*Rangel Alves
da Costa
Na última
segunda-feira, dia 10, completaram-se 100 anos da tragédia do Vapor Moxotó nas
águas do Velho Chico, entre Bonsucesso e Belmonte (Belo Monte, como é mais
conhecida), na divisa são-franciscana entre Sergipe e Alagoas. Ante a ausência
da prefeitura municipal de Poço Redondo, a própria comunidade ribeirinha de
Bonsucesso se organizou para relembrar com missa e outros eventos, a fatídica,
porém histórica, memória.
Flores ao
passado, flores aos mortos, preces e cantos, missa pela memória triste das águas,
assim foi o dia nas beiradas do Velho Chico, bem no local onde ainda repousam
os restos da velha canoa, que de vez em quando reaparecem na magreza do rio.
Intitulado Moxotó: Destino e Sina do Velho Vapor, abaixo segue um texto de
minha autoria, escrito no ano passado, onde descrevo os passos da tragédia.
“Povoado
ribeirinho de Bonsucesso, município de Poço Redondo, sertão sergipano. No outro
lado, encravado entre as serras, o pequeno arruado alagoano de Belo Monte, o
mesmo Belmonte para alguns. Entre os dois, limitando estados e terras, as águas
remansosas do São Francisco, o rio da raiz de todo o nascer e viver sertanejo.
De leito vasto e opulento antigamente, agora apenas um caudal que de repente
ganha vida para no instante seguinte melancolicamente emagrecer.
Nas suas
águas, contudo, uma história triste e comovente que se prolonga, ainda com
sombras que despontam, desde os tempos idos, desde a segunda dezena do século
passado. Quando as águas são muitas e o leito se estende alto de margem a
margem, os visitantes sequer imaginam o que jaz sem vida nos escombros aquosos.
Mas quando as vazantes chegam, o rio diminui e seus ossos vão ficando à mostra,
então surgem os esqueletos e os restos de uma embarcação e sua trágica
história: Moxotó! Sim, um pouco mais além do meio do leito, já nas proximidades
das ribeiras do Belo Monte, ainda permanecem os restos naufragados do velho
Vapor Moxotó. E que história mais instigante!
10 de janeiro
de 1917, uma quarta-feira. O percurso da Moxotó, uma embarcação que fazia parte
da Companhia Pernambucana de Navegação, na verdade um vapor também conhecido
como Chata, era cantado e decantado por toda a região. Ora, o principal meio de
transporte. Tinha porto de origem em Penedo, seguia até Propriá, desembocava em
direção a Pão de Açúcar e prosseguia até os costados de Piranhas, passando
pelas povoações ribeirinhas que se estendiam ao longo das ribeiras do São
Francisco.
Naquela tarde
de quarta-feira, já com itinerário de retorno, partiu de Piranhas com muitos
passageiros, produtos para serem comercializados em outras cidades, fardos e
mais fardos de sortimentos, sacos de açúcar, feijão e farinha, além de muitos
outros objetos de valor tão costumeiros naqueles tempos áureos e faustosos nas
ribeiras e pelos arredores sertanejos, mas também por que muito do que
transportava possuía destinação aos grandes centros e até outros países. Até
ouro e prataria levava, segundo relatam.
Ao
entardecer, retornando de Piranhas, seu último porto no trajeto, a Moxotó
singrou as águas do Velho Chico para uma viagem normal, como costumeiramente
fazia. Estava lotada de passageiros, amontoada de bagagens, repleta de um tudo.
Com destino à cidade alagoana de Pão de Açúcar, para na manhã seguinte seguir
até Penedo e Propriá, primeiro aportou na povoação de Curralinho, no atual
município de Poço Redondo, no intuito de receber mais passageiros e descer e
fazer subir objetos e mercadorias, o que igualmente faria mais adiante, quando
chegasse às margens de Bonsucesso, tendo Belo Monte no outro lado.
Como meio de
transporte mais utilizado naqueles idos de 1917, a Moxotó acomodava em seus
balanços e remansos diversas classes sociais sertanejas e nordestinas, levando
e trazendo desde coronéis a pequenos comerciantes e homens da terra. Contudo, o
acúmulo de pessoas acabava causando problemas a uma embarcação reconhecidamente
frágil perante as águas revoltosas e as verdadeiras armadilhas que se
apresentavam a cada avanço do rio. E ante as tempestades, então a situação se
tornava verdadeiramente desesperadora. Foi uma situação assim que começou a
surgir depois das quatro da tarde, enquanto seguia ao largo do Curralinho. O
céu enegreceu, a ventania soprava cada vez mais forte, as águas sacolejavam
ante a repentina tormenta.
O medo toma
conta de tudo e de todos. As vozes são caladas pelos assombrosos sacolejos que
tornavam o frágil vapor como brinquedo de papel dentro de uma banheira agitada.
Pedem para que o comandante imediatamente providencie uma parada numa margem
qualquer. Mas nenhum efeito surtiram os rogos dos aterrorizados passageiros. A
decisão é seguir em frente e baixar as âncoras mais adiante. Já estavam entre o
Bonsucesso e o Belo Monte quando a Moxotó não mais suportou as ferozes
investidas das águas e sucumbiu entre as vagas então profundas. Neste passo,
urge trazer o relato tão dramático quanto emocionante do escritor Etevaldo
Amorim, em texto intitulado “O Destino da Moxotó”:
“Seguem-se
momentos de pavor. Forma-se de repente um cenário dantesco: gritos, choro,
desespero. A água transpõe o convés e invade todo o vão interior. Pânico geral!
Passageiros e tripulantes se atropelam em movimentos desordenados. Uns se
lançam ao rio em busca de salvação; outros são tragados pelas ondas e sucumbem
ao soberbo poder das águas tempestuosas, soçobrando inevitavelmente. Consuma-se
a tragédia. A tempestade afinal se aplaca ao cair da noite. Dia seguinte, a
notícia se espalha. De Pão de Açúcar, onde a tempestade destelhou casas e
derrubou árvores, partiram equipes de busca, coordenadas pelo Capitão Manoel
Rego. Trabalho difícil e doloroso que ia revelando, a cada corpo encontrado, a
extensão e a gravidade do que ocorrera no morro do Belmonte”.
Quase cem anos
depois, eis que de repente uma amiga de Bonsucesso, Quitéria Gomes, me envia
algumas fotografias e nestas, tal qual os restos de uma baleia que de repente
aparecem nas águas rasas, também os restos da Moxotó. As recentes fotografias
demonstram o quanto insepulto continua o velho vapor”.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
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