vingar um mundo de revides sobre si e sua família. Todos estão jurados de morte
certa.
Coronel Sá de
Quaranta diz ter justificativas mais que suficientes para viver rodeado de
homens ramados até os dentes. Os seus desafetos rodeiam seus latifúndios como
urubus buscando carniça pra se fartar. Gaviões e carcarás povoam seus terríveis
pesadelos.
Há, num mundo
assim, um império de rifles, de vinditas de sangue, de desmedidas violências.
Cada coronel quer, através das armas e do terror, impor-se sobre o outro a
qualquer custo. É o preço do mando, da honra e do poder.
Preço do
mando, da honra e do poder, mas também uma doença com feição incurável pelos
latifúndios e posses das distâncias nordestinas. Males crônicos que vingam nos
casarões e sobrados e se estendem pela terra tingida da vermelhidão putrefata
da violência.
Os motivos?
São muitos. Cabidos e descabidos, justificados e aberrantes. Mas quem há de
falar em justa motivação quando o coronel quer, a todo custo, não só fazer
prosperar seu império de poder como dizimar todo aquele igualmente poderoso que
se mostra como pedra na botina?
Rixas históricas,
confrontos quase épicos senão vergonhosos para a história a ser contada. E os
livros com o dever de abrir suas páginas para situações verdadeiramente
escabrosas das lutas entre coronéis e suas tropas de desalmados. Bala zunindo,
os rifles sedentos de sangue, covas rasas ou carcaças deixadas pelos bicos
afiados.
Na
conflagração das guerras de poder e honra, não somente os coronéis são
personagens principais. Os sobrenomes familiares se envolvem de tal modo nas
desavenças que a morte de qualquer é sempre motivo para a deflagração de
revides intermináveis.
Assim, se um
familiar do Coronel Teovegildo é tocaiado e morto, que não se espere apenas o
pranto. Daí em diante terá início uma caçada sem fim aos algozes. É a honra
familiar berrando, gritando, bravejando terror.
Se um parente do
Coronel Fenelon ou do Coronel Sá Quaranta tomba pelo cuspe do rifle dos homens
de qualquer outro coronel, logo o mundo parece que vai acabar. E o sangue vai
respingando em irmão, em primo, em afilhado, até em amigo. E as cruzes vão se
somando nas guerras familiares.
Vinditas
antigas, de raízes as mais distantes. Guerras se muitas vezes se iniciaram pela
disputa de terras, pelas espertas demarcações, pelas invasões premeditadas. O
acinte de um é logo traduzido pelo outro como um chamamento ao duelo. Mas mesmo
os dois desafetos tombando, as rixas repassam para os sobrenomes familiares.
Por isso mesmo
que historicamente as famílias permanecem em vingança após vingança. O troco
pela morte de um se dá pela morte de outro, ou mais de um, da outra família.
Mesmo quem com menos violência nos dias recentes, ainda perduram os ódios, os
confrontos e a cusparada dos rifles. Tiro após tiro, bala após bala, morte após
morte, assim o mundo medonho e doentio da honra e do poder familiar
coronelista.
Em tal
configuração, os rifles nunca descansam, nunca adormecem, nunca são deixados
esquecidos num canto. Igualmente, agora travestidos de matadores de aluguel, os
antigos jagunços continuam em alerta ao recebimento de ordens. Basta que um
serviço tenha de ser feito, então a tocaia é logo preparada, a emboscada é
colocada em ação.
Jagunço é
bicho desalmado. Mão fria e traiçoeira, impiedoso aperto de gatilho. Não há
gente diante de sua mira, apenas um bicho qualquer que merece morrer. Não é
diferente com os matadores de hoje. A covardia é sempre a mesma, a violência é
sempre a mesma, o cuspe da arma nunca muda nesse mundo bárbaro e atroz.
Por isso mesmo
que os senhores do sangue e do mando lançam mão de pessoas tão bestiais para os
seus intentos igualmente bestiais. Como o jagunço ou o matador não respeita
senão ao mandante e ao gatilho, o que se tem a devastação de famílias inteiras
pela boca dos rifles, pelos canos famintos de sangue.
Os rifles de
outrora são os mesmos rifles de hoje, ainda que em nome de outras armas ainda
mais potentes. Mas a situação é a mesma. Apenas cuspir fogo para a desgraça
alheia, para o último gemido de vidas entrelaçadas pelas sangrentas vinditas.
Escritor
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