Por: Claudio Bojunga
A História
que nos perdoe. Mas por que não se conta de uma vez a verdade sobre o Cangaço?
Por: Claudio Bojunga
Dizer que Padim Ciço, um santo, fez Virgolino Ferreira um bandido é um
sacrilégio. Mas o santo fez o bandido virar capitão, sim, embora historiadores
do cangaço omitam esse episódio em seus livros. Há outras omissões. Embora os
personagens da História ainda estejam dispostos a depor para a História. Por
enquanto, porque estão todos muito velhos.
O coronel
aposentado Higino José Belarmino, o homem que mais combates travou com Lampião
e seu bando, durante a primeira fase do cangaço, até 1928, desistiu de ler
qualquer livro, jornal ou revista que trate desse assunto. Tem dois motivos
para isso. O primeiro é pessoal: até hoje, segundo ele, ninguém descreveu corretamente
a morte dos dois irmãos de Virgulino Ferreira, Antônio e Livino, considerados
por todos como mais violentos, ferozes e ousados do que o irmão. Prova é que
morreram logo, em combates com o então tenente Higino.
Cel. Higino José Belarmino - Foto: Josenildo Tenório
O segundo motivo – e o que mais irrita o coronel – é a sua obsessão pela
minúcia. “Já perdi a conta dos doutores (escritores, jornalistas, sociólogos)
que vieram aqui falar comigo. E esta é a segunda vez que trazem a maquininha
(gravador)”. A maioria dos entrevistadores do coronel conversava horas – até
dias – com ele, anotando um dado ou outro, geralmente datas. “Um negócio feito
assim só pode sair torto”, diz ele. O coronel está alertando, com muita
seriedade, todos os estudiosos do assunto.
A maioria dos livros históricos – que fique claro: a maioria – ou ensaios sobre
cangaceirismo parte de premissas discutíveis (alguns até partem de
preconceitos) ou escolhem, a esmo, um determinado ângulo do fenômeno. Então
temos livros que, sem maiores explicações, rotulam Lampião de “revolucionário”,
vestem-no de Robin Hood, tratam as volantes como “forças opressivas” e, no
fundo, descrevem o velho lugar comum que leva o leitor a identificar o bandido
como mocinho e vice-versa. Se a intenção é politica, esses escritores perdem,
nos seus preconceitos, ótimos detalhes que até ajudariam a defesa de suas
teses; que, por exemplo, os métodos usados pela polícia na luta, em nada, mas
em nada mesmo, se diferenciam dos métodos dos cangaceiros.
Quando o coronel Higino diz que “eu era um boi”, fica claro sua identificação
com os inimigos. A volante, enfim, seria um grupo de cangaceiros funcionários
públicos. Igualmente ferozes e ingênuos. Outros pontos: não é possível
pesquisar o cangaço sem o conhecimento profundo da República Velha, das
condições socioeconômicas do Nordeste, na época, da psicologia do seu povo, das
complicadíssimas árvores genealógicas, os clãs, os feudos, as pequeninas
máfias. Como falar de cangaço sem o entendimento das relações
estado-igreja-povo? A função dos beatos, o messianismo, o compadrismo político,
tudo isso contribuindo direta e indiretamente para a formação dos bandos
sanguinários, na verdade manuseados por uma série de elementos que vão desde o
cínico senhor feudal às relações econômicas do Nordeste com o Centro-Sul. Há um
exemplo edificante, de um homem que pesquisa o assunto há mais de vinte anos e
ainda não escreveu o seu livro: o paulista Antônio Amaury C. Araújo.
O jovem Amaury- (Cortesia do
mestre para ilustrar o artigo)
À medida que
ele avança no conhecimento do cangaceirismo, mais dados lhe são exigidos.
Talvez uma pesquisa dessas, que além de muita cultura e paciência, obriga a
gastos inestimáveis de dinheiro, nunca venha a ser feita no Brasil. A solução
poderia estar num trabalho de equipe, financiado por uma riquíssima instituição
cultural. E alguém teria realmente interesse de esmiuçar tão obsessivamente um
período regional da História do Brasil? É fácil concluir que um trabalho assim
é impossível, mas não se pode perdoar a desonestidade (ou o despreparo, vá lá)
de alguns autores. Como é possível perdoar um “historiador” que, pelo simples
fato de venerar o Padre Cícero do Juazeiro, omita da sua “história do cangaço”
o episódio da “promoção” de Virgulino Ferreira a “capitão”?
Alguns personagens desta página – todos da primeira fase do cangaço, a mais
desconhecida, que vai de 1924 a 1928, quando Virgulino atravessou o rio são
Francisco e foi brigar na Bahia – estão dispostos a testemunhar, depor. Ainda
podem chegar à minúcia. Mas os historiadores bem intencionados devem se
apressar: a média de idade dessa primeira fase está por volta dos oitenta anos.
A arteriosclerose começa a apagar a memória de muitos. A morte natural está bem próxima. E logo agora que se descobre que cangaceirismo está longe de ser um assunto esgotado pela História, como dão a entender os representantes do sensacionalismo escrito, falado, filmado e televisionado.
A arteriosclerose começa a apagar a memória de muitos. A morte natural está bem próxima. E logo agora que se descobre que cangaceirismo está longe de ser um assunto esgotado pela História, como dão a entender os representantes do sensacionalismo escrito, falado, filmado e televisionado.
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