Seguidores

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

OS ECOS DAS NOSTALGIAS

*Rangel Alves da Costa

Por que sou mais passado que presente, a cada dia do dia a dia de repente me desperto como se vivenciando as velhas estradas nos tempos idos. Então é quando:

Ainda ouço o vento quebrando folhagens no entardecer antigo na minha terra sertão. Ainda ouço o feijão sendo batido sobre a terra nua sob o calor sertanejo. Ainda ouço a voz chamando da porta da frente e dizendo que se não entrasse logo em casa ia tomar chinelada na bunda. Ainda ouço o vaqueiro tangendo o gado pelos estradões empoeirados adiante. Ainda ouço os murmúrios das águas do riachinho em tempos de cheias. Ainda ouço o cantar passarinheiro no dourado alvorecer. Ainda ouço o aboio e a toada do sertanejo ao pé do balcão e diante de uma talagada de pinga.

Por que mantenho em mim velhas molduras de retratos antigos e deles faço meu reencontro com aquilo que vivi um dia, jamais me distancio daqueles tempos onde viver era muito mais prazeroso. Então tudo ressurge nas vagas das saudades e relembranças, assim:

Ainda ouço o berrar do bicho vagando faminto pelo descampado cinzento. Ainda ouço o grilo no pé de pau e sem ninguém poder encontrá-lo para acabar com aquele insuportável cricricri. Ainda ouço o mamão maduro caindo no quintal da velha vizinha. Ainda ouço o som da mão do pilão descendo na fundura da madeira e espalhando pó de arroz e café por todo lado. Ainda ouço o velho sertanejo jogado ao chão o feixe de lenha para alimentar o fogo de chão. Ainda ouço a vizinha gritar com cabo de vassoura à mão e em perseguição ao menino danado que pulou o carcado para roubar manga madura. Ainda ouço o leiteiro passando e dizendo que o leite ainda estava caindo do peito da vaca. Ainda ouço a vendedora de piau salgado oferecendo seu peixe pelas ladeiras empoeiradas. Ainda ouço o velho sapateiro batendo no couro, pregando a borracha, martelando enfeites. Ainda ouço a menina do arroz doce gritando sua delícia de todo entardecer.

Reencontros e olhares distantes, como se na porta dos fundos estivessem os quintais da felicidade, tudo nascido num tempo humilde e singelo, tudo agora transformado somente em saudade. E por isso que me vem à memória:


Ainda ouço a batida do copo no balcão e a pinga descendo até a altura da borda. Ainda ouço o retratista dizendo que olha o passarinho e depois apertar o gatilho para a três por quatro. Ainda ouço a música o milionário ecoar nas alturas para dizer que o parque já estava aberto para os jogos e as brincadeiras. Ainda ouço a verdureira oferecendo os frutos da terra logo ao amanhecer. Ainda ouço a chegada cansada e a batida na porta dizendo oi de casa, oi de casa, oi de casa. E de lá de dentro responder oi de fora, oi de fora, oi de fora. Ainda ouço as beatas quase gemendo lamentos em procissão. Ainda ouço o vendeirim dizendo que se não tiver dinheiro nem passe adiante da porta da mercearia. Ainda ouço o mesmo vendeirim dizendo que era tudo brincadeira, pois no caderninho a confiança em cada um. Ainda ouço a comadre fofoqueira babando aleivosias ao falar da vida alheia.

Ainda ouço a vizinha chamar a outro pela cerca do quintal para perguntar se a amiga já sabia que a mocinha sonsa estava buchada. Ainda ouço a festança matuta pela chegada da trovoada, os trovões e os relâmpagos, e depois os medos pela acabação de mundo. Ainda ouço a chuva caindo sobre a terra e a catingueira ranger como se não suportasse no osso a ponta afiada do pingo d’água. Ainda ouço o sertanejo chiqueirando ao entardecer, tangendo o bicho para o curral e o berro do bicho renegado o curral. Ainda ouço a correria do pai de família em busca da parteira, para não demorar muito e ouvir o choro da criancinha. Ainda ouço o sino da igrejinha na boca da noite e o chamado para a reza e a oração de cada anoitecer. Ainda ouço o azulão cantador, o coleirinho arretado de bom, o sabiá festeiro. Ainda ouço o choro, o pranto e o grito de sofrimento da família surpreendida com a morte de um dos seus no meio da noite.

Ainda ouço o fogo crepitando debaixo da cuscuzeira, da chaleira de café torrado, do doce ou da cocada. Ainda ouço o cachorro latindo perto da porteira e o cavalo alazão riscando o retorno depois da distante viagem. Ainda ouço o rangido do carro-de-bois na terra nua e espinhenta, dobrando a curva e sumindo na vereda da mataria. Ainda ouço o galo anunciando a hora de levantar quando o sertanejo desde muito já levantou. Ainda ouço a boiada passando além da janela, o vaqueiro gritando, o chicote lanhando, a estripulia da vida. Ainda ouço a menina conversando com sua boneca de pano, o menino delirando com seu cavalo de pau, a meninada cantando e fazendo a roda a rodar nas noites de lua cheia.

E tanto mais que ainda ouço. O que não ouço eu vejo pelo espelho da memória. E me encontro e me reencontro. Também estou naquele passado imorredouro.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário