Por: Professor Verônica Daniel Kobs
O Cangaço, em nossa História, tem função fundamentalmente social. Movimento de lutas, o “exército informal” de Lampião tinha vestimenta específica: “Certa vez Lampião chegou em uma cidade sergipana, entrou em um armazém e aceitou a proposta do dono do local para pesar toda a roupa e equipamentos que ele tinha pelo corpo. Chegou a quase 30 quilos, isto que ele tirou o fuzil e os depósitos [cantis] de água” (MELLO[1], citado em MILAN, 2014).
A arte de
Aldemir Martins
Inúmeras são as referências dos críticos e
historiadores ao fato de a roupa dos cangaceiros servir como espécie de farda
ou armadura, o que enfatiza a importância da roupa como artefato bélico.
Consequentemente, é possível ampliar a valorização dos cangaceiros, que não
apenas lutavam e combatiam. Mais do que isso, eles eram protagonistas de duelos
ritualísticos, nos quais a roupa era um acessório essencial e de importância
estratégica.
São vários os estudos que, partindo da indumentária
típica do Cangaço, associam os cangaceiros aos cavaleiros da Idade Média e até
aos samurais. Sem dúvida, a comparação baseia-se nas batalhas incessantes e
sangrentas e ao espírito guerreiro dos combatentes. Entretanto, muito além do
aspecto bélico, está o social, que reforça a relação do Cangaço com os
movimentos insurgentes (Canudos, Contestado, Balaiada...). E é exatamente nesse
ponto, entre o combate e o social, que o movimento protagonizado por Lampião se
amplia e se torna sinônimo de “luta social”. Os cangaceiros assumem a voz dos
marginalizados[2] e
lutam contra a injustiça. Contemporaneamente, as favelas reúnem essas
características, que são como verdadeiros estigmas para boa parte da população.
Evidente que isso remonta ao passado, com ênfase às décadas de 1930 e 1960: “No
auge da ditadura militar, o Governo Federal criou um órgão chamado Coordenação
da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam),
que tinha como objetivo principal acabar com todas as favelas da cidade num
prazo máximo de dez anos” (MONTEIRO, 2008, p. 1).
O processo de remoção, longe de ser uma novidade
da década de 1960, tinha um histórico anterior bastante considerável. Christina
da Cunha, no estudo Histórias e memórias das favelas, lembra, por exemplo,
a destruição do cortiço Cabeça de porco, já em 1893, e identifica o início
da ação remocionista em 1937, na Era Vargas. O que ocorre, a partir de 1960, é
a retomada do projeto político, sinal claro de adesão à concepção que orientou
vários governantes, os quais encaravam as favelas como “aberrações”: “Segundo
relatório oficial da Fundação Leão XIII, de 1968, as favelas eram ‘uma
aglomeração irregular de subproletários sem capacitação profissional, baixos
padrões de vida, analfabetismo, messianismo, promiscuidade, alcoolismo...
refúgio para elementos criminosos e marginais, foco de parasitas e doenças
contagiosas’” (MONTEIRO, 2008, p. 4).
Favelas por Marcio Torosi
Esse processo expõe o antagonismo e a dualidade
social. A oposição é acirrada, maniqueísta e, justamente por isso, remete ao
Marxismo, segundo o qual a sociedade é dividida em dois vastos campos inimigos,
em duas grandes classes diametralmente opostas: “a burguesia e o proletariado”
(MARX; ENGELS, 2008). “Ao esboçar em traços gerais as fases do desenvolvimento
do proletariado, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta,
que se desenvolve no seio da sociedade existente, até ao momento em que esta
guerra se transforma numa revolução aberta e o proletariado, derrubando pela violência
a burguesia, implanta a sua dominação” (MARX; ENGELS, 2008).
Geograficamente, e também socialmente, o espaço
favela concretiza essa divisão marxista, sobretudo se for levado em conta o
fato de sua origem, já que o Governo buscava tirar os pobres do centro e
transferi-los para os arredores, preconizando um processo de assepsia social
nas grandes cidades. Dessa forma, em territórios completamente distintos, bem
marcados e delimitados, grupos diametralmente opostos representam o poder
hegemônico e os marginalizados. A partir do momento em que o Cangaço ganhou
espaço, na mídia e na História, a revolução social (e também política e
cultural) passou a contar com um poderoso aliado. O movimento exigia que o povo
tivesse vez e voz, em consonância aos ideais do Modernismo, que, naquela época,
repercutiram na Literatura, nas Artes Plásticas e também no Cinema (nesse caso,
pelo projeto ainda embrionário e que, mais tarde, daria início ao Cinema Novo).
Glauber Rocha
Glauber Rocha, precursor do Cinema Novo, em Estética
da fome, escreveu sobre os famintos e, nas palavras do artista, ecoaram as
ideologias do Marxismo e também do Cangaço:
A fome latina, por isto, não é somente um sistema
alarmante: é o nervo da sua própria sociedade. Aí que reside a trágica
originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é
nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida.(De Aruanda a Vida Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu,
poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo
terra, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,
personagens sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou
o Cinema Novo com o miserabilismo hoje tão condenado pelo Governo do Estado da
Guanabara, (...).). (ROCHA, 2014)
É intrínseca a relação do texto de Glauber Rocha
com a ideologia revolucionária, já que até mesmo a estratégia anti-humana e
antissocial do governo carioca é denunciada por ele. Porém, as semelhanças vão
muito mais além, porque associam a fome dos marginalizados à violência:
(...) o comportamento exato de um faminto é a
violência e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo?
Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?
(...) uma estética da violência antes de ser primitiva
é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a
existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a
violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura
que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi
preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.O
amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque
não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e
transformação. (ROCHA, 2014)
De acordo com o cineasta, a violência é
necessária, assim como é, também, proporcional à injustiça e à exclusão que a
originaram. Para muitos, tal princípio é pessimista e desumano. No entanto,
considerando a História, as características inerentes à humanidade e a divisão
de classes, as palavras de Glauber Rocha servem apenas como constatação e é
nesse sentido que o Cangaço pode ser considerado um movimento de luta pela
transformação.
E foi justamente essa associação que deu a base
para o samba-enredo da Escola carioca São Clemente, que levou para a Avenida,
em 2014, o universo da favela e também um pouco da História do Cangaço. Na
sinopse do enredo, de autoria de Andre Diniz e Wladimir Corrêa, há referências
que explicitam a comparação entre os cangaceiros e os moradores das favelas:
(...) seja bem vindo à favela da São Clemente, e
conheça toda a dimensão da audácia humana! (SÃO CLEMENTE, 2014)
Quem somos nós? Herança do olhar de
esperança dos negros enfim livres.A fé dos pobres soldados que foram a Canudos
vencer o próprio espelho dos sem cortiço, excluídos da cidade que
limpava-se... (SÃO CLEMENTE, 2014)
Como fizemos? Da necessidade! (SÃO CLEMENTE,
2014)
Exige mudança, refaz a esperança.E protagoniza
teu próprio destino (SÃO CLEMENTE, 2014)
Nos trechos do argumento do samba-enredo, são
vários os pontos de contato entre a favela e o Cangaço: “a audácia humana”, a
exclusão causada pelos governos de Vargas e Lacerda, a referência aos
insurgentes de Canudos e até mesmo a violência necessária e reativa (tal como
apresentada por Glauber Rocha, em Estética da fome). Coerente com a
sinopse, a letra da música faz menção à “gangorra da vida” (SÃO CLEMENTE,
2014), com a pergunta “De que lado está?” (SÃO CLEMENTE, 2014). A metáfora é
bastante adequada, porque representa muito bem a dualidade e a diferença
social, evidenciando a desigualdade como motivo para a injustiça e para a
exclusão.
Comissão de Frente da Escola de Samba São
Clemente
A estilização do cangaço pela Escola São Clemente
atualiza o movimento e enfatiza o aspecto social dos cangaceiros. Sem dúvida,
essa leitura não é a mesma que foi repercutida pelo discurso hegemônico e
“oficial”, ao longo das décadas. A marginalização e a injustiça, que levaram
muitas pessoas a buscarem no Cangaço um modo ilegítimo e paralelo de luta e
transformação, foram ocultadas pelos fatos que a mídia enfatizava, na época de
Lampião: invasões, saques, estupros e castrações (no melhor estilo maniqueísta,
em que os cangaceiros representavam o Mal e o Governo e os militares
representavam o Bem). Quase um século depois, essa concepção é confrontada e o
Cangaço é lembrado e reverenciado pelo povo, que se identifica com várias
coisas que verdadeiramente fizeram parte da formação ideológica de muitos
cangaceiros, dos quais Lampião foi um dos mais célebres, e do movimento do
Cangaço como um todo. E, nessa retomada, o traje típico do Cangaço foi
escolhido para representar o valor daqueles que participaram ativamente do
movimento:
Esses artefatos – chapéu de couro e punhal –,
enriquecidos por outros como embornais, cartucheiras, coldres, perneiras, cantis,
luvas e alpercatas impõem-se como imagens de uma arte de síntese que
refletem o orgulho de ser sertanejo, isto é, habitante dos sertões. As
cartucheiras carregavam a munição, os coldres permitiam levar as pistolas a
tiracolo, os cantis garantiam a água para a sobrevivência, os embornais levavam
víveres, remédios, ferramentas; quanto às luvas, perneiras e alpercatas
protegiam o corpo dos espinhos e garantiam a sobrevivência na caatinga. (SILVA,
2014)
Evidente que, em tantas batalhas, apenas
tenacidade, patriotismo, força física e uma boa dose de estratégia (visível
pela autossuficiência que o traje permitia, por reunir tudo o que era
necessário para os confrontos) ajudavam. Mas não bastavam. Era preciso também
buscar a proteção que a religiosidade e o misticismo podiam oferecer: “Os
amuletos da sorte dos cangaceiros têm origem na antiguidade (...). Alguns
chegavam a ter o signo de Salomão por todo o corpo. Ele é uma estrela de seis
pontas – símbolo de Israel – e significa proteção. (...). Normalmente os cangaceiros
(...) adotaram as estrelas de quatro, seis ou oito pontas.” (MILAN, 2014). Na
literatura, há inúmeras referências ao poder de proteção da estrela de oito
pontas, que “simboliza os mil raios da macambira, essa bromélia temível, com
espinhos de ida e volta nas hastes longas de ouriço, uma aliada imemorial
contra todo invasor” (SILVA, 2014). Por mais poderosos que fossem, os amuletos
nunca pareciam ser suficientes[1]. Eram muitos
os que faziam parte da crença mística dos cangaceiros e, de certa forma, se
aliavam à devoção religiosa, representada pela figura de Padre Cícero.
Na referência
que a São Clemente fez ao Cangaço, o chapéu foi elemento fundamental, pela sua
tipicidade e por sua força simbólica:
O chapéu
meia-lua de couro, com uma estrela no meio, lançado por Virgulino, hoje é o
símbolo do nordeste brasileiro. O chapéu, que tem a aba virada naturalmente
para cima quando se cavalga, durante o período do cangaço, serviu de suporte de
arte (na aba iam alguns enfeites) e também de alerta: nenhum cangaceiro poderia
correr o risco de ser surpreendido em uma emboscada, por isso não poderia andar
com a aba abaixada escondendo os olhos. (MILAN, 2014)
Bateria da
Escola São Clemente, no desfile do Rio de Janeiro, em 2014. As roupas dos
participantes fazem alusão aos símbolos do Cangaço, com destaque ao chapéu
típico do movimento.
Lampião, em
traje e chapéu típicos, representativos do Cangaço
Foto de
Benjamim Abrahão
Com base nas
imagens e na passagem transcrita acima, é possível compreender que, tanto para
o Cangaço quanto para o povo (no samba-enredo representado pelos moradores das
favelas), o chapéu usado pelos cangaceiros é muito mais que um acessório. Ele
representa o estado de alerta (para não se deixar surpreender) e também a
coragem (para ver o inimigo sempre de frente). E ambos garantem a
sobrevivência.
Referências:
MARX, K.;
ENGELS, F. Manifesto comunista. Disponível em:
. Acesso em:
13 jun.
2008.
MILAN, P. A
moda de Lampião. Disponível em:
.
Acesso em: 27 mai. 2014.
MONTEIRO, M. Fantasma
exorcizado. Disponível em:
com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=21&infoid=8&sid=7>. Acesso
em: 27 jul. 2008.
ROCHA, G. Uma
estética da fome. Disponível em:
nas/leituras_gg_cinenovo.php>.
Acesso em: 15 abr. 2014.
SÃO CLEMENTE.
[Sinopse e samba-enredo do GRES São Clemente – 2014]. Disponível em: .
Acesso em: 11 mar. 2014.
SILVA, E. Q.
R. e. Entre o chapéu estrelado e o punhal: o imaginário do cangaço em
terras brasileiras. Disponível em:
. Acesso em:
27 mai. 2014.
[1] Vários textos
mencionam também a importância de outros três símbolos: a flor-de-lis, símbolo
de pureza; a cruz de malta e a cruz “oito contínuo deitado”. (Cf. MILAN, 2014)
Verônica Daniel Kobs
* Professora de Imagem e Literatura no Mestrado em Teoria Literária da
Uniandrade e Professora de Língua Portuguesa nos Cursos de Letras da FAE e da
FACEL.
[1] Francisco
Pernambucano de Mello, autor do livro Estrelas de couro: a estética do
Cangaço.
[2] O termo está
sendo usado, aqui, como sinônimo de “excluídos”, dos que ficam “à margem” da
sociedade.
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2015/04/carnaval-cangaco-e-sociedade-por.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com