Antônio Corrêa SobrinhoLampião,
Cangaço e Nordeste
Compartilho
com os amigos o texto que acabo de ler: a entrevista concedida pelo pesquisador
e escritor Frederico Pernambucano ao jornal O GLOBO, de 04 de setembro de 2004.
Nela, o notável estudioso do cangaço, honesta e humildemente, revê seu conceito
sobre o cangaceiro Virgulino Lampião.
NEM BANDIDO,
NEM MOCINHO
Historiador
diz que o cangaço não deve ser visto como monstruosidade, e sim como
resistência.
Há mais de 30
anos pesquisando o cangaço, o historiador Frederico Pernambucano de Mello acaba
de lançar “Guerreiros do sol” em Paris, o que motivou a produção de um
documentário por um canal franco-alemão sobre a vida de Lampião. Publicado pela
primeira vez há duas décadas o livro ganhou edição revista ampliada e cheia de
novidades, graças a um esforço conjunto das editoras Massangana e A Girafa.
“Guerreiros do sol” foge da cômoda e clássica explicação pela ótica marxista,
segundo a qual o cangaço seria apenas uma reação ao coronelismo vigente no
sertão nordestino e à concentração de terras. Em entrevista ao GLOBO, o autor
revê seu conceito sobre Lampião, a quem não considera mais um “rebelde sem
causa”.
Letícia Lins
O GLOBO:
Lampião, o rei do cangaço, suscita sempre discussões maniqueístas e
apaixonadas. Para uns é um herói, para outros um bandido. O senhor ainda o
define como um rebelde sem causa com fazia há 20 anos?
FREDERICO
PERNAMBUCANO: Eu estava errado. Sou um cientista social que foi salvo no
momento em que foi assaltado pela arte. Foi a estética do cangaço que me
revelou que eu não poderia trabalhar um tema a partir somente de um conceito
jurídico ou sociológico. Mas sim a partir de alguma coisa muito mais profunda
que sintonizava com a alma do brasileiro, com sua formação colonial. Posso
dizer que como cientista social fui assaltado pela estética. Não diria mais que
Lampião foi um rebelde sem causa. Nesse momento isso fica resolvido dentro do
conceito irredentismo.
- Por que
irredentismo?
FREDERICO:
Porque eram grupos que pretendiam manter a todo custo, até pelas armas, seus
padrões de existência e não queriam trocá-los pelos do invasor ou pelos do
colonizador. O cangaço é apenas uma das muitas rebeldias brasileiras, e é
importante que não seja mostrado simplesmente como uma monstruosidade, de uma
teratologia, porque não foi. O cangaço é um fenômeno tão digno de estudo na
História do Brasil quanto o levante indígena, o quilombo negro, a revolução
social profana ou religiosa, como a Pedra do Reino, Caldeirão, Serra do
Rodeador, Canudos e outras.
- Então, nem
herói, nem bandido, mas um resistente?
FREDERICO: Era
um resistente a favor dos valores arcaicos da sociedade sertaneja, a exemplo
dos que agiram no litoral em defesa dos valores tradicionais da sociedade
brasileira, que é extremamente violenta na sua formação por todos os lados que
você possa se valer para defini-la.
- Como a
estética do cangaço mudou seu conceito sobre Lampião?
FREDERICO: O
que caracteriza alguma nobreza por parte do cangaceiro é que enquanto o
criminoso comum tende à ocultação, o cangaceiro é fascinantemente o oposto
disso. O cangaceiro tinha indumentária tão especial que se compara em
elaboração apenas à usada por algumas tribos indígenas em dia de festa. Não
conheço outro grupo social no Brasil cujos trajes se comparem à imponência do
cangaceiro Corisco, de Lampião. O traje era ostensivo, imponente, declarador da
condição de cangaceiro. Por essa estética chega-se à conclusão de que eles não
eram simplesmente criminosos que tendem à ocultação. Os cangaceiros estavam
imbuídos de valores maiores do que a simples ideia da prática do crime.
- Por que os
cangaceiros evitavam a ocultação?
FREDERICO:
Eles se sentiam investidos de um mandato mais antigo e mais profundo do que a
lei litorânea queria brandir contra eles no sertão. Esse mandato vai sintonizar
com a ideia do mito primordial do brasileiro de que aqui era possível viver sem
lei nem rei e ser feliz.
- Enxergar o
cangaço pelo ângulo do materialismo histórico é um equívoco?
FREDERICO: É.
Quando escrevi o livro estava entre o referencial teórico acadêmico no curso de
direito e a minha convivência de afilhado com o ex-cangaceiro Medalha, amigo de
infância de Lampião. No sertão, havia uma realidade. No litoral onde eu me
encontrava, o marxismo prêt-à-porter dominava o meio acadêmico. Para os
marxistas, a montagem do fenômeno era simples: precisamos de um opressor, é o
coronel; precisamos de um oprimido, é o cangaceiro. Já estava tudo
metodologicamente resolvido. Medalha me fez ver que interpretar o cangaço pela
metodologia do materialismo histórico não me conduziria a explicar o fenômeno
em sua completude. Como toda concepção estrutural em História, a do cangaço sob
a ótica marxista pode parecer empobrecedora.
- Como é que
Medalha, um ex-cangaceiro sertanejo, pode mudar um conceito filosófico?
FREDERICO:
Quando eu conversava com Medalha, ele me dizia que Lampião era louco por
coronéis sertanejos, que os coronéis também eram loucos por ele e que muitas
vezes agiam de conluio. Lampião tinha um trato urbano agradabilíssimo, era um
sedutor de coronéis e seu braço era longo para muitas missões. O polo de
conflito era entre os litorâneos e os sertanejos, mas não entre coronéis e
cangaceiros sertanejos.
- Então,
apesar de ser cangaceiro, Lampião sonhava mesmo era em ser um coronel?
FREDERICO: Ele
quis e chegou a ser um cangaceiro dos mais bem-sucedidos, um coronel da
caatinga. Não tendo na terra a sua fonte de poder, substituiu a terra pelo
fuzil, e o fuzil é inexoravelmente uma fonte de poder em qualquer lugar. Os
cangaceiros foram coronéis sem-terra e se relacionavam como eles de igual para
igual. Havendo motivo pessoal, eles rompiam e aí se tratava uma espécie de
guerra entre coronéis.
- Se o cangaço
não foi uma reação ao coronelismo, teria sido uma forma de suprir a ausência do
Estado?
FREDERICO:
Essa travessia das formas de criminalidade grupal acontece realmente no momento
em que não há presença do Estado no sertão. De certa forma, esses grupos
armados protagonizavam um tipo de ordem. Nessa época os coronéis eram a lei
onde não havia lei nenhuma. Quando o Estado aparecia, o grupo se tornava
intolerável e passava a ser a expressão da criminalidade. Convém assinalar
também que o cangaço aflorava nos momentos de maior desorganização social, como
nas secas. Nos momentos de conflito político também aflorava.
- Como no caso
da passagem da Coluna Prestes pelo sertão?
FREDERICO:
Lampião recebeu um dramático chamado do Padre Cícero, porque o “revoltoso”
(prestes) estava seguindo para o Ceará, onde poderia “arrancar a batina do
padre velho e desmoralizá-lo”. Lampião compareceu a Juazeiro do Norte, mas o
álter ego do padre, o deputado Floro Bartolomeu da Costa, adoeceu e viajou para
o Rio de Janeiro. O funcionário mais graduado da cidade era o inspetor do
Ministério da Agricultura, que dialogou com Lampião, que receberia a patente de
capitão honorário das forças legais contra os revoltosos. A patente é assinada
pela única autoridade federal presente à cidade, Pedro Albuquerque Uchôa, que
estava em Juazeiro combatendo a praga da lagarta rosada. Lampião, portanto,
passa a ser um legalista por alguns momentos. Chega a trocar o chapéu de
cangaceiro – símbolo máximo do irredentismo – pelo chapéu de feltro dos
batalhões patrióticos, e se investe na condição de representante do governo
federal, já que Bartolomeu era amigo íntimo do então presidente Artur
Bernardes.
- É incrível
como Lampião valorizava a aparência. Ele era bom marqueteiro?
FREDERICO: Com
certeza. Ele tinha muita consciência da importância da imagem. Era um homem
inteligente. Defini-lo como vulgar é um erra clamoroso. Ele tinha consciência
da importância da imagem e por isso nunca desdenhou de fotógrafos e
cinegrafistas. O ciclo do cangaço é um dos mais bem documentados
fotograficamente. Lampião produzia sua própria imagem não só do ponto de vista
estético, mas também a partir do imaginário que se difundia sobre ele.
- Além de
Lampião e seu bando, quantos outros grupos de cangaço atuaram no Nordeste?
FREDERICO:
Descrevo 44 grupos de cangaceiros nessa edição, mas a próxima já sai com 54,
todos devidamente documentados.
- O cangaço
pode ressurgir no Brasil? A guerrilha urbana seria o cangaço do asfalto?
FREDERICO:
Quando a lei oblitera, quando não há eficácia na ação do Estado, volta-se à
ideia de que é rentável viver sem lei nem rei. Se o cangaço pode ter sio
endêmico, a criminalidade hoje é epidêmica. O escudo ético utilizado pelos
cangaceiros era a vingança, muitos alegavam ter sido essa a primeira motivação
para ingressar nos bandos. Hoje também se vê o escudo ético, do tipo “estou
nessa vida porque sofri aquilo”.
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