Do jornal Valor
Econômico
Por IEDA LEBENSZTAYN
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Na hemeroteca
digital da Biblioteca Nacional, encontrei “Dois Irmãos”, artigo de Graciliano
Ramos inédito em livro. Saiu em “Diretrizes” em setembro de 1938, um mês e
alguns dias depois de terem sido decapitados Lampião, Maria Bonita e
cangaceiros do seu bando. Integra uma série de crônicas em que o escritor
reflete sobre problemas do Nordeste, do Brasil e da civilização a partir da
questão do cangaço: “Lampião”, “Virgulino”, “Cabeças”, “O Fator Econômico no
Cangaço”, “Dois Cangaços”, “Antônio Silvino”, “Corisco” e “Desordens”.
A primeira
delas, “Lampião”, de 1931, foi publicada na revista alagoana “Novidade” e hoje
consta do livro de crônicas “Viventes das Alagoas”. Graciliano já explicitava
que não lhe interessava apenas o indivíduo Virgulino Ferreira, mas a motivação
do “lampionismo”: a necessidade de viver levava os sertanejos a aderirem ao
banditismo.
Posterior à
prisão de Graciliano (1936), como os demais textos mencionados, “Dois Irmãos”
chama a atenção para as “chuvas de notícias sangrentas” que vinham do Nordeste
em 1938: o problema da seca na região, não resolvido até hoje, aponta para o
fator econômico e político, fonte de violência. A barbaridade afligia o
escritor, então no Rio de Janeiro, migrante forçado, saído da cadeia no início
de 1937. A estrutura social fincada em desigualdades, gerando fome e luta por
sobreviver, resultava na violência de cangaceiros e da polícia, patente na
degola de Lampião e de seu grupo em julho de 1938 e na exposição das cabeças,
atrocidades tão noticiadas à época.
Revoltado
contra injustiças e desejoso de ação, porém intelectual, afeito à palavra
escrita, Graciliano se inquietou com as questões do cangaço e do beatismo. Mais
do que meros assuntos na ordem do dia, eles carregam uma rede de problemas que
atingiam a sensibilidade do escritor, pedindo-lhe reflexão e forma artística.
O mote de
“Dois Irmãos” é “Pedra Bonita”, romance de José Lins do Rego lançado em 1938.
Mas Graciliano não trata minuciosamente do livro, e sim de uma divisão nele
presente, entre dois irmãos – o cangaceiro e o afilhado do padre. Com agudez,
destaca que “a dispersão de forças” entre os irmãos, ambos desgraçados e
sequiosos de mudanças, porém adeptos de “processos de salvação contraditórios”,
favorecia seus opressores.
É notável a
força poética e crítica do artigo de Graciliano. Evocando as imagens de Esaú e
Jacó, o bruto e o sonhador, mostra que fome e injustiças levavam sertanejos à
brutalidade, à sede de vingança, daí o lampionismo; mas também podiam resultar
em resignação, no potencial de piedade e de consciência crítica. Nesses
caminhos possíveis dos sertanejos, o leitor reconhece os impasses que dão forma
às personagens de Graciliano.
O “Esaú
sertanejo” é Lampião: depois de aguentarem injustiças, muitos se entregavam ao
cangaço, a assassinatos e roubos – reações violentas à exploração no eito, aos
desmandos dos soldados, dos poderosos.
“Esaú é
arrojado, tem o coração ao pé da goela e pouco interior. O que vem de fora não
o penetra muito: bate e volta, traduz-se em movimento. E como o que recebe de
ordinário é brutalidade, a brutalidade faz ricochete e atinge quem o ofendeu. [
] Por isso, quando na feira um soldado lhe planta a reiuna em
cima da alpercata, apruma-se e rebenta-lhe o focinho com um murro, se o
agressor está desacompanhado; se não está, vai esperá-lo numa volta de caminho,
passa duas semanas emboscado [
]. Mata-o,
fura-lhe a carótida com o punhal [
].”
Essa imagem do
Esaú sertanejo traz à mente o desejo irrealizável de Fabiano, de “Vidas Secas”
(1938): tornar-se cangaceiro e se vingar do soldado que o prendera injustamente
e o espancara – matar os donos do soldado, os governantes. E como não pensar em
Paulo Honório, de “São Bernardo” (1934), cuja realidade de explorado se
traduziu em movimento até que, assassino e ladrão, ele se fizesse proprietário
explorador? Funcionário humilhado, Luís da Silva respondeu com ódio de
“cangaceiro emboscado” a Julião Tavares, redundando no crime de “Angústia”
(1936).
Já o outro
irmão, o Jacó sertanejo,, é o homem capaz de sonhos, gentileza, piedade e
paciência. A miséria o acompanha: “Jacob, homem de sonho, diverge muito do
irmão. É doce, resignado, constrói escadas que anjos percorrem, aguarda longos
anos a realização de promessas que julga ter recebido. Como as promessas não se
efetuam, fica outros anos encolhido, espiando o céu. [
]
esse homem piedoso continua miserável, habitante duma região medonha que certa
literatura tem revelado indiscretamente”.
Diversa dessa
divisão de caracteres de “Pedra Bonita”, a arte da personagem Fabiano é
carregar em si a tensão entre os “dois irmãos”. Esaú e Jacó sertanejo, embora
bruto e sedento de se vingar das injustiças, o retirante não mata o soldado:
“guarda a sua força”, é ético em sua resignação e apego aos sonhos de mudança
junto à família. Também Paulo Honório e Luís da Silva têm uma face de Jacó:
narradores de suas tragédias, doçura e piedade convertidas em angústia, são
homens de sonhos frustrados.
Ressaltam do
artigo a sensibilidade e o olhar crítico às incongruências do país, em que o
intelectual, Lampião de palavras, entre o ímpeto revoltoso de Esaú e o sonhar
compungido de Jacó, é combatido como “extremista”. Graciliano alude com ironia
à sua prisão (1936): a denúncia dos problemas da realidade brasileira, tornada
chavão com a revolução de 1930, redundou em sofrimento para quem denunciava de
fato, sem enfeites, os molambos.
Assim, “Dois
Irmãos” expressa o desejo do escritor de que se observasse o cangaço em sua
complexidade: propalado como heroico pela imprensa, o assassinato de alguns
bandoleiros pela força policial não significava o fim da miséria no Nordeste.
Em sua arte,
assim como ao dirigir a Instrução Pública de Alagoas, Graciliano agiu contra a
miséria, a ignorância e os preconceitos gritantes. Esse “extremismo” seria
repreendido com a prisão do escritor, e a ironia da carta (não enviada) a
Getúlio Vargas, igualmente de 1938, nos cala.
“[
] Como disse a V. Excia., a comissão repressora dum dos
extremismos [
] achou inconveniente que eu
permanecesse em Alagoas, trouxe-me para o Rio e concedeu-me hospedagem durante
onze meses. Sem motivo, suprimiu-se a hospedagem, o que me causou transtorno
considerável. Agora é necessário que eu trabalhe, não apenas em livros, mas em
coisas menos aéreas. Ou que o Estado me remeta ao ponto donde me afastou,
porque enfim não tive intenção de mudar-me nem de ser literato. [
] ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha
terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas
escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os
professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos
grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras
iniquidades. É possível. Afinal o prejuízo foi pequeno, e lá naturalmente
acharam meio de restabelecer a ordem.”
Ieda Lebensztayn, autora de “Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis” (Editora Hedra), é doutora em literatura brasileira pela USP e pós-doutoranda no IEB-USP, bolsista da Fapesp
http://graciliano.com.br/site/2013/05/lampiao-de-palavras-graciliano-ramos/
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