*Rangel Alves
da Costa
Por que sou
mais passado que presente, a cada dia do dia a dia de repente me desperto como
se vivenciando as velhas estradas nos tempos idos. Então é quando:
Ainda ouço o
vento quebrando folhagens no entardecer antigo na minha terra sertão. Ainda
ouço o feijão sendo batido sobre a terra nua sob o calor sertanejo. Ainda ouço
a voz chamando da porta da frente e dizendo que se não entrasse logo em casa ia
tomar chinelada na bunda. Ainda ouço o vaqueiro tangendo o gado pelos estradões
empoeirados adiante. Ainda ouço os murmúrios das águas do riachinho em tempos
de cheias. Ainda ouço o cantar passarinheiro no dourado alvorecer. Ainda ouço o
aboio e a toada do sertanejo ao pé do balcão e diante de uma talagada de pinga.
Por que
mantenho em mim velhas molduras de retratos antigos e deles faço meu reencontro
com aquilo que vivi um dia, jamais me distancio daqueles tempos onde viver era
muito mais prazeroso. Então tudo ressurge nas vagas das saudades e
relembranças, assim:
Ainda ouço o
berrar do bicho vagando faminto pelo descampado cinzento. Ainda ouço o grilo no
pé de pau e sem ninguém poder encontrá-lo para acabar com aquele insuportável
cricricri. Ainda ouço o mamão maduro caindo no quintal da velha vizinha. Ainda
ouço o som da mão do pilão descendo na fundura da madeira e espalhando pó de
arroz e café por todo lado. Ainda ouço o velho sertanejo jogado ao chão o feixe
de lenha para alimentar o fogo de chão. Ainda ouço a vizinha gritar com cabo de
vassoura à mão e em perseguição ao menino danado que pulou o carcado para
roubar manga madura. Ainda ouço o leiteiro passando e dizendo que o leite ainda
estava caindo do peito da vaca. Ainda ouço a vendedora de piau salgado
oferecendo seu peixe pelas ladeiras empoeiradas. Ainda ouço o velho sapateiro
batendo no couro, pregando a borracha, martelando enfeites. Ainda ouço a menina
do arroz doce gritando sua delícia de todo entardecer.
Reencontros e
olhares distantes, como se na porta dos fundos estivessem os quintais da
felicidade, tudo nascido num tempo humilde e singelo, tudo agora transformado
somente em saudade. E por isso que me vem à memória:
Ainda ouço a
batida do copo no balcão e a pinga descendo até a altura da borda. Ainda ouço o
retratista dizendo que olha o passarinho e depois apertar o gatilho para a três
por quatro. Ainda ouço a música o milionário ecoar nas alturas para dizer que o
parque já estava aberto para os jogos e as brincadeiras. Ainda ouço a
verdureira oferecendo os frutos da terra logo ao amanhecer. Ainda ouço a
chegada cansada e a batida na porta dizendo oi de casa, oi de casa, oi de casa.
E de lá de dentro responder oi de fora, oi de fora, oi de fora. Ainda ouço as
beatas quase gemendo lamentos em procissão. Ainda ouço o vendeirim dizendo que
se não tiver dinheiro nem passe adiante da porta da mercearia. Ainda ouço o
mesmo vendeirim dizendo que era tudo brincadeira, pois no caderninho a
confiança em cada um. Ainda ouço a comadre fofoqueira babando aleivosias ao
falar da vida alheia.
Ainda ouço a
vizinha chamar a outro pela cerca do quintal para perguntar se a amiga já sabia
que a mocinha sonsa estava buchada. Ainda ouço a festança matuta pela chegada
da trovoada, os trovões e os relâmpagos, e depois os medos pela acabação de
mundo. Ainda ouço a chuva caindo sobre a terra e a catingueira ranger como se
não suportasse no osso a ponta afiada do pingo d’água. Ainda ouço o sertanejo chiqueirando
ao entardecer, tangendo o bicho para o curral e o berro do bicho renegado o
curral. Ainda ouço a correria do pai de família em busca da parteira, para não
demorar muito e ouvir o choro da criancinha. Ainda ouço o sino da igrejinha na
boca da noite e o chamado para a reza e a oração de cada anoitecer. Ainda ouço
o azulão cantador, o coleirinho arretado de bom, o sabiá festeiro. Ainda ouço o
choro, o pranto e o grito de sofrimento da família surpreendida com a morte de
um dos seus no meio da noite.
Ainda ouço o
fogo crepitando debaixo da cuscuzeira, da chaleira de café torrado, do doce ou
da cocada. Ainda ouço o cachorro latindo perto da porteira e o cavalo alazão
riscando o retorno depois da distante viagem. Ainda ouço o rangido do
carro-de-bois na terra nua e espinhenta, dobrando a curva e sumindo na vereda
da mataria. Ainda ouço o galo anunciando a hora de levantar quando o sertanejo
desde muito já levantou. Ainda ouço a boiada passando além da janela, o
vaqueiro gritando, o chicote lanhando, a estripulia da vida. Ainda ouço a
menina conversando com sua boneca de pano, o menino delirando com seu cavalo de
pau, a meninada cantando e fazendo a roda a rodar nas noites de lua cheia.
E tanto mais
que ainda ouço. O que não ouço eu vejo pelo espelho da memória. E me encontro e
me reencontro. Também estou naquele passado imorredouro.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
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