Por Rangel Alves
da Costa*
Minha primeira
borboleta estava escondidinha dentro de um livro. Toda entristecida,
amarrotada, quase sem fôlego e força para viver. Sorte dela que cheguei a
tempo. E sorte a minha que dali em diante passei a ter borboleta.
O Livro dos
Pássaros e dos Insetos jazia esquecido por cima de uma caixa. Não só esquecido
como empoeirado. Certamente que as traças logo avançariam em cada sabiá, cada
beija-flor, cada louva-a-deus. Destruiriam matas, ninhos e toda a natureza
presente.
Livro colorido
de capa bonita, por cima desenhado um uirapuru. Soprei a poeira e bati com a
mão, de repente ouvi como um cantar de pássaros e mil asas despertando para
seguir em voo. E também um zumbido de bicho se arrastando pelas folhas.
Que coisa mais
estranha, disse a mim mesmo. Mas as sombras do quarto atrapalhavam a visão que
eu precisava ter diante da novidade. Então afastei a cortina e fiz a luz do sol
entrar. E quase o livro foge de minhas mãos querendo pular, voar, ir além da
janela.
Diante da luz
e do vento soprando pela janela, então os sons dentro do livro aumentaram,
agora alegres, contagiantes, querendo saltar para fora e ecoar pelo mundo. Mas
o que será isso mesmo, indaguei já pronto para folhear.
Não abri a
contracapa nem a página seguinte, fui direto numa página qualquer, quase no
meio do livro. E ao abrir encontrei uma borboleta, num retrato tão belo que
mais parecia ali pousando em vida. Cores e mais cores espalhadas pelas asas e
pelo corpo inteiro.
Esta foi a
primeira impressão de surpresa diante de tamanha beleza. Mas noutra realidade
quando aproximei mais os olhos para melhor observar e sentir. As cores estavam
desbotadas, as asas quebradiças, o corpo magro e os olhos entristecidos.
Pelos cantos
da página pequenas traças insistiam em passear. O tempo e a poeira ainda permaneciam
com suas marcas indesejadas. Mas bastou que eu espantasse as traças e soprasse
cuidadosamente a poeira, passando um paninho leve por cima, que a borboleta
quase voa.
Verdade. Assim
que dei uma nova feição à página, no mesmo instante a borboleta pareceu
renascer. Suas cores pulsantes voltaram, suas asas se firmaram prontas para o
voo, os olhos pareciam com brilho novo e festivo. A mais bela borboleta do
mundo.
Então resolvi
libertar todos os pássaros e todos os insetos aprisionados, famintos e
sedentos, mantidos no cativeiro daquele livro. Fui abrindo página a página,
soltando pela janela o curió, o pintassilgo, a formiga, o gafanhoto e todos os
que ali estavam.
E foi quando
cometi o maior pecado do mundo. E pequei o pecado maior porque não libertei a
borboleta. Eu senti que ela se esforçou para alçar voo ante a partida daquela
multidão de pássaros e insetos, mas simplesmente não deixei que partisse.
Além disso,
acabei cometendo uma atrocidade imperdoável: rasguei a página. Assim que
rasguei, a borboleta aproveitou o vento soprando e quase vai embora com folha e
tudo. Alcancei-a já subindo ao espaço. Trouxe para pertinho de mim porque meu
desejo era outro.
E meu desejo
era ter aquela borboleta somente para mim. Ora, se as pessoas criam gatos,
cachorros, papagaios e até passarinhos, eu poderia ter aquela borboleta como
minha cria de estimação. Daí que resolvi separá-la daquela página
desconfortável e solitária.
Com uma
tesoura afiada, separei milimetricamente a borboleta. Depois de colocá-la sobre
a palma da mão, soprei para ter diante de mim uma cena encantadora e
inesquecível: a linda borboleta voando, passeando pelo ar, dando voltas cada
vez maiores a cada sopro.
Sorri e chorei
diante da cena. Alegria pela primeira borboleta e tristeza porque sabia que o
mundo daquele quarto não era o seu. Então tomei uma difícil decisão. Deixei-a
sobre o umbral da janela para que seguisse na ventania.
Passaram-se
dois, três dias, e ela no mesmo lugar. Mas um dia retornei e não mais avistei
minha primeira borboleta. Certamente que o vento a havia levado. E levou sim,
para o alto, para bem perto da nuvem.
Quando desceu,
ela já havia renascido para a vida, como borboleta normal e majestosamente
bela. Assim sei por que todos os dias, ao amanhecer, ela entra pela janela,
sobrevoa o quarto, pousa na minha mão e me beija a face.
Poeta e
cronista
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