Por: Rangel Alves
da Costa(*)
O MENINO E O CALANGO
O calango não
era nem daqueles pequenos lagartos acostumados a viver embrenhados nas
moradias, subindo pelas paredes de barro ou se escondendo nas tocas existentes
por todo canto. Não. Este era um réptil de mataria, com moradia por cima da
terra e lajedos e sempre avistado por cima das pedras grandes.
Não há quem
goste mais de tomar sol do que o calango. Sertões adentro e onde houver uma
pedra robusta ali haverá de estar uma cabeça-de-frade e um calango.
Estranhamente, o cacto achatado e de cabeça rosácea nasce por cima do rochedo e
ali permanece uma eternidade como prova dos mistérios da natureza.
Já o calango
sempre é avistado por lá porque é considerado bicho curioso demais, sempre
atento ao que se passa ao redor. Além de não fechar os olhos um só instante,
não para de balançar a cabeça de canto a outro. E se um predador chega por trás
e lhe acerta o rabo, ali mesmo deixa o pedaço e foge como um foguete,
ziguezagueando pela terra abrasada.
Foi numa
dessas correrias que o calango foi parar na malhada da casa do menino. Tapera
sertaneja, feita de barro, cipó e graveto como ripa, nem telhado possuía. Acaso
chuva caísse por ali certamente um tanto empoçaria o barro do chão e o outro
escorreria pelas folhagens secas. E dentro dela uma família sertaneja: o pai, a
mãe e o filho.
Na correria
que chegou, o calango se entocou numa loca de pedra que ficava bem ao lado da
moradia. Seu objetivo era ficar no local o tempo suficiente para que seu rabo
despontasse novamente, e seria coisa de não demorar muito. No dia seguinte,
colocou a cabeça do lado de fora e avistou um meninote brincando pelo chão com
duas pontas de vaca.
Percebeu o
menino, ficou admirando seu jeito paciente de tanger sua boiada de dois, mas
não foi percebida. No dia seguinte a mesma coisa. Quando sentiu que já estava
refeito para novamente enfrentar aquele chão sertanejo cheio de pedras,
espinhos e asperezas, então decidiu tomar banho de sol de corpo inteiro. E
subiu na pedra, bem defronte de onde estava o menino brincando.
Dessa vez o
pequeno sertanejo lançou-lhe um olhar mais que admirado. Já havia avistado
muitos calangos, bribas, catengas, lagartixas e até teiús, mas não daquele
modo. Pela primeira vez sentia que o animal não se assustava, não saía em
disparada, não se danava no oco do mundo. Pelo contrário, aquele calango
parecia olhar bem no seu olhar, mirando e admirando como a um velho conhecido.
O sertanejinho
colocou as pontas de lado e se arrastou até mais perto da pedra. E o calango
parecia imóvel e de olhos nele fixados. Foi quando ouviu da miúda boca
sertaneja que era melhor ele ir embora, pois diante daquela situação de fome,
certamente ele iria ser assado se fosse encontrado por seu pai. E em seguida
espantou-o para que descesse da pedra e seguisse adiante.
Contudo, no
dia seguinte e na mesma hora, eis que o pequeno fazendeiro de ponta de vaca
olha de lado e lá encontra o altivo réptil em cima da pedra, mirando-o. E quase
repetiu a advertência: Gostei muito de você, viu seu calanguinho. Até que eu ia
achar muito bom se você descesse daí e também quisesse brincar comigo. Mas hoje
não há nada pra comer em casa e se meu pai aparecer você vai ser comido com
farinha seca. Então vá embora, vá! E novamente fez com que o outro sumisse dali
como raio.
Mas a mesma
cena no dia seguinte. Dessa vez o calango achou o menino mais triste, mais
cabisbaixo, parecendo choroso, agoniado. Voz tivesse para perguntar o que tanto
lhe afligia. Também estranhou foi o fato de não ser repreendido, de não ser
forçado a pular da pedra e ir embora. Estranho demais, pensou o calango. E
desceu da pedra devagarzinho e foi se juntar ao menino. Os seus olhos estavam
molhados, chorosos, logo percebeu.
O calango ali
continuou, se fez de brinquedo, correu de canto a outro, tudo tentou para
alegrar o menino. Mas este calado estava e calado ficou, mas só até o momento
em que o rastejante quis subir na sua mão. Então resolveu segurá-lo
cuidadosamente, levantou até os olhos e disse: Pela última vez, não quero mais você
aqui de jeito nenhum. Como amigo peço que vá embora agora mesmo se não quiser
ser encontrado e acertado por meu pai. Hoje foi a vez de minha mãe chorar de
barriga vazia, mas não por ela. Você sabe por quem. Então vá.
O calango não
voltou no dia seguinte. Mas no outro sim. A mãe estava prostrada enfraquecida
numa cama e o pai em tempo de enlouquecer, sem saber o que fazer pra encontrar
qualquer alimento. E foi quando o seu filho entrou levando à mão um calango
morto. Toma pai, asse na brasa e dê a mãe. Disse chorando.
Rangel Alves
da Costa, nascido em 1963, é natural de Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano
do São Francisco. É advogado e escritor, e reside em Aracaju. Já publicou os
seguintes livros: Estórias dos Quatro Ventos (crônicas), Memória Cativa – O
Sertão em Prosa e Verso, Sertão - Poesia e Prosa, Tempestade (romance), Ilha
das Flores (romance), Evangelho Segundo a Solidão (romance), Desconhecidos
(romance), Todo Inverso (poesias), Já Outono (poesias), Poesia Artesã
(poesias), Andante (poesias), O Livro das Palavras Tristes (crônicas), Crônicas
Sertanejas (crônicas), Crônicas de Sol Chovendo (crônicas), Três Contos de
Avoar (contos), A Solidão e a Árvore e outros contos (contos), Poço Redondo –
Relatos Sobre o Refúgio do Sol, Da Arte da Sobrevivência no Sertão, Estudos
Para Cordel (prosa rimada sobre o cordel). Participou também da coletânea
Gandavos - Contando outras histórias. Possui outros livros prontos para
publicação, dentre os quais Nas mãos de Deus: um romance de injustiça e Entre a
Ficção e a História - O Cangaço Imaginário. Colabora com artigos para o Jornal
do Dia, de Aracaju. Diversos sites também publicam seus textos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Se você gosta
de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com